Como os Chicago Boys quebraram o Chile

Fotografia: Truque de Banana/Chile

Os conservadores consideram o Chile uma história de sucesso. Isso encobre os terríveis crimes de Augusto Pinochet e a precarização que suas políticas normalizaram.

Tim Brinkhof

Fonte: Jacobin Brasil
Tradução: Laira Vieira
Data original da publicação: 06/06/2023

Durante o final dos anos 1990 e início dos anos 2000, os economistas chilenos Sergio de Castro e Ernesto Fontaine viajaram pelo mundo explicando como suas políticas econômicas neoliberais ajudaram a escrever o que costuma ser descrito como uma das maiores histórias de sucesso na política sul-americana. Essa história é a seguinte. 

Após o início da Guerra Fria, o governo dos Estados Unidos facilitou uma parceria entre a Universidade de Chicago e a Pontifícia Universidade Católica do Chile, em Santiago. Ao expor estudantes como Fontaine e De Castro às visões de mundo pró-mercado dos renomados professores de Chicago – incluindo Milton Friedman e Arnold Harberger – Washington esperava tirar o Chile do socialismo para o capitalismo.

Esta parceria surgiu em um momento oportuno para ambas as partes. Enquanto a primeira geração dos “Chicago Boys” — como ficaram conhecidos os chilenos que visitavam o Hyde Park — adaptava o currículo da Católica ao modelo americano, a economia do Chile desmoronava. 

Um coquetel de controle de preços, nacionalizações e impressão de dinheiro pelo presidente socialista Salvador Allende se traduziu em uma queda de 35% nos salários e uma taxa de inflação de 700% – números que obrigaram o general Augusto Pinochet a articular um golpe inesperado, mas bem-sucedido.

Alistados pela junta militar recém-formada, os Chicago Boys foram encarregados de desfazer o dano que Allende havia causado. Aplicando o que aprenderam no exterior, eles liberaram preços e taxas de juros, reprivatizaram empresas estatais, desregulamentaram o sistema bancário e reduziram as tarifas de importação. 

Os resultados, dizem, falam por si. Com contratempos, o Chile emergiu da experiência como a nação mais rica de toda a América do Sul. Um verdadeiro “tigre latino”, que tinha o maior PIB per capita e o menor índice de pobreza, além dos melhores indicadores de saúde, educação e expectativa de vida.

As acusações de que o crescimento econômico do Chile se baseia em um “pecado original”, no apoio de uma ditadura que executou cerca de 2.279 pessoas em apenas 17 anos, que degolou líderes da oposição e jogou seus corpos no Oceano Pacífico, não reconhecem que as extensas e drásticas reformas dos Chicago Boys não poderiam ter sido implementadas em uma sociedade livre. Independentemente de sua origem, o sistema neoliberal provou ser tão eficaz que os estadistas democraticamente eleitos que sucederam Pinochet não apenas o mantiveram, mas o expandiram. 

“Nossos Chicago Boys”, disse George Shultz, ex-secretário de Estado e reitor da Booth School of Business da UChicago, em uma entrevista em 2020, “produziram a única economia realmente boa da América Latina na década de 1980; foi sensacional.”

Essa história de sucesso, construída há décadas, teve uma reviravolta inesperada em 2019, quando manifestações violentas provocadas pelo aumento de 30 pesos na passagem do metrô de Santiago pediram o fim do abuso corporativo, da educação com fins lucrativos e das baixas pensões — problemas que os manifestantes, por meio de slogans e pichações, vinculavam ao neoliberalismo e aos Chicago Boys. 

As manifestações foram uma surpresa para muitos políticos e empresários, que se perguntaram como a agitação civil poderia surgir em um país que, pelas medições tradicionais, havia experimentado uma quantidade tão extraordinária de crescimento econômico por um período tão longo de tempo. Espalharam-se rumores sobre agitadores enviados por Cuba e Venezuela.

Sebastián Edwards, um economista chileno que visitou Santiago durante as manifestações de 2019, procurou respostas em outro lugar. Seu livro The Chile Project: The Story of the Chicago Boys and the Downfall of Neoliberalism argumenta que os ricos do Chile há muito ignoram os avisos de que sua prosperidade foi construída não apenas sobre um pecado, mas sobre “um barril de pólvora social”. 

Edwards estudou na Universidad de Chile, que rejeitou a parceria que a UChicago estendeu à Católica. Ativista estudantil filiado ao Partido Socialista do Chile de Allende, ele emigrou para os Estados Unidos depois que Pinochet assumiu o poder. Embora tenha feito amizade com Harberger na UChicago, ele nunca foi considerado um membro dos Chicago Boys.

The Chile Project segue os Chicago Boys desde seu treinamento no Hyde Park até seu emprego no governo chileno. As instruções de Harberger, Friedman, Gary Becker e Theodore Schultz transmitiram uma orientação a economias abertas e amplamente não regulamentadas. Em vez de reduzir a desigualdade, eles foram ensinados a aliviar a pobreza extrema com programas sociais. De acordo com Chicago Boy Rolf Lüders, chefe do conglomerado Banco Hipotecário do Grupo Chile, era apenas “um problema de inveja”.

Os Chicago Boys entraram na esfera política quando De Castro, seu membro mais antigo, foi nomeado conselheiro do ministro da economia Rodolfo González após o golpe de Pinochet em 1973. De Castro apresentou um plano de desenvolvimento escrito por ele e seus colegas. Apelidado de El Ladrillo, ou “O Tijolo”, pois seu tamanho e linguagem era a de liberalização comercial e planejamento descentralizado. 

Em retrospecto, Edwards não estava impressionado com o desenvolvimento econômico supostamente sem precedentes que ocorreu sob a ditadura, uma época em que os benefícios de um PIB crescente foram mitigados pelo desemprego e pela inflação, e um declínio na pobreza foi compensado por um aumento na igualdade. Uma grande parte do The Chile Project é dedicada a reconhecer os erros e sacrifícios muitas vezes negligenciados durante este período.

Por exemplo, em 1975, a inflação persistente – 350% ao ano – obrigou Pinochet a aceitar o conselho de Milton Friedman de implementar um “tratamento de choque” que restabeleceria os preços ao custo de (temporariamente) aumentar o desemprego. O pico, que Milton originalmente acreditava que duraria alguns meses, continuou até meados dos anos 80. 

Na mesma época, o governo chileno permitiu que as taxas de juros, que Allende havia mantido baixas, subissem, levando os bancos a tomarem dinheiro emprestado internacionalmente. Enquanto os Chicago Boys pensavam que os déficits resultantes revigorariam a economia, muitas instituições financeiras – recentemente reprivatizadas – tiveram que ser resgatadas às custas do contribuinte.

Longe de salvar o Chile, a visão de mundo neoliberal dos Chicago Boys teve que ser modificada para evitar a crise financeira. Enquanto os “dogmáticos” da geração mais velha, como De Castro, insistiam em uma taxa de câmbio fixa, os pragmáticos ou “flexíveis” da geração mais jovem, como José Piñera e Juan Andrés Fontaine, optaram por taxas flutuantes que, embora em conflito com seu treinamento na UChicago, acabaram ajudando o governo chileno a colocar a economia de volta aos trilhos. 

Em 1988, depois que 56% dos chilenos votaram contra a continuação do regime pinochetista, foram realizadas eleições para a presidência e o Congresso. Nos capítulos dedicados à transição da ditadura para a democracia, Edwards desafia a noção de que os líderes subsequentes abraçaram incondicionalmente o sistema neoliberal que herdaram.

Alguns elementos deste sistema foram preservados. Em resposta à crise financeira russa de 1998, Eduardo Aninat, ministro das Finanças do presidente de centro-esquerda Eduardo Frei Ruiz-Tagle, abriu o país aos movimentos internacionais de capital, criando “um mundo do tipo Milton Friedman”, onde o valor da moeda era determinada pela oferta e demanda, sem intervenção do governo. 

Outros elementos foram descartados. Após a deposição de Pinochet, o presidente Patricio Aylwin modificou o Plano Laboral, uma lei trabalhista de 1979, elaborada pelo Chicago Boy José Piñera, que regulava e reduzia enormemente o poder histórico dos sindicatos, impedindo-os de negociar nos níveis industrial e nacional, ao mesmo tempo em que permitia às empresas imporem bloqueios e demitir funcionários.

Edwards identifica várias fontes para a agitação civil que atingiu o ponto de ebulição em 2019, uma das quais é o ensino superior. Descentralizadas e reprivatizadas pelos Chicago Boys, as universidades do Chile deixaram muitos graduados desempregados e endividados. “Dezenas de rapazes e moças”, escreve Edwards:

sentiram-se enganados e começaram a questionar um sistema que havia prometido a eles e a suas famílias que, se trabalhassem duro e fossem educados – isto é, se acumulassem “capital humano” – poderiam progredir e avançar decisivamente para as confortáveis ​​fileiras de carreiras bem sucedidas.

Outra fonte para o levante popular é a falta de mobilidade ascendente do Chile, especialmente entre as minorias raciais. Edwards menciona como Harberger, durante uma visita em 1955 a um clube de cavalheiros chileno, foi recebido com risadas incrédulas quando perguntou quantos de seus membros eram filhos de inquilinos – trabalhadores rurais a serviço de proprietários de terras. Quando Harberger continuou e fez essa pergunta após a virada do século, ele se deparou com a mesma resposta. 

As famílias chilenas que conseguiram escapar da pobreza viviam em constante medo de retroceder. A nascente classe média do país, situada logo acima da linha da pobreza, era tão vasta quanto frágil. Inelegíveis para programas sociais direcionados, o menor infortúnio – doença, acidente ou outro – tinha o potencial de apagar seu suado progresso.

Todos esses medos, inseguranças e frustrações se fundiram no que Edwards e outros comentaristas chamam de mal estar. Preparando-se pelo menos desde o início dos anos 2000, o mal estar do Chile não era apenas sobre distribuição de renda, mas também sobre as emoções associadas a ela. É sobre a relação entre operários e elites, sobre a vergonha e a humilhação que o capitalismo associa à pobreza. Por isso, o conceito de dignidade teve um papel de destaque durante as manifestações de 2019.

Essas manifestações se mostraram tão persistentes que o governo chileno resolveu mudar fundamentalmente o contrato social do país. Uma convenção foi convocada para redigir uma nova Constituição que substituiria a promulgada por Pinochet. Adiada até 2021 pela pandemia de coronavírus, a convenção – liderada pelo atual presidente do Chile, Gabriel Boric, e composta em grande parte por políticos novatos – produziu um projeto que, se aprovado, teria substituído a infraestrutura neoliberal defendida pelos Chicago Boys por uma ordem social-democrata parecida com aqueles encontrados na Escandinávia e no noroeste da Europa. 

Embora esta proposta tenha sido rejeitado, o apoio necessário para colocá-la na agenda continua sendo um indicativo de quão profunda é a oposição ao milagre neoliberal dos Chicago Boys no Chile.

Uma nova convenção começou agora a trabalhar em um segundo rascunho. Esta convenção, dominada pela direita tradicional e políticos de extrema direita, guiada por estudiosos constitucionais conservadores, economistas, advogados e outros tecnocratas, está prestes a produzir uma Constituição muito menos progressista e, de certa forma, regressiva para o país. Embora haja apoio em massa para encerrar a era do Pinochet, a esquerda chilena atualmente carece de unidade e coordenação para se opor à direita com a mesma eficácia com que a direita se opôs a ela.

Tim Brinkhof é um jornalista holandês baseado em Atlanta. Ele estudou literatura comparada na New York University e escreveu para Vulture, JSTOR Daily e New Lines.

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