Controlar os trabalhadores (I): a fusão entre trabalho, lazer e vigilância

Os capitalistas aproveitam o tempo de lazer dos trabalhadores para lhes prolongar o tempo de formação sem comprometer a duração da jornada de trabalho.

Pablo Polese

Fonte: Passa Palavra
Data original da publicação: 19/05/2016

A fusão entre processo de trabalho, tempo de lazer e formas de vigilância perfaz um dos aspectos centrais da relação entre a disseminação da ideologia capitalista e o método toyotista de organização do trabalho nas empresas. Vista em sua totalidade, essa imbricação faz parte do mecanismo mais amplo de integração das classes trabalhadoras às regras do jogo capitalista, em um processo levado a cabo pelas próprias empresas enquanto aparelhos de poder paralelos – e muitas vezes superiores – ao poder do Estado.

Ao longo da história, as empresas transnacionais conseguiram aumentar sua capacidade de ação sobre a população em geral, e não só sobre os trabalhadores que empregam. Um dos passos mais importantes desse processo consistiu na integração capitalista do tempo de lazer. Enquanto no século passado o tempo de lazer significava tempo de descanso e folga para fora do sistema, que dominava tão somente a atividade produtiva, ao longo do século XX “a economia dos tempos livres passou a obedecer ao mesmo sistema que vigora durante as horas de trabalho” (BERNARDO, 2005b:8). Não se tratou apenas do aproveitamento dos ócios em novas oportunidades de mercado, ou da incorporação do tempo livre enquanto tempo de consumo em shoppings centers etc., pois mais decisivo foi o fato de que as atividades realizadas durante os tempos livres passaram a contribuir para a própria formação e qualificação da força de trabalho.

O aumento da produtividade, sinônimo de progresso no sistema capitalista, demanda que o trabalho se torne cada vez mais complexo, o que implica não apenas um aumento da intensidade do trabalho mas também um aumento das qualificações dos trabalhadores. É por meio do aumento da qualificação dos trabalhadores que o Capitalismo consegue multiplicar o tempo, com mais produtos e mais valor sendo produzido em um mesmo tempo de trabalho que em condições técnicas e organizacionais inferiores resultam em menos produtos e menos produção de valor. Se observarmos que a exploração do valor se reduz à exploração do tempo, tempo de trabalho nas condições técnicas e “socialmente necessárias” de cada momento, perceberemos a importância dessa questão.

A ideia de multiplicação do tempo se refere à questão do trabalho complexo e sua conversão em unidades de trabalho simples, na composição do valor. O trabalho complexo gera mais valor em menos tempo, portanto é mais rentável para o capitalista. No entanto, João Bernardo observa que “surge aqui um problema”, pois a qualificação da força de trabalho não pode ser obtida apenas durante os anos normais de formação escolar, uma vez que “o progresso tecnológico é contínuo, e se os trabalhadores não forem pressionados a adquirir novas aptidões eles perderão muita da sua utilidade para os capitalistas”. Segundo João Bernardo o dilema é mais agudo na época atual, quando as máquinas conseguem multiplicar ilimitadamente o esforço físico. “Além da ação dos músculos, o patrão exige ao trabalhador a acção da inteligência”. Ora, “como conciliar o prolongamento dos períodos de formação da força de trabalho com a necessidade de manter a duração da jornada de trabalho?” Ou seja, como manter o tempo de trabalho nos patamares dados e, ainda assim, aumentar o tempo de formação e qualificação dos trabalhadores?

Os elementos técnicos e organizacionais do processo de trabalho em sua configuração recente fazem com que o aumento das qualificações dos empregados seja sinônimo de aumento da componente intelectual do trabalho. “A organização taylorista e fordista da empresa, assente no modelo mítico de um operário que obedecia sem pensar, foi ultrapassada pela organização toyotista, que estimula o trabalhador a pensar e descobriu a forma de lhe explorar a capacidade de raciocínio”. É então que os capitalistas aproveitam o tempo de lazer dos trabalhadores para lhes prolongar o tempo de formação sem comprometer a duração da jornada de trabalho. João Bernardo explica o modo como isso se dá:

os divertimentos eletrônicos oferecem a oportunidade de adestrar os trabalhadores de maneira contínua e sempre atualizada. É um facto inédito no capitalismo que uma nova tecnologia tivesse sido aprendida e aplicada sem revoltas e a uma enorme velocidade. Aprender brincando não é um dos princípios da moderna pedagogia infantil? Pois foi isto mesmo que os capitalistas fizeram às jovens gerações, distribuindo computadores pelas escolas e abrindo em cada esquina centros de diversões eletrônicas. Pela primeira vez na história da humanidade a mesma máquina, o computador, além de instrumento de trabalho passou simultaneamente a ser um instrumento de lazer (ibid: 9).

Por meio dessa fusão os capitalistas resolveram outro dilema: a implantação dos processos de trabalho de tipo organizacional toyotista impunha aos capitalistas a capacidade de explorar a capacidade de raciocínio dos trabalhadores, fazendo com que estes estejam permanentemente em busca de formas inovadoras de produzir, portanto, formas de aumentar os lucros da empresa, sem que nesse processo descubram meios de se emancipar. É necessário orientar que tipo de reflexão e pensamentos os trabalhadores desenvolverão. Assim, “para estimular a capacidade de raciocínio dos subordinados sem pôr em perigo as instituições é necessário que ao mesmo tempo que a inteligência seja adestrada ela seja alienada. Para isso servem a televisão e os divertimentos eletrônicos” (BERNARDO, ibid: op.cit).

Na sociedade urbana moderna “os processos de pensamento individuais são continuamente condicionados e interrompidos pelos meios de comunicação eletrônicos” (op.cit). A televisão e os vídeos, por exemplo, ocupam presença de destaque não apenas nos espaços privados das casas, mas também nos comércios e demais espaços abertos da vida pública. Por isso, “pensar consigo mesmo, se não é inteiramente impossível, exige pelo menos bastante coragem” (op.cit). Além disso temos os celulares, permanentemente ligados, que muitas vezes impedem qualquer conversa continuada, mesmo nas reuniões de amigos. Grosso modo, “o livre curso das ideias passou a ser obstruído” pela intromissão dos celulares e demais aparatos da indústria cultural e das tecnologias de informação. Já a leitura, tornada parcialmente inútil pela televisão e computadores, se apresenta como potencialmente prejudicial à estratégia capitalista, na medida em que permite que o pensamento se desvie por caminhos imprevistos. João Bernardo aponta que se durante o tempo livre os jovens limitarem seu interesse aos campo dos programas televisivos, vídeos e jogos eletrônicos (sempre passo a passo com a tecnologia mais avançada), entrecortados apenas pelos inevitáveis apelos dos celulares, “eles viverão ao ritmo pretendido pelas empresas de comunicação, e durante o trabalho serão cada vez mais destros de dedos e de olhares. Nada mais se espera deles” (ibid: 9). O capitalismo conseguiu assim:

inserir a população das regiões mais desenvolvidas numa promíscua rede de futilidades, em que a apreensão de mensagens banais e sincopadas através dos écrans de televisão e de vídeo é multiplicada pela emissão de mensagens não menos banais e sincopadas através dos telemóveis [celulares]. E como o conteúdo dos principais programas televisivos e dos clips de vídeo se deve a um número muito reduzido de grandes companhias transnacionais, estas diversões estão sujeitas a um controlo hipercentralizado. Meios de trabalho e meios de lazer, os instrumentos eletrônicos tornaram-se ao mesmo tempo meios de condicionamento ideológico. (ibid: 10)

Advém dessa capacidade de condicionamento ideológico a extensão do poder das transnacionais para muito além da esfera dos locais de trabalho. Estes mecanismos de integração ideológica da classe trabalhadora ao Capitalismo não atuam sem contradições: um mesmo aparato pode ser apropriado para fins inversos aos que lhe caracterizam, com os celulares, por exemplo, facilitando diálogos e reflexões que seriam dificultadas ou mesmo impossíveis sem a utilização desta tecnologia, para não falar da agilidade das pesquisas de conteúdo, facilitadas e muitas vezes só possíveis graças à internet. Em todo caso, tratam-se de exceções à regra, e os aparelhos de poder das empresas, somados aos aparelhos de poder do Estado terminam por ser muito competentes em suas tarefas confluentes de condicionamento ideológico dos trabalhadores em um sentido de integração à ordem e de anestesia do pensamento e agir críticos.

Por outro lado, quando os mecanismos de integração falham estão à postos os mecanismos de repressão. Mesmo antes do leque de medidas repressivas visando garantir a realização dos mega-eventos de 2013 a 2016 os interesses econômicos dos Programas de Aceleração do Crescimento levaram o governo brasileiro a implementar medidas de logística (deslocamento de contingentes militares, criação de vias alternativas em estradas importantes etc.) e de inteligência (espionagem, contra-inteligência, vigilância de organizações e militantes) visando impedir a realização de protestos populares em áreas tidas como “prioritárias de infra-estrutura”. Comentando a questão, Alex Hilsenbeck pontuou que:

numa época em que os lazeres já não são exteriores ao capitalismo é sintomático que as ações de protesto, no espaço e no tempo, se dêem fora do lugar de trabalho, sobretudo nos países em que existem grande número de desempregados e uma importância maior da economia paralela. Pois, os piquetes, as ocupações e os boicotes urbanos tentam superar as dificuldades de ação no interior das empresas, ainda mais quando esses atos são realizados por desempregados e empregados, trabalhadores rurais e urbanos. Dessa maneira, para além da retórica de uma preocupação apenas econômica, fica clara a intenção do governo de minar as novas formas, tempos e espaços de luta da classe trabalhadora, não inseridas nas relações de trabalho estáveis, bem como as redes de solidariedade e de ação que daí podem advir. (HILSENBECK, 2008)

Ainda quanto às empresas, há a questão da repressão à classe, não apenas no que diz respeito às guardas e seguranças privados, mas quanto à questão da vigilância. Além de servirem para o trabalho e para o lazer, os aparelhos eletrônicos se converteram em meios de vigilância, não apenas no sentido mais óbvio das câmeras de vídeo que registram os gestos dos empregados, mas mesmo na questão da introdução de programas, na própria maquinaria usada no trabalho, que orientam, ditam o ritmo e fiscalizam a atividade laboral. Com isso, aliás, o Capitalismo se tornou apto a abolir algumas das funções mais odiosas dos espaços de trabalho, a dos fiscais, cujas funções são executadas agora pelos equipamentos eletrônicos. “Se a fusão dos meios de trabalho e dos meios de lazer constitui um facto sem precedentes, também a fusão entre o processo de trabalho e o processo de vigilância é inteiramente inédita na história da humanidade” (BERNARDO, 2005b: 10).

Referências

BERNARDO, João. (2005). Democracia totalitária. Teoria e Prática da empresa soberana. RJ: Cortez.
BERNARDO, João. (2005b). Sobre o Democracia totalitária. (disponível aqui)
HILSENBECK FILHO, A. M. (2008). Governo tenta impedir lutas sociais em áreas chave. Jornal Mudar de Vida, Portugal.

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