Na crítica marxista da deficiência, as lutas anticapacitistas e anticapitalistas estão do mesmo lado da trincheira.
Anahí de Mello
Fonte: Jacobin Brasil
Data original da publicação: 12/02/2021
As barreiras invisíveis que cercam a luta anticapacitista das pessoas com deficiência no capitalismo sempre estiveram à margem dos debates e das pautas da esquerda no Brasil. Essa percepção se deve à narrativa hegemônica da deficiência como uma experiência individual e “isolada”. Ao ser dissociada de outras lutas sociais, a deficiência dificilmente é concebida enquanto experiência coletiva.
A deficiência ora é um marcador social de diferença, ora uma forma de opressão que opera com outras categorias como classe, gênero, sexualidade, raça. De acordo com a teoria social “clássica” da deficiência, há duas maneiras de compreender a deficiência, uma é baseada no modelo médico; outra, no modelo social. Em poucas linhas, no modelo médico a deficiência está localizada no corpo do indivíduo, de modo que ela é vista com um “problema” individual, objetivando-se a cura ou a medicalização do corpo.
No modelo social, a deficiência não se encerra no corpo, ela é o produto da relação entre um corpo com impedimentos físicos, visuais, auditivos, intelectuais ou psicossociais e um ambiente incapaz de prover acessibilidade. Desse modo, o modelo social da deficiência desloca a compreensão da deficiência do corpo do indivíduo para o contexto das barreiras sociais impostas pela estrutura social. A deficiência vai além da perspectiva individualista, de âmbito privado, e passa a ser uma questão da esfera pública do Estado e da sociedade.
Ao passar do viés médico para o social, a deficiência deixa de remeter a ideias como “incapacidade” e “limitação”, sentidos estes que podem ser atribuídos a noções como falta, perda e déficit. Os movimentos sociais da deficiência do Brasil passam a adotar, sem qualquer ressalva, os termos “deficiência” e “pessoa com deficiência” como questão de orgulho porque entendem que a deficiência é um atributo (uma qualidade) que a distingue de outros grupos sociais e não um problema (incapacidade).
Essa virada discursiva sobre a deficiência teve sua origem nos anos 1980, com a contribuição da primeira geração de teóricos sociais da deficiência, majoritariamente composta por homens com lesão medular alinhados à perspectiva marxista. Essa geração apontou a discriminação socioeconômica como uma das principais formas de opressão contra as pessoas com deficiência, em sociedades capitalistas, já que o advento do capitalismo trouxe grande desvantagem para as pessoas com deficiência a partir da percepção de que elas não poderiam se adaptar às novas exigências laborais, por meio do emprego especializado nas fábricas. Ou seja, a industrialização demandou cada vez mais a separação e distinção do indivíduo em relação à sociedade à medida que a divisão da mão-de-obra se especializa e se individualiza crescentemente no mundo do trabalho, de modo que estar desprovido da capacidade de trabalhar por causa de um corpo deficiente é estar desprovido da capacidade de ser um membro “útil”, “ativo” e “pleno” de direitos e deveres da sociedade.
As pessoas com deficiência estão, portanto, excluídas do mercado de trabalho não por culpa de suas limitações funcionais, tampouco por causa das atitudes e práticas discriminatórias de empresas, mas devido ao próprio sistema de organização do trabalho dentro da economia capitalista, que se baseia nos princípios da competição e da obtenção do máximo lucro. Essa dimensão de exploração da força de trabalho das relações capitalistas implicou a ideia da deficiência como “tragédia pessoal”, cujo corpo requer tratamento médico a fim de buscar a “cura” ou mesmo “recuperar” a funcionalidade perdida. Desse modo, as pessoas com deficiência devem ser controladas, tuteladas pelo Estado capitalista, por meio da institucionalização e medicalização forçadas de seus corpos e subjetividades.
Ademais, há a questão da “deficientização” do trabalhador, quando este se torna uma pessoa com deficiência devido a acidentes de trabalho ou a condições precárias do trabalho prolongado. Por exemplo, Friedrich Engels, em seu texto A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (1845), registra que somente no ano de 1843 o hospital de Manchester teve que tratar 962 lesões entre os “feridos” e “mutilados” devido a acidentes de trabalho relacionados ao manuseio de máquinas. O autor narra:
Poucas vezes andei por Manchester sem cruzar com três ou quatro aleijados, acometidos dessa deformação da coluna e das pernas que pude observar inúmeras vezes; conheço pessoalmente um estropiado que foi mutilado em Pendleton, na fábrica do senhor Douglas, industrial que ainda hoje desfruta, entre os operários, de reputação pouco invejável por impor jornadas de trabalho extremamente longas, que atravessavam noites inteiras. Não é difícil identificar de imediato, entre os aleijados, aqueles que foram estropiados dessa maneira – todos têm o mesmo aspecto: os joelhos curvados para dentro e para trás, os pés voltados para dentro, as articulações deformadas e grossas e, frequentemente, a coluna desviada para a frente ou para o lado.
Por isso, a deficiência é primariamente uma questão de classe, um componente intrínseco das lutas anticapitalistas, devendo compor todas as pautas das lutas da classe trabalhadora. Pensar os impactos do sistema capitalista capacitista sobre os corpos deficientes provoca também uma reflexão sobre os modos pelos quais as pessoas com deficiência elaboram a “economia pelo corpo”. Falar da “economia pelo corpo” implica olhar para a materialidade do que chamamos, abstratamente, de economia, pensando nos jogos de “deficientização” do trabalho a partir dos entrelaçamentos da deficiência com ambientes, barreiras, classe, gênero, raça, sexualidade, geração, Estado, economia, política e cidadania. Aliás, a deficiência e o capacitismo como categorias de análise ampliam o potencial analítico e político de superar hierarquias de opressão sustentadas pela lógica capitalista neoliberal que incide na corponormatividade, na qual a branquitude e a hetero-cis-normatividade estão implicadas.
O capacitismo é a opressão vivida pelas pessoas com deficiência e sua raiz se encontra nas mesmas instituições econômicas e políticas que servem de base para o patriarcado heterossexista, o racismo e a lesbohomotransfobia. Esta é a primeira interpretação para o capacitismo, isto é, uma forma de discriminação contra um grupo social específico, o das pessoas com deficiência, estando atrelado ao dispositivo da “capacidade compulsória” que hierarquiza e induz pessoas com deficiência a almejarem padrões de aparência e de funcionalidade implicados no ideário de um corpo “saudável”, “belo”, “produtivo”, “funcional”, “independente” e “capaz”.
Na perspectiva marxista, a pessoa com deficiência é um corpo fora da ordem capitalista, por ser um corpo de “menor valor” e “incapaz” para o trabalho e por isso um obstáculo para a produção. De fato, as pessoas com deficiência são um grupo social bastante invisibilizado das lutas anticapitalistas e dos debates sobre o mundo do trabalho no capitalismo contemporâneo, apesar da materialidade do corpo deficiente ser fortemente demarcada do ponto de vista da “aptidão” para o trabalho.
Esse padrão molda a corponormatividade de nossa estrutura social pouco afeita à diversidade corporal, frequentemente associando a capacidade de uma pessoa com deficiência à funcionalidade de estruturas corporais de modo a avaliar moralmente o que as pessoas com deficiência são capazes de ser e fazer. Assim, quando uma pessoa não enxerga com os olhos, não ouve com os ouvidos e não anda como um bípede, ela é lida como “deficiente” e passa a ser percebida culturalmente como “incapaz”, inclusive incapaz para o trabalho. Por isso, o capacitismo impede a percepção de que é possível um cadeirante andar sem ter pernas, um surdo ouvir com os olhos e um cego enxergar com os ouvidos.
A segunda interpretação para o capacitismo é concebê-lo como uma estrutura, ou seja, uma normatividade corporal e comportamental baseada na premissa de uma funcionalidade total do indivíduo. Essa ideia remete ao pensamento de Fiona Kumari Campbell, para quem o capacitismo reporta a uma matriz de inteligibilidade corporal e comportamental que traça seus próprios limites entre natureza e cultura ao definir como “ordem natural das coisas” uma corporalidade completamente funcional e capacitada, isto é, um corpo sem deficiências e doenças. Essa interpretação implica que várias corporalidades podem ser lidas como ininteligíveis – incluídos corpos femininos, negros, indígenas e LGBTI. E pressupõe, no entanto, uma hierarquia de corpos dissidentes, com os corpos deficientes no topo da estrutura capacitista. Por isso, faz sentido a afirmação de que o capacitismo está para as pessoas com deficiência como o racismo para as pessoas negras e indígenas, o sexismo para as mulheres e a lesbohomotransfobia para as pessoas LGBTI.
A produção social da deficiência também é “naturalizada” pelos saberes dominantes, cujos significados atribuídos à deficiência estão organizados em um sistema de aparente oposição binária de presença e ausência (capacidade versus deficiência) que, na verdade, se revelam interdependentes. Nesse sentido, a noção de deficiência se materializa e se retroalimenta por meio de práticas sociais e discursos que a colocam como o oposto da capacidade. No entanto, o contrário da deficiência não é eficiência, mas capacidade. O oposto da eficiência é ineficiência. Assim, não faz sentido usarmos (d)eficiência para indicar jogos binários entre “deficiência e eficiência” ou mesmo atenuar uma suposta valoração negativa da categoria deficiência.
Se o capacitismo é uma estrutura que dificulta o acesso das pessoas com deficiência à cidadania, sendo atravessado pelos muros das desigualdades de classe, gênero, raça e sexualidade, então as lutas anticapitalistas, feministas, antirracistas e antiLGBTfóbicas devem incorporar as pautas das lutas anticapacitistas. A própria opressão capacitista se reflete nas relações hierárquicas da divisão de classes que sustenta a divisão sexual, racial e funcional do trabalho em sociedades capitalistas.
Por isso, se quebrássemos os muros que nos impedem de dialogar com todo o campo progressista das lutas sociais das esquerdas, veríamos que a deficiência deixaria de ser uma existência solitária para ser uma pauta interseccional, se deslocando da experiência individual para a experiência coletiva, a fim de que as lutas anticapitalistas, feministas, antirracistas, antiLGBTfóbicas e anticapacitistas façam sentido e caminhem juntas.
Anahí de Mello é doutora pela UFSC, pesquisadora do Instituto de Bioética (ANIS) e membro do GT Estudios Críticos en Discapacidad da CLACSO.