Celso Furtado, cujo centenário celebramos hoje, nos legou uma teoria econômica original que expõe as entranhas da armadilha do subdesenvolvimento. Dedicou sua vida a contribuir, na teoria e na prática, a um projeto de nação que arrancasse o país da condição subalterna. Mas a utopia desenvolvimentista, de conciliar a tríade “capitalismo”, “democratização” e “soberania”, encontrou seus limites na dinâmica da luta de classes.
Juliane Furno
Fonte: Jacobin Brasil
Data original da publicação: 26/07/2020
No dia 26 de julho completam-se 100 anos do nascimento de um “gigante” do pensamento social e econômico brasileiro. Ainda que Furtado jamais tenha se reivindicado um socialista, chegando, mais de uma vez, a ser categórico na rejeição ao marxismo, suas principais contribuições analíticas são uma arma nas mãos dos que têm compromisso com uma transformação radical do capitalismo. A ocasião é oportuna para uma justa celebração a sua memória, a partir do resgate das suas principais contribuições teóricas e políticas, mas também para uma reflexão crítica sobre como podemos herdar as armas conceituais de Furtado para colocá-las a serviço da transformação socialista da sociedade brasileira.
Celso Furtado ocupa lugar de destaque ao lado de outros grandes expoentes do pensamento social autêntico – como Florestan Fernandes e Caio Prado Júnior – cujas investigações foram capazes de identificar o que é “geral” e o que é “particular” do capitalismo brasileiro. Ainda que o Brasil seja evidentemente um país capitalista, as “leis” gerais de acumulação capitalista não são suficientes para compreender a especificidade brasileira. O desenvolvimento do capitalismo brasileiro segue uma trajetória não-clássica, a partir da desagregação de um modo de produção pregresso que nunca foi feudal, e se desenvolve em um período histórico específico de passagem do capitalismo concorrencial à sua etapa monopolista em escala internacional. A tarefa era, portanto, compreender o capitalismo brasileiro – seu subdesenvolvimento, seu caráter dependente, a qualidade de sua burguesia – não apenas no que tem de capitalista, mas também, especificamente, no que tem de brasileiro, na sua particularidade histórica e geográfica.
Executar essa tarefa, no entanto, não foi nada trivial. Celso Furtado foi um economista contemporâneo de distintos intérpretes de Brasil que defendiam um diagnóstico apriorístico, quase esquemático, do desenvolvimento do capitalismo brasileiro – com consequências graves tanto para o desenvolvimento da teoria quanto para a orientação estratégica da luta política. Não foram poucos os valorosos intelectuais e militantes que, transplantando concepções gerais que não correspondiam à situação nacional concreta, reproduziram modelos toscos, incapazes de dar conta das tendências reais, seja na economia seja na política. Aos trancos e barrancos, a esquerda brasileira precisou aprender uma dura, mas valiosa lição: a história do desenvolvimento de uma nação não pode ser medida em réguas universais, sob o risco de cair em uma análise a-histórica, linear, etapista.
Ao atribuir uma certa primazia a supostos “resquícios” feudais, que, antes de qualquer outra coisa, precisariam ser eliminados da realidade social brasileira, esse tipo de análise conduzia naturalmente à prescrição de uma aliança tática da classe trabalhadora com a fração burguesa urbano-industrial. O equívoco no diagnóstico, nesse caso, resultou em sérios erros de tática, induzindo a uma política impotente de crença em uma suposta burguesia nacional comprometida com a luta antiimperialista. Celso Furtado – às vezes contra si mesmo – pode nos ajudar a ver para além dessas ilusões.
Teoria e prática contra o subdesenvolvimento
Celso Furtado será fundamental no diagnóstico, e denúncia, do caráter estrutural das posições de desenvolvimento e subdesenvolvimento. Rejeitando as sucessivas tentativas que suplantar o termo “subdesenvolvido” – por eufemismos que implicavam uma escala natural de estágios como “em desenvolvimento” ou “atrasados” – Furtado vai insistir que os países desenvolvidos não se desenvolveram por geração espontânea, nem haviam passado por uma etapa anterior de subdesenvolvimento. Ainda que não utilize categorias marxistas (como “acumulação primitiva de capitais”), a ideia furtadiana de que a periferia colonial subdesenvolvida transfere valor ao centro desenvolvido, ajuda na identificação da relação constitutiva entre desenvolvimento e subdesenvolvimento, apontando que os países desenvolvidos haviam chegado aonde estavam somente por meio da expropriação de valor, sugado da periferia, em um processo de acumulação originária que possibilitou superar a etapa mercantil/comercial e adentrar na aurora do capitalismo industrial propriamente dito.
Furtado foi um homem vocacionado para a atividade política. Profundamente comprometido com o “pôr a mão na massa”, não satisfeito em diagnosticar problemas, mas procurando também participação da elaboração das políticas públicas capazes de enfrentar as entraves estruturais que impediam o Brasil de alçar a rota do desenvolvimento. Por isso vai dedicar a vida à elaboração de uma teoria do subdesenvolvimento, que identificasse as raízes dos impasses nacionais e ao mesmo tempo iluminasse possíveis caminhos para a sua superação. É isso também que explica a opção de Celso Furtado por uma carreira pública, de funcionário do Estado – trabalhando no Departamento Administrativo do Serviço Público [DASP], passou pela carreira de funcionário internacional na CEPAL, e, ao retornar ao Brasil em 1959, atuou na SUDENE, BNDES, Ministério do Planejamento e Ministério da Cultura.
Para Furtado, o “desenvolvimento econômico é, basicamente, aumento do fluxo de renda real, isto é, incremento na quantidade de bens e serviços por unidade de tempo à disposição de determinada coletividade”. O que gera a diferença fundamental e dá origem à linha entre desenvolvimento e subdesenvolvimento é a orientação dada à utilização do excedente criado pelo aumento da produtividade. Nas economias centrais do capitalismo central, os frutos do progresso tecnológico, em que pese a persistência da divisão de classes, foi de alguma medida socializado, possibilitando um acesso mais democráticos aos ganhos da evolução material.
Já o subdesenvolvimento diz respeito ao “caso especial de processos sociais em que aumentos de produtividade e assimilação de novas técnicas não conduzem à homogeneização social, ainda que causem elevação do nível de vida médio da população”. A especificidade do subdesenvolvimento está em que o excedente de riqueza produzido socialmente em vez de ser reintroduzido na economia nacional, gerando emprego, renda e modernizando o padrão produtivo, “vaza” para o exterior. Por um motivo simples: elites domésticas se utilizam desse recurso para imitar – nas palavras de Furtado, “mimetizar” – o padrão de consumo das elites dos países desenvolvidas, que não encontra, obviamente, correspondência na estrutura produtiva nacional. A consequência é que os ganhos econômicos internos são sacrificados no consumo supérfluo da minoria proprietária.
A dependência é o corolário do subdesenvolvimento. A dependência cultural com relação ao padrão de consumo manifesta-se, também, no nível produtivo. A classe dominante brasileira importou um padrão produtivo e tecnológico do centro, intensivo em capital. Em uma sociedade marcada por um exército industrial de reserva permanentemente hipertrofiado – ou, nos termos de Furtado, “um excedente estrutural de força de trabalho” – o processo de industrialização pode caminhar junto com a elevação das desigualdades sociais, já que, ao poupar mão-de-obra, garantiu a permanência de baixos salários por meio do excesso de oferta de trabalho, e assim permitiu a extração de lucros extraordinários via ampliação da mais-valia absoluta.
Das vantagens comparativas à deterioração dos termos de intercâmbio
Dado o diagnóstico de que o desenvolvimento econômico nacional estava bloqueado pela drenagem dos recursos internos ao exterior, devido o consumo conspícuo importado das elites brasileiras, Celso Furtado sugeriu que o Estado atuasse de forma intencionalizada, com propósito consciente e planejamento, para modificar o perfil da demanda interna, restringido forçosamente o consumo supérfluo e elevando a taxa de poupança e do investimento interno. Junto com a CEPAL, foi pioneiro em denunciar a falácia equilibrista da velha “Teoria das Vantagens Comparativas” ricardiana, segundo a qual os países deveriam se especializar naquilo para os quais fossem naturalmente dotados de melhores fatores de produção.
Na visão de boa parte dos economistas liberais, inspirados em David Ricardo, o Brasil deveria direcionar esforços prioritários no desenvolvimento de sua vocação agrária. Raul Prebisch, intelectual que exerceu profunda influência sobre Celso Furtado, diagnosticou que – bem ao contrário do que a opinião então corrente apregoava – a relação entre os preços reais dos produtos primários e industriais, longe de ser equilibrada, movimentava-se em direção favorável aos segundos, o que recebeu o nome de “intercâmbio desigual dos termos de troca” ou “deterioração dos termos de intercâmbio”.
A especialização produtiva em produtos primários, em contexto de “livre” comércio global, impunha outras séries limitações aos países subdesenvolvidos, como a vulnerabilidade aos ciclos econômicos, a tendência ao desemprego estrutural como resultado do baixo crescimento da demanda internacional por produtos primários, e o permanente desequilíbrio no balanço de pagamentos nacional.
Segundo Furtado, obter lucros substanciais e dotar a economia brasileira de forte incremento de renda até poderia ser mais fácil se concentrada na atividade mercantil-exportada. No entanto, essa opção representaria – sem a modernização e a industrialização da economia – apenas a repaginação dos velhos problemas. A mera expansão da produção poderia inflar o lucro dos exportadores, mas na ausência da disseminação do progresso técnico, o país permaneceria suscetível à dinâmica externa dos preços, vulnerável à eclosão de uma nova crise, cujo legado fatalmente seria mais pobreza e o aprisionamento em uma estrutura produtiva pouco sofisticada.
Para dotar a economia brasileira de autonomia econômica e soberania política, a industrialização seria uma condição necessária. Celso Furtado, no entanto, ao contrário do que faz crer uma leitura vulgar, jamais bradou que a industrialização seria condição suficiente para romper com o subdesenvolvimento.
A partir de um balanço do processo de crescimento industrial brasileiro até o início dos anos 1960, Furtado vai identificar, no seu livro “A pré-revolução brasileira”, que a sociedade brasileira vivenciava um processo acelerado de diversificação industrial. No entanto, a “revolução brasileira” somente se concretizaria se os ganhos da modernidade industrial fossem socializados com a maioria do povo. Na prática, portanto, dependeria da materialização de um conjunto de reformas estruturais de base. Sobre as reformas, Furtado chamava atenção: “trata-se, evidentemente, de reivindicações ou recomendações que traduzem uma tomada de consciência de problemas estruturais, portanto, de natureza essencialmente qualitativa”.
O central para Furtado é que industrialização e transformações estruturais no capitalismo brasileiro deveriam caminhar conjuntamente, com um Estado democrático subordinando os capitais individuais a um projeto nacional de desenvolvimento, capaz de dotar o Brasil de condições de se autonomizar como nação. A “revolução brasileira” dependia das reformas de base, amparadas na mobilização popular de massas e na vontade política organizada: “A solução para esse problema é de natureza política, antes de ser econômica (…) a luta contra o subdesenvolvimento é um processo de construção de estruturas, implica na existência de uma vontade política orientada por um projeto”.
A contra-ofensiva neoliberal e a construção interrompida
Aúltima fase teórica de Celso Furtado vai ocorrer, concomitantemente, com transformações estruturais do capitalismo global. Em um dos seus principais livros, “Brasil: a construção interrompida”, Furtado lamenta que os ventos que sopravam no início da década de 1990 marcavam a sua geração com um sentimento de profunda angústia sobre o futuro do país. Sentindo-se contra a corrente, Furtado escolhe não resignar-se. “Há momentos na vida dos povos em que a falta mais grave dos membros da intelligentsia é a omissão”, afirma para justificar a ousadia de escrever um livro, no calor dos acontecimentos, de denúncia ao clima de retrocesso, em plena época de “fim da história” e triunfalismo liberal.
Até a década de 1980, observa Furtado, havia um “Brasil em construção”, por mais crítico que fosse frente à forma específica como se deu o processo de industrialização nacional. Ao longo dos anos 1980, o projeto de superação do subdesenvolvimento foi sendo abandonado. Do ponto de vista histórico, a janela “desenvolvimentista”, que vigorou entre 1930 e 1980, havia se fechado. Aquele capitalismo “regulado” do pós-guerra se desfazia. O choque nos juros pelo Banco Central norte-americano (FED) em 1979 e a forte apreciação do dólar foram decisivos para colocar o mundo inteiro em recessão. Aos países subdesenvolvidos coube um imenso sacrifício ao seu desenvolvimento: a dívida externa quadruplicou, resultando em transferência sistemática de recursos ao exterior e, por fim, a submissão à cartilha de “reformas estruturais” do FMI. A reorganização do capitalismo internacional foi selada com o retorno farsesco das antigas doutrinas liberais, inaugurando a era do neoliberalismo.
Do ponto de vista interno, a submissão humilhante com acordos de pagamento da dívida externa nos anos 1980 deixou uma herança maldita. Sob a pressão para realizar permanentes superávits fiscais, garantindo a transferência financeira ao exterior, comprometemos nossa capacidade para importar, fechando nosso sistema econômico para a tecnologia da Terceira Revolução Industrial, o que resultaria em um profundo, e persistente, atraso tecnológico. Para Furtado, “a vitória esmagadora das idéias do FMI levou a situação que presenciamos sem corar, que é o planejamento de uma recessão de elevado custo social para curar-se de uma inflação, agravando a concentração de renda”. Nos anos 1990, a transição passiva que fizemos rumo a globalização produtiva e financeira nos cobrou um alto preço: “o processo de globalização interrompeu o avanço brasileiro na conquista de autonomia para a tomada de decisões estratégicas”. A predominância da lógica das corporações transnacionais na ordenação das atividades econômicas acabaria apontando para a inviabilização da ideia mesmo de um projeto nacional.
Os anos 1980 e 1990 testemunharam o desmoronamento das estruturas que permitiram a inserção da América Latina na industrialização. Agora, sem instrumentos de política econômica, com um Estado Nacional esvaziado de soberania e de função política só nos restava ser dirigido por grandes empresas que respondem politicamente aos seus países de origem, agravando a dependência política e econômica. Assim, para Celso “a consequente redução da margem de autonomia das autoridades nacionais torna mais difícil alcançar a superação do subdesenvolvimento”.
Os limites da utopia furtadiana
Essa retomada histórica e teórica da vida e obra de Celso Furtado buscou prestar, em seu centenária, uma homenagem à clareza e rigor da análise de um intelectual com os pés no chão. Furtado dissecou a estrutura profunda da economia brasileira e sua relação com o capitalismo internacional, explicitou seu caráter subdesenvolvido e dependente, denunciou sua natureza brutalmente concentradora. Esse diagnóstico é talvez o melhor já empreendido por qualquer economista do nosso tempo, partindo do todo para dar inteligibilidade aos elementos particulares. É por isso que Celso Furtado continua hoje um patrimônio para os socialistas brasileiros, oferecendo uma análise precisa dos nossos problemas estruturais, desmistificando os mecanismos de reprodução da pobreza e da desigualdade. Qualquer perspectiva emancipatória da classe trabalhadora precisa partir de um sólido conhecimento teórico e empírico do modo de produção capitalista particular historicamente constituído no Brasil.
No entanto, apesar do diagnóstico preciso, a solução defendida por Furtado é inconsistente e, em última instância, incorre em certa ingenuidade a respeito do caráter da dominação da classe. A utopia furtadiana que advoga ser possível conciliar a tríade “capitalismo”, “democracia” e “soberania” é inalcançável nos marcos do capitalismo dependente brasileiro. Nesse sentido, outro autor cujo centenário também comemoramos nesta semana, Florestan Fernandes, merece ser chamado ao debate. O caráter “interrompido” da revolução burguesa brasileira coloca em profunda contradição “capitalismo” e “democracia”. Ainda que o conjunto das reformas estruturais de base propagadas por Furtado não fossem em nada incompatíveis com um capitalismo moderno, especificamente no Brasil essas reformas adquirem caráter revolucionário, justamente pela impossibilidade de realizarem-se plenamente sem ameaçar a dominação de classe.
Aliás, esse costuma ser o principal limite dos economistas democráticos que não se filiam à tradição teórica herdeira de Karl Marx, ou não encaram a dinâmica dos conflitos sociais e políticos a partir da luta de classes – a partir da perspectiva da classe trabalhadora. A Celso Furtado, apesar do seu gênio, escapou que o caráter da consumação da revolução burguesa foi dependente. O resultado histórico foi uma burguesia de vocação profundamente anti-nacional, anti-democrática e anti-popular, incapaz de – e, a bem da verdade, desinteressada em – liderar um projeto nacional de desenvolvimento. Assim, “soberania” e “capitalismo”, na periferia, são dimensões contraditórias.
Todas as nossas experiências de avançar substancialmente em revoluções “dentro da ordem”, tais como a luta pelo conjunto das reformas de bases nos anos 1960, transformaram-se, involuntariamente, em revolução “contra a ordem”, na medida em que sua concretização não poderiam ser comportada no capitalismo dependente e subdesenvolvido brasileiro. A tentativa de levar a cabo a “revolução nacional” nas palavras de Florestan Fernandes, ou a “revolução brasileira” no vocabulário furtadiano, foi esmagada pelo “Tacão de Ferro” da burguesia brasileira, que consumou sua revolução burguesa como uma contrarrevolução preventiva e permanente, por meio do golpe de 1964, instalando uma dominação propriamente autocrática em um novo padrão de dominação externa caracterizada pelo o que Florestan Fernandes denominou de “imperialismo total”.
A luta por democracia e por soberania não cabe nos estreitos limites permitidos pelo padrão da dominação de classe aqui instalada. Em face das características socioeconômicas que nos forjaram como nação plenamente capitalista, as tarefas democráticas, nacionais e populares não foram e não podem ser concretizadas pela burguesia brasileira. Tais tarefas são relegadas, portanto, em uma dimensão ininterrupta e revolucionária, às mãos da classe trabalhadoras que, a partir da luta pela sua concretização, enfrentam e ultrapassam os limites do capitalismo.
Juliane Furno é doutora em desenvolvimento econômico pela Unicamp.
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