Cornershop: o precarizado que compra por você

Fotografia: Roberto Parizotti/CUT

Nova plataforma da Uber oferece o serviço de ida a supermercados, levando compras em casa.

Murilo C. Sampaio Oliveira, Beatriz C. Oliveira e Randerson H. de Souza Lopes

Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 03/02/2022

Com a promessa de comodidade, praticidade e ganho de tempo, a proposta da plataforma digital Cornershop soa como uma boa alternativa para que o/a consumidor/a não gaste seu tempo indo aos supermercados e receba, mediante pagamento, suas compras em casa. Para possibilitar tal comodidade, é preciso que haja um conjunto de trabalhadores/as disponíveis para realizarem essas compras e, no final, entregá-las no endereço demandado. Assim, através de uma infraestrutura tecnológica, cotidianamente percebida empiricamente como “aplicativo” de serviços de compras, a Cornershop surge para mediar e controlar a interação entre os grupos de consumidores/as e trabalhadores/as.

Essa breve e genérica descrição de uma plataforma digital que vende trabalho — justamente o caso da Cornershop — é uma adequada exemplificação do modelo empresarial plataformizado. Tal modo emerge no contexto da denominada Quarta Revolução Industrial1, do Capitalismo de Plataformas2 e das novidades tecnológicas como a inteligência artificial, robótica, internet das coisas, veículos autônomos, impressão em terceira dimensão, nanotecnologia, biotecnologia, ciências dos materiais, armazenamento de energia e computação quântica.

A Cornershop foi criada em 2015 no Chile e chegou ao Brasil em 2020. Nesse mesmo ano ela foi adquirida pela Uber por US$ 220 milhões. A empresa se distingue das outras plataformas de delivery, pois os/as trabalhadores/as, denominados/as shoppers, não somente fazem as entregas, mas também localizam, selecionam e compram os produtos nos estabelecimentos comerciais. Registra-se que atualmente a Cornershop atua em 8 (oito) países: Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Estados Unidos, México e Peru. No Brasil a plataforma opera em todas as regiões do país, com uma concentração nas cidades no Sudeste.

O(A) shopper, com base na sua localização, recebe o pedido e tem até 2 (dois) minutos para aceitar. Caso o recuse, o pedido será atribuído a outro/a trabalhador/a. No caso de aceite, este/a terá que escolher a filial do estabelecimento comercial em que fará a compra, não podendo alterar após a confirmação. Em seguida, o/a shopper deve se dirigir ao estabelecimento comercial e notificar no aplicativo que chegou. Continuamente, aparece para o/a trabalhador/a a quantidade de itens a serem comprados e o peso total das compras. Nesse momento, ao checar o tamanho e o peso do pedido, o/a trabalhador/a pode optar pelo cancelamento. No entanto, tal ação, desacompanhada de um motivo entendido como plausível pela plataforma, poderá gerar a desativação da sua conta.

Para prosseguir com a compra, encontrando o produto, deve o(a) trabalhador/a clicar na foto correspondente no aplicativo e, com base na imagem e código de barras, checar o preço e a disponibilidade do item. Estando os preços e a disponibilidade compatíveis com aqueles mostrados no aplicativo e solicitados pelo/a cliente, o/a shopper deve escanear o código de barras e dar como “encontrado” na tela. No caso de alguma informação se mostrar dissonante daquela mostrada no aplicativo, deve o/a trabalhador/a notificar ao/à cliente e oferecer alternativas parecidas, podendo este/a acatar ou não. Se o/a cliente recusar a troca, a Cornershop reembolsa o valor ao fim da compra.

Ao final, o/a shopper sinaliza no aplicativo que está indo ao caixa. Com isso, a plataforma gerará a nota fiscal e o/a trabalhador/a realizará o pagamento por meio do cartão da Cornershop que é entregue a ele/a exclusivamente para esse fim.

Em relação ao pagamento aos/às shoppers o cálculo consiste em inúmeras variáveis que resultará num valor final. Dessarte, a título de exemplo desses elementos3: um valor para cada produto que o/a trabalhador/a carrega em um pedido, não considerando produtos repetidos; a distância do/a shopper até a loja, aplicando-se uma vez por compra, em quilômetros rodados; um valor-base para iniciar uma compra; um valor para cada pedido aceito; um valor para o peso em produtos, aplicando-se por 10kg em cada pedido atribuído; a distância até o/a cliente; um valor-base para iniciar uma entrega, que pode consistir em um ou mais pedidos; por fim, um valor para cada pedido entregue.

É importante informar que os valores atribuídos para cada ponto supramencionado são dinâmicos. De acordo com os/a trabalhadores/as que divulgam as informações sobre os valores arrecadados em um grupo privado no Facebook, o “plano de ganhos” é diferente para cada trabalhador/a, mesmo quando atuam na mesma localidade.

Vislumbra-se, portanto, dois elementos que são comuns entre as plataformas digitais de trabalho, a definição dos valores de forma unilateral pela empresa, como também um caráter opaco e dinâmico do cálculo desses valores4. Esse dinamismo também é constatado nas plataformas do tipo marketplacev.g., a GetNinjas, pois apesar de ser o/a trabalhador/a que quantifica o seu serviço, é a GetNinjas que atribui um valor arbitrário para liberar a visualização dos pedidos5.

Ademais, é essencial assinalar que a empresa não fornece em seu portal eletrônico os termos e condições de uso da plataforma referente aos/às shoppers. Apenas é possível visualizar os termos para os/as clientes e as lojas de autoatendimento. Ao/À trabalhador/a é apresentado/a uma seção de “perguntas frequentes”, no qual a Cornershop fornece respostas sobre o funcionamento da plataforma que ela supõe serem pertinentes.

Tal circunstância diverge de outras plataformas de trabalho digital. A não publicização dos termos de uso para os/as “parceiros/as” é uma situação incomum, visto que outras empresas em seus sites disponibilizam os termos de uso. Some-se a isso o fato de que a Cornerhop é, atualmente, de propriedade da Uber, a qual possui uma página dedicada aos seus documentos legais.

De modo a melhor entender a Cornershop também fora realizada uma pesquisa com os(as) shoppers. Diante disso, executou-se 17 entrevistas com shoppers por meio de formulário online, além de mais seis que ocorreram pessoalmente em alguns mercados na capital do estado da Bahia, logo, totalizando 23 participantes.

Inicialmente segue mostrar o perfil dos/as entrevistados/as:

Outrossim, numa síntese dos dados coletados em relação a situação laboral, dispôs que 56% dos/as entrevistados/as têm uma carga laborativa diária de seis horas ou mais. A maior parte dos/as trabalhadores/as estão conectados na plataforma por mais de três dias na semana. Enquanto 48% trabalham no mínimo por seis dias na Cornershop. Acentua-se que 74% dos/as entrevistados/as responderam que também trabalham em outra plataforma.

Ao comparar os ganhos em escala diária, semanal e mensal, verificou-se que não há uma regularidade. Dessa forma, a rotina de trabalho não permite um planejamento financeiro fixo, haja vista que os ganhos nem sempre são compensatórios e lucrativos. Acrescenta-se também que os/as trabalhadores/as afirmam receber algo intermediário entre um a dois salários mínimos. Ainda nesse contexto, deve-se levar em conta os gastos com o trabalho que nem sempre são abatidos pelos(as) trabalhadores/as do valor total faturado. Apurou-se que mais de três quintos dos/as shoppers não abateram, do montante mensal informado, as despesas com manutenção do veículo (combustível, IPVA, seguro etc.), depreciação/desvalorização do automóvel, alimentação, internet e smartphone.

Então, diante desses quesitos, poderiam os(as) shoppers se considerarem empregados/as da Cornershop? Não, pois 78% dos/as entrevistados/as se consideram trabalhadores/as autônomos/as. Outrossim, eles/as entendem que essa flexibilidade de horários e ausência de um/a “chefe tradicional” são características positivas do labor na Cornershop, configurando um trabalho sem forma de emprego.

No entanto, quando questionados/as acerca do controle exercido pela plataforma através do manejo de tempo das compras e entregas, das avaliações que recebem dos/as clientes, e da quantidade de pedidos que recebem ou deixam de receber em razão das notas atribuídas pelos/as consumidores/as; identifica-se que as respostas divergem do pensamento supradito, i.e., da independência e da falta de gerência. Nesse sentido, 83% dos/as trabalhadores/as responderam que consideram que o seu labor é controlado pela Cornershop.

Diante disso, é notável que pelo fato de a gerência não figurar fisicamente numa pessoa, como ocorre no modelo tradicional de trabalho, torna-se difícil o reconhecimento da situação de dependência ou de subordinação por parte dos/as trabalhadores/as. Logo, percebe-se um panorama paradoxal: apesar de eles/as perceberem o controle de suas atividades, ainda assim, consideram-se autônomos/as.

Assim, conforme foi exposto, apesar dos/as trabalhadores/as se considerarem autônomos, é perceptível a subordinação, uma rotina diária de trabalho e um ganho obtido pela realização dessa atividade. A Cornershop exerce uma gerência de forma velada sobre as atividades dos/as trabalhadores/as, permitindo pouca ou nenhuma margem de liberdade, uma vez que o controle é realizado por meio de uma lógica algorítmica altamente incisiva e dominante.

Tal constatação também se deu ao notar que o/a shopper é compelido(a) a realizar inúmeros procedimentos para execução dos seus serviços, desde o uso de materiais com a logomarca da empresa, como camisetas e sacolas, até a conduta com os/as clientes. Ou seja, trata-se de trabalho dirigido e padronizado pela plataforma, cujo descumprimento ensejará a exclusão do/a trabalhador/a.

No que tange à remuneração, pôde-se perceber que essa é determinada pela empresa de forma unilateral, uma vez que a plataforma não esclarece de forma meticulosa ao/à shopper como são calculados os valores de cada serviço realizado, bem como não permite essa estipulação por ele/a próprio/a, impossibilitando a sua autonomia financeira. Da mesma forma, as taxas podem ser alteradas a qualquer momento pelo aplicativo. Logo, a precificação revela-se como direção econômica que implica em assalariamento indireto, já que a plataforma define, objetivamente, os ganhos do/a trabalhador/a.

Nesse sentido, detectou-se que os/as shoppers, enquanto profissionais que realizam pessoalmente uma atividade onerosa, habitual e subordinada a um controle algorítmico, encaixam-se plenamente nas hipóteses caracterizadoras de vínculo empregatício disciplinadas no artigo 3º da CLT.

Notas

Este artigo é parte da Revista da Faculdade do Dieese de Ciências do Trabalho Plataformas Digitais II. n. 21. 2022, disponível aqui.

1 SCHWAB, K. A Quarta Revolução Industrial. São Paulo: Edipro, 2016.

2 SRNICEK, N. Capitalismo de plataforma. Trad. Aldo Giacometti. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Caja Negra, 2018. 128p.

3 CIDADÃO Recifense (canal no YouTube). Disponíveis em: <https://youtu.be/RBIGGGhyy1I>, <https://youtu.be/406nRY9tTWU> e <https://youtu.be/vkzSDonhn8A>. Acesso em: 27 de ago. de 2022.

4 GAIA, F. S. As novas formas de trabalho no mundo dos aplicativos: o caso “UBER”. 2018. 360 f. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2018.

KALIL, R. B. A regulação do trabalho via plataformas digitais. Blucher, São Paulo, 2020.

5 OLIVEIRA, M. C. S. Dependência econômica e plataformas digitais de trabalho: desvendando as estruturas da precificação e assalariamento por meios digitais. Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito, [S. l.], v. 31, n. 1, 2021. Disponível em: <https://periodicos.ufba.br/index.php/rppgd/article/view/45523>. Acesso em: 20 de ago. de 2022.

Murilo Carvalho Sampaio Oliveira é Juiz do Trabalho no TRT5 e Professor Associado da UFBA, Especialista e Mestre em Direito pela UFBA, Doutor em Direito pela UFPR e Estágio Pós-doutoral na UFRJ.

Beatriz Cerqueira Oliveira é Graduanda em Direito pela FD-UFBA. Atuou como bolsista PIBIC/UFBA no projeto “Assalariados Digitais e Proteção Trabalhista: perspectivas para o Direito do Trabalho”.

Randerson Haine de Souza Lopes é Advogado, Bacharel em Direito (FD-UFBA/2021) e em Humanidades (IHAC-UFBA/2016). Atuou como bolsista PIBIC/CNPq no projeto “Assalariados Digitais e Proteção Trabalhista: perspectivas para o Direito do Trabalho”.

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