Conheça transexuais que venceram o preconceito no mercado de trabalho

Quatro décadas depois de feministas transformarem sutiãs em meias-taças de fogo por direitos iguais aos dos homens, um grupo estimado em 5.000 brasileiras ainda busca espaço para comemorar o Dia Internacional da Mulher. As transexuais até hoje tentam convencer familiares de que gênero (masculino ou feminino) se define pelo que sentem — e não pelo que carregam entre as pernas. Na batalha diária pelo reconhecimento como mulheres, o embate mais difícil é com os patrões.

Faltam dados oficiais sobre o grupo, mas militantes afirmam que 90% das pessoas que creem ser mulheres em corpos de homens se prostituam para sobreviver. Não vão para a rua por escolha, mas por falta de opções. Também há quem consiga romper esse padrão.

A  Folha de São Paulo conversou com uma advogada, uma professora, uma assistente social, uma funcionária do Sesc e uma cartunista que conseguiram impor sua feminilidade no mercado de trabalho paulistano. Laerte Coutinho, a cartunista, revelou que vai colocar próteses de silicone daqui a três meses. Todas concordam que, além do preconceito, a principal barreira do mercado é a burocracia.

Diferente da medicina — só na capital, 12 cirurgias para mudança de sexo são feitas por ano pelo SUS —, a lei brasileira ainda não regulamenta critérios para alteração de nomes em documentos. Isso já acontece em países como Argentina e Portugal.

Assim, apresentar RG e CPF com nomes masculinos é motivo de constrangimento e frequentes “nãos”, dizem as entrevistadas. “Pedem certificado de reservista, mas me vejo mulher desde criança, não tenho esse documento”, diz uma delas.

Bisturi

Para o psiquiatra Alexandre Saadeh, coordenador do laboratório que atende a este público no Hospital das Clínicas, “embora tenham corpos masculinos, as transexuais se percebem como mulheres e têm de ser tratadas assim”. Seu trabalho é acompanhar as pacientes que decidem encarar cirurgias de mudança de sexo. Além da satisfação pessoal, o bisturi é também um caminho para encontrarem harmonia entre a forma como se percebem e a maneira como são vistas por aí. “Transexualismo não define personalidade”, diz o médico, que há 20 anos trabalha com o grupo. “Considerá-las promíscuas é o mesmo que dizer que pessoas de olhos azuis são emotivas. Não faz sentido.”

Segundo Saadeh, o consenso internacional é de que uma em cada 40 mil pessoas nascidas homens seja transexual. Conheça cinco delas a seguir.

“Liguei dizendo que era transexual”

Apesar da sobrancelha e das unhas feitas, Ariadna Seixas, 28, ainda vestia roupas masculinas quando soube que passou no concurso de emprego do Sesc Consolação. Foram dois anos entre a aprovação e o início do batente — tempo suficiente para tomar hormônios e mudar seu rosto em busca da aparência que considerava ideal.

O coração apertou em 2012, quando começaria, enfim, a trabalhar. “Eu tinha feito o processo de um jeito e de repente estava de outro”, diz.

Tirou maquiagem, prendeu os cabelos pretos e pôs roupas largas. No Sesc, assinou a papelada do novo cargo: funcionária do vestiário masculino. Foram duas horas de choro dentro do ônibus que a levou do centro até sua casa, na zona norte. “Não dormi. No dia seguinte, liguei dizendo que era transexual. Que não queria uma vaga masculina. Que não conseguiria entrar naquele vestiário.” Ouviu: “Vou verificar”. O telefone tocou em dois dias.

“Sua vaga foi realocada. Agora o seu trabalho será como orientadora de público, com crachá e uniforme femininos.”

Em seu primeiro emprego “depois da transição”, ela interage com centenas de visitantes todos os dias. “Sei que é uma sorte encontrar um trabalho assim e não precisar me esconder.” Além de trabalho, Ariadna encontrou um marido, com quem vive há dois anos. “Ele sempre foi heterossexual. Claro, ué. Eu sou mulher.”

“Sou travesti, rica, fina, chique e maravilhosa. E lésbica”

“Falam que sou corajosa”, diz Márcia Rocha, 49, combinando blusa florida e saia de renda com brincos dourados.”Sou é covarde. Fiquei no armário por 30 anos.” Márcia foge aos clichês transexuais. É sócia do Club Athletico Paulistano, no Jardim América, formou-se em direito na PUC, tem quatro empresas no ramo de imóveis e transporte e acaba de por à venda um casarão avaliado em R$ 8 milhões na região de Alphaville.

Parte do dinheiro vem de berço: é filha de pai construtor (“minha casa vivia cheia de ministros”) e “mãe rica”. “Gosto de me sentir mulher e externar isso”, diz, bebendo suco de tomate no La Casserole, restaurante fino no Arouche. Ela dá um gole e avisa: “Mas sou lésbica. Curto mulheres.”

A mudança corporal começou durante o casamento de oito anos com a ex-mulher. Três cirurgias e 880 ml de silicone foram a gota d’água. “Eu já estava menina demais e ela perdeu o tesão. Foi difícil, éramos muito unidas.” Hoje, diz-se travesti. “Dizem que pega mal. Quero mais é que pegue mal para quebrar logo o estigma. Sou travesti, rica, fina, chique e maravilhosa.”

“Na faculdade, sempre diziam: nossa você nem parece. Odiava”

Fernanda Moraes, 42, fazia medicina na Universidade Estadual do Amazonas quando decidiu vir para São Paulo, em 1999. Calma e articulada, ela tira o cabelo do ideograma tatuado no ombro e diz que mudou de Estado para conseguir ser “plenamente” quem era. “Entrei na faculdade mulher. Sempre diziam: ‘Nossa, você nem parece [uma travesti]’. Odiava”.

Para ser aceita numa faculdade paulistana, precisava de um estágio. “Ninguém quis me contratar. Diziam que a vaga estava fechada e, semanas depois, eu via colegas sendo recrutadas.”

Foi morar com uma cafetina na rua Paim e se prostituiu por cinco anos. “Nunca gostei. Demorou até as portas se abrirem.” Desistiu da medicina, formou-se em Serviço Social pela Unesp e trabalhou por quatro anos na prefeitura, atendendo prostitutas e moradores de rua. “Vi muitas colegas morrendo. Um dia, não aguentei mais sofrer e pedi demissão.” Hoje, busca um novo emprego formal em sua área. Seu pai, católico, diz que a ama, mas que não aceita. “Da última vez, peguei sua mão e disse: ‘Sou ou não sou uma mulher bonita?”. Ele só sorriu.

“Sou mais respeitada na escola que na noite”

“Existe uma pirâmide LGBT. O T é a letra mais vulnerável”, diz Bianca Soares, 38, professora de inglês há 20 anos. Ela dá 50  horas de aulas semanais em quatro escolas, públicas e particulares.

“Fiz concurso antes de me transformar. Não sou boba, o estereótipo é enorme”, conta, antes das aulas noturnas na Escola  Estadual Henrique Fernando Gomes Estudante, em Barueri.

Bianca recebeu a Folha de São Paulo de saia dourada e uma blusa que, olhando com cuidado, mostrava um sutiã de oncinha. “Querido, se a aula for boa, não vão ser saia, cabelo ou peito que farão diferença, tá? E eu imponho respeito.” Durante a entrevista, alunos cumprimentavam. “Oi, prô”. “Boa noite, profa.” Ela fica satisfeita. “Sou rígida”, diz.

Longe dali, é conhecida como Bianca Exótica. Ganhou fama em São Paulo com performances em clubes, desfilou para Alexandre Herchcovitch e foi entrevistada por Jô Soares. “Mas sou mais respeitada na escola do que na balada”, diz, sempre segura.

“Não me sinto mais exótica. Sou uma mulher normal. É esse o meu prêmio”.

Vou colocar silicone em junho

“Gosto de ser chamada de ela, a Laerte. Sou uma mulher, mesmo que minha mãe não me trate assim”, conta, entre um café e dois pães de queijo, a cartunista Laerte Coutinho, 62. Faz cinco anos desde a primeira vez em que apareceu de saias.

Há mais ou menos um ano, usa sutiãs com enchimento. Não será por muito tempo. “Vou colocar silicone em junho, mas ainda não sei quanto”, revela.

Ela explica que o termo “crossdresser” foi útil enquanto se assumia publicamente. “Era sutil. Mas, mais tarde, vi que era um termo classista em relação às travestis. Crossdresser é classuda, travesti é suja. Então virei travesti.”

Ao contrário do que costuma acontecer, a transição lhe rendeu visibilidade. “Recebi convite até da Playboy.” Acabou aparecendo nua (mas sem mostrar tudo) na revista Rolling Stone. “Foi um nu real, meu corpo não dizia ‘foda-me’.”

Agora atua também como ativista. “Pedimos direitos que se estendam à sociedade inteira, não a só um grupo. Quero que os filhos do [deputado federal] Jair Bolsonaro também possam ser gays, lésbicas, trans, o que for. E o Estado não pode interferir.”

Agência exclusiva tem poucas vagas

Fundado no ano passado, o Transempregos (transempregos.com.br) é o primeiro site do Brasil com vagas exclusivas para travestis (homens que oscilam entre os gêneros feminino e masculino) e transexuais. Manter-se no ar é o maior desafio. “Há poucas vagas. Estamos nos reunindo com grandes empresas para garantir anúncios frequentes e de qualidade”, diz uma das fundadoras.

Fonte: Folha de São Paulo
Texto: Ricardo Senra
Data original da publicação: 09/03/2014

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