Leonardo Sakamoto
Fonte: UOL
Data original da publicação: 11/04/2018
Os 10% da população com os maiores rendimentos detinha 43,3% do total de rendimentos do país, enquanto a parcela dos 10% com os menores rendimentos representava 0,7% da massa no ano passado.
Enquanto isso, o 1% com o rendimento mais elevado (média mensal de R$ 27.213) recebia 36,1 vezes o rendimento da metade da população com os rendimentos menores (média mensal de R$ 754). Os dados pertencem à Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), de 2017, divulgados nesta quarta (11/04). Quem gosta de tabelas gigantes, pode baixar uma através deste link e analisar os dados por conta própria.
O Brasil é um transatlântico de passageiros, com divisões de diferentes classes, com os mais ricos tendo mais conforto em suas cabines. Já fiz essa analogia antes, mas gostaria desenvolvê-la melhor.
Os mais endinheirados chegaram na primeira classe das mais diferentes formas. Alguns por seu próprio suor, outros herdando riquezas e oportunidades e há os que superexploraram o trabalho alheio.
Não estou entrando no mérito de como chegamos a essa situação, nem propondo uma revolução imediata para que cabines diferenciadas deixem de existir – apesar de ser uma maravilhosa utopia.
O ideal, pra já, seria que as cabines de terceira classe contassem com a garantia de um mínimo de dignidade e as de primeira classe pagassem passagem proporcional à sua renda. Uma Reforma Tributária que trouxesse de volta a taxação em 15% sobre dividendos recebidos de empresas, reajustasse a tabela do Imposto de Renda (isentando a maior parte da classe média e criando alíquotas de 30 a 40% para os que ganham muito) e reduzisse os impostos sobre o consumo (com exceção dos produtos de luxo, claro) seria um bom pontapé inicial nesse sentido.
E que, ao contrário do Titanic, tenhamos botes salva-vidas para todos e não apenas aos mais ricos quando o barco fizer água, ou seja, em momentos de crise. Pois, hoje, ao invés de oferecer medidas que amorteçam o sofrimento dos mais pobres, que são os que mais sentem os efeitos de uma depressão econômica, esse transatlântico tupiniquim tenta preservar os mais ricos e as associações empresariais que trocam governos e elegem representantes.
Pelo contrário, joga o peso da crise nas costas dos mais pobres, como a aprovação pelo governo Michel Temer da PEC do Teto dos Gastos (limitando investimento públicos em áreas como educação e saúde pelos próximos 20 anos), a Lei da Terceirização Ampla e a Reforma Trabalhista.
Na prática, seguimos sendo um navio que carrega escravos, com parte dos passageiros chicoteando a outra parte para que sigam remando.
Combater a desigualdade não significa fazer todo mundo vestir um mesmo tipo de roupa, comer a mesma comida, receber o mesmo salário, viver no mesmo tipo de casa. Mas garantir oportunidades iguais, pelo menos no início da caminhada de cada um, e depois atuar para que todos tenham seus direitos efetivados.
A desigualdade dificulta que as pessoas vejam a si mesmas e as outras pessoas como iguais e merecedoras da mesma consideração. Leva à percepção de que o poder público existe para servir aos mais abonados e controlar os mais pobres. Ou seja, para usar a polícia e a política a fim de proteger os privilégios do primeiro grupo, usando violência contra o segundo, se necessário for. Com o tempo, a desigualdade leva à descrença nas instituições. O que ajuda a explicar o momento em que vivemos hoje.
O triste é que, para muitos, nada disso importa. Preferem um não país do que dividir oportunidades. A desigualdade social, que seria motivo de vergonha em qualquer lugar civilizado, aqui é razão de orgulho.
O importante para uma parte da população, tanto a que está no topo quanto a que sonha em estar lá, não é reduzir a diferença, mas garantir que ela seja devidamente glamourizada e, a ascensão social, mitificada. Assim, o indivíduo passa a não desejar justiça social coletiva, mas um lugar ao sol para si mesmo. E danem-se os outros.
Como sempre digo, o problema não é alguém ter um apartamento de 400 metros quadrados enquanto outro mora em um de 40. O que desconcerta é uma sociedade que acha normal um ter condições para desfrutar de um apê de 4 mil metros quadrados enquanto o outro apanha da polícia para manter seu barraco em uma
ocupação de terreno, seja em São Bernardo do Campo, Itaquera, Grajaú, Osasco, Pinheirinho, Eldorados dos Carajás, onde for.
Não apenas acha normal, como bate palma.
Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e o desrespeito aos direitos humanos no Brasil. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão.