Para o atual governo paulista, o trabalho no cárcere é uma forma de punição, e como tal deve ser explorado.
Ricardo Anderáos
Fonte: Jota
Data original da publicação: 29/11/2019
A privatização de presídios paulistas gerou uma guerra nos tribunais entre o governo estadual, de um lado, e a Defensoria Pública, o Ministério Público e organizações como Conectas e Humanitas360 de outro. Entre várias agressões às constituições federal e estadual, denunciadas por essas entidades, merece destaque a forma como o Governo do Estado de São Paulo pretende explorar o trabalho dos presos.
Há alguns meses, o executivo paulista suspendeu a operação de duas cooperativas de detentos criadas em Tremembé, com alegações pouco convincentes. A leitura atenta desse edital de privatização revela o porquê: o projeto do governo permite que a empresa vencedora explore o trabalho dos presos para maximizar seus lucros. A autonomia empreendedora das cooperativas de detentos coloca esse modelo em xeque.
A Lei de Execuções Penais diz que o trabalho dos detentos não é regulado pela Consolidação das Leis do Trabalho. Cabe ao estado intermediar a exploração dessa mão de obra, oferecendo como atrativo a isenção de obrigações trabalhistas. O projeto do governo paulista permite que as empresas que vão administrar os presídios explorem esses benefícios. Já as cooperativas oferecem ao preso muito mais do que trabalho. São uma opção para que, ao sair do cárcere, o ex-detento que dificilmente encontraria emprego possa conseguir sustento longe do crime, trabalhando em um negócio que é seu.
O governador João Dória afirma que as penitenciárias paulistas serão privatizadas “exatamente como nos EUA. Lá funciona bem, aqui também funcionará”. Mas o modelo de exploração do trabalho carcerário copiado pelo governador paulista é o ponto mais problemático do sistema carcerário norte americano. Há um ano, detentos de 17 estados do país entraram em greve denunciando a exploração análoga à escravidão a que são submetidos.
Esse foi apenas o mais recente episódio de um longo e triste histórico. A 13a emenda da Constituição dos EUA, que aboliu a escravidão no país em 1865, tem até hoje a seguinte redação: “Nem a escravidão nem a servidão involuntária existem nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito à sua jurisdição, exceto como punição por crime do qual a parte foi devidamente condenada“.O texto deixa claro: os EUA não eliminaram a escravidão, mas a transformaram em negócio a ser explorado por seu sistema de Justiça Criminal. O que talvez ajude a entender por que esse país tem a maior população carcerária do planeta.
Ao longo do século 20 o trabalho carcerário passou a ser remunerado em vários estados norte-americanos. Mas os valores baixíssimos (de US$ 1 a US$ 2 por dia) e seu caráter compulsório (quem se recusa a trabalhar pode ir para a solitária) reforçam a analogia à escravidão que motivou a greve do ano passado. A lista de empresas que já se beneficiaram desse trabalho semi-escravo inclui marcas que exploram o marketing do politicamente correto, como Whole Foods Market e Starbucks, além de gigantes como Microsoft, IBM, Boeing, Victoria’s Secret, Dell e McDonalds, entre outras.
O edital de privatização do governo paulista, que tem nesse triste cenário norte-americano sua referência, está sendo contestado por duas ações. A primeira é movida na Justiça estadual pela Defensoria Pública, o IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), Instituto Terra, Trabalho e Cidadania e a Conecta Direitos Humanos. O Instituto Humanitas360, que está se juntando a essa ação como Amicus Curiae, protocolou uma segunda, no Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, solicitando o cancelamento do edital por uma série de irregularidades técnicas. Elas vão de falta de transparência na audiência pública ao desrespeito à lei de licitações.
A questão de fundo que opõe o governo paulista e as organizações que se levantaram contra o edital são suas distintas concepções sobre significado do trabalho. Para o atual governo paulista, o trabalho no cárcere é uma forma de punição, e como tal deve ser explorado. Para as organizações sociais, é uma ferramenta de recuperação do detento para a vida em sociedade e uma forma de evitar a reincidência criminal, e como tal, deve ser valorizado.
Ricardo Anderáos é vice-presidente do Instituto Humanitas360.