2% do território do município de São Paulo concentra 50% dos pontos de retiradas de bicicletas compartilhadas; acesso às bicicletas e sistema de bonificações privilegiam entregas em determinadas regiões.
Lívia Maschio Fioravanti
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 05/10/2022
Qualquer pessoa de qualquer lugar de grandes cidades pode pedir lanches ou refeições por delivery. Porém, quem entrega, principalmente os trabalhadores que se locomovem por bicicleta em São Paulo, muitas vezes precisa estar nas áreas com maior número de pedidos, nas quais podem ganhar mais.
Em um levantamento de campo realizado entre janeiro e abril de 2022, no escopo de uma pesquisa da Universidade de São Paulo, verificou-se que a distribuição dos pontos de bicicletas compartilhadas e os sistemas de bonificação, por meio das quais os entregadores recebem um valor extra para cada entrega, forçam o deslocamento desses entregadores para as áreas mais centrais da cidade, onde já se concentram os restaurantes e os clientes mais abastados.
Desse modo, os cicloentregadores que moram em bairros periféricos da cidade e da Grande São Paulo despendem horas em ônibus, metrô ou trem para retirar – às vezes também com horas de espera – uma bicicleta elétrica nas quatro bases do iFood Pedal ou uma convencional, menos disputada, nos 259 pontos do Bike Itaú, localizados predominantemente na zona sul (Itaim Bibi, Jardim Paulista e Moema) e oeste (Pinheiros), onde há também uma forte valorização imobiliária.
Essa concentração de bicicletas atende locais que, há dez anos, já despontavam como aqueles com maior número de entrega de refeições. Em 2012, segundo levantamento realizado pelo iFood, os bairros paulistanos com mais pedidos eram justamente Itaim Bibi, Pinheiros, Jardim Paulista e Moema.
Metade dos pontos de retirada de bicicletas compartilhadas – considerando as estações do Bike Itaú e as bases do iFood Pedal – está localizada do vetor sudoeste de valorização de São Paulo, que abrange centralidades econômicas e equipamentos importantes para o setor corporativo, como se vê na Av. Faria Lima e na Av. Luís Carlos Berrini. O vetor sudoeste corresponde a 3% da área do município de São Paulo. Sem considerar os setores da Marginal Pinheiros onde não há pontos do Bike Itaú ou do Ifood Pedal, são 132 locais para retiradas de bicicleta em apenas 2% do território municipal.
Mapa 1. Locais de retirada de bicicletas compartilhadas e o vetor sudoeste de valorização
Alguns dos cicloentregadores entrevistados para a pesquisa relataram que tentam usar bicicletas próprias, mas sempre acabam por recorrer às compartilhadas após sofrerem furtos ou roubos e como forma de evitar os custos de manutenção, especialmente da bicicleta elétrica. Para retirar as bicicletas compartilhadas, eles têm de assinar o Plano iFood Pedal a um custo de R$9,90 por semana, mais um real por cada retirada de bicicleta. Nesse plano, eles têm a possibilidade de duas retiradas por dia de quatro horas cada; as bicicletas são liberadas às 10h30 e às 17h após agendamento prévio no próprio aplicativo ou fila de espera. O plano iFood Pedal também permite a retirada a qualquer momento das bicicletas convencionais do Bike Itaú, mas, se a concorrência é menor, o desgaste físico é maior que o da elétricas.
Bases localizadas nas áreas mais valorizadas da cidade também têm mais bicicletas. A do iFood Pedal na rua Cardeal Arcoverde, em Pinheiros, oferece, em média, 250 e a da avenida Paulista, 150. A estação do Bike Itaú do Largo da Batata, em Pinheiros, tem capacidade para 83 e a de um ponto próximo ao terminal da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) da Vila Olímpia, 45. A zona leste não tinha nenhum ponto de retirada até fevereiro de 2022.
Mapa 2 – Áreas mais ricas, mais bicicletas
Por sua vez, o sistema de bonificações para os entregadores também se concentra nas áreas com mais pontos de retiradas de bicicletas: em mapas divulgados para cicloentregadores pelo iFood nos meses de março, julho e setembro de 2022, apenas 13% da zona leste era abrangida pelas também chamadas “promoções”. No mapa 3, nota-se que, nesta porção da cidade, apenas os distritos da Mooca e do Tatuapé foram envolvidos em sua totalidade pelas áreas de promoção.
Mapa 3 – Onde se recebe mais por entrega
Por meio desse sistema, o entregador recebe em geral R$ 3,00 a mais por cada entrega, o que representa um acréscimo de 50% à taxa mínima de entrega (R$ 6,00, valores de setembro de 2022), normalmente em horários de maior demanda e períodos com previsão de chuva. O pedido a ser entregue deve ser retirado dentro de cada área de promoção, embora a entrega possa ser feita fora dele. Diante da perspectiva (e, inclusive, da necessidade) de receber mais por pedido, grande parte dos entregadores que mora nas periferias se desloca para as regiões nas quais as bonificações são mais frequentes. Esse mecanismo, de forma geral, funciona como um reforço ao padrão muito oneroso da antiga relação centro – periferia, que compromete o trabalhador mal remunerado com a moradia em periferias muito distantes do centro, em horas de deslocamento improdutivo por dia.
Mesmo em áreas da cidade com mais estações de bicicletas e bonificações, a quantidade de entregas tende a variar de acordo com alguns critérios, segundo os cicloentregadores: a antiguidade (entendida como a aprovação do registro no aplicativo do iFood) do entregador, já que os que estão há mais tempo tendem a receber mais entregas se estiverem com boa pontuação no aplicativo; a demanda de pedidos, mais intensa pela manhã em bairros comerciais e na hora do almoço e à noite nos residenciais, às sextas-feiras, em fins de semana e no início de cada mês; as horas de trabalho diárias, uma vez que quanto mais tempo disponível no aplicativo maior a chance de receber um pedido; e a categoria do entregador, que pode ser nuvem, que recebe diretamente do aplicativo e pode entregar em qualquer área da cidade, ou vinculado às empresas chamadas Operadoras Logísticas, que intermedeiam a relação do aplicativo com os trabalhadores e por meio das quais os entregadores escolhem turnos de trabalho e regiões específicas da cidade para trabalhar, tendo prioridade para receber os pedidos em relação aos nuvem.
Como já indicado em pela pesquisadora Ludmila Costhek Abílio, esses entregadores arcam com os riscos e custos de seu trabalho, não tendo controle sobre sua remuneração, sua jornada de trabalho e sobre as regras que regem sua atividade. Muitos dos entregadores entrevistados ficaram desempregados na pandemia e têm hoje nas plataformas digitais, especialmente no iFood, sua principal ou única fonte de renda[1]. Sem direitos trabalhistas, percorrem grandes distâncias, com significativo dispêndio de tempo, entre suas casas e os pontos de retirada de bicicleta compartilhada e, diante da baixa remuneração por entrega, frequentemente ultrapassam 12 horas diárias de trabalho.
Portanto, dois tipos de deslocamentos marcam a rotina dos cicloentregadores: os realizados a cada entrega, com percursos dos locais em que retiram os pedidos (como restaurantes e lanchonetes) até os clientes dos aplicativos; e, de modo mais amplo, os deslocamentos necessários para garantir ou otimizar o próprio trabalho. Para isso, procuram estar em regiões da cidade onde têm acesso às bicicletas compartilhadas, onde conseguem realizar mais entregas devido à maior demanda e onde recebem mais bonificações. O recente avanço das plataformas digitais, com a disseminação dos aplicativos de delivery, mantém, nesse sentido, os já bem conhecidos e persistentes deslocamentos entre os locais de moradia, em geral nas periferias, e os locais de trabalho, nas áreas centrais e mais valorizadas da cidade.
Nota
[1] Como observado nos trabalhos de campo e segundo levantamento realizado pela Clínica de Direito do Trabalho da Universidade Federal do Paraná (UFPR) publicado no livro: MACHADO, S.; ZANONI, A. P. O trabalho controlado por plataformas digitais no Brasil: dimensões, perfis e direitos. UFPR – Clínica Direito do Trabalho: Curitiba, 2022. Disponível em: <https://cdtufpr.com.br/o-trabalho-controlado-por-plataformas-digitais-no- brasil-dimensoes-perfis-e-direitos-baixe-o-ebook/>.Lívia Maschio Fioravanti é geógrafa, docente do Instituto Federal do Mato Grosso (IFMT) e pesquisadora de Pós-Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da Universidade de São Paulo (USP). É bolsista do Projeto “Zonas cinzentas e território: transformações do trabalho e das condições de vida urbana dos trabalhadores de plataforma: contrapontos e aproximações”, fomentado pela Pró-Reitoria de Pesquisa da USP.