As lutas dos estudantes endividados, dos coletivos feministas e do movimento contra o aumento da tarifa pavimentaram a vitória plebiscitária que enterrou a herança ditatorial de Pinochet. Os próximos passos serão cruciais para desmontar o primeiro laboratório neoliberal.
Sabrina Aquino
Fonte: Jacobin Brasil
Data original da publicação: 05/11/2020
Com o triunfo do plebiscito de 25 de outubro, o povo chileno demonstrou que não somente despertou para as mobilizações de rua, mas que também é capaz de se expressar de maneira forte e clara nas urnas, aprovando uma nova constituição para o país com mais de 78% dos votos válidos.
Há um ano, em meados de outubro de 2019, o Chile viveu uma onda de protestos massivos clamando por mudanças estruturais, e suas marchas autoconvocadas alcançaram um nível de coordenação e magnitude inédita em relação às décadas anteriores no país.
Despertar de quem não estava dormindo
Até a irrupção dos últimos acontecimentos sociais e políticos de 2019, o Chile era visto pelos liberais como um caso paradigmático de reformas e crescimento exitoso. Contudo, a reconfiguração adotada enquanto modelo político, social e econômico após a ditadura pinochetísta, em defesa do chamado “crescimento com equidade”, impulsionado pelos governos da “concertación” (coalizão política de centro-esquerda que assumiu os 20 primeiros anos da transição para a democracia), falhou em combater a expressiva pobreza e desigualdade acumuladas ao longo dos anos anteriores. Para compreender os conflitos e o significado das principais exigências levantadas nos protestos chilenos de 2019 é necessário contextualizar o período de redemocratização no Chile.
Parte substancial dos problemas que alimentaram o combustível da recente revolta foi gestada durante os anos 90, com os governos da chamada “transição democrática”, por meio da manutenção e do aprofundamento daquilo que conhecemos no Chile como modelo de “Estado subsidiário”, caracterizado pelas “parcerias públicos privadas” (que se desenvolvem a partir do erário público, no entanto, com gestão e lucros para o setor privado) e pelas privatizações herdadas do período ditatorial. É importante, então, compreender algumas transformações pelas quais o país passou desde o fim da ditadura de Augusto Pinochet, para analisar o processo atual da luta de classes chilena.
Assim como a palavra de ordem mais usada como hashtag nas redes sociais tornando-se o slogan da revolta, o Chile despertou massivamente e abriu uma alameda de oportunidades ao rechaçar veementemente o modelo social, econômico e político dos últimos trinta anos, reconfigurando o cenário para a inserção de uma agenda de transformações substantivas. Se a metáfora funciona como slogan, porém, é preciso tomar certos cuidados com a ideia de que o sono que antecede o despertar teria sido tranquilo. A classe trabalhadora chilena, cabe lembrar, não estava até aquele momento peregrinando sonâmbula e letárgica dentro de uma falsa propaganda de estabilidade democrática e superação da pobreza, que foi embalada e vendida prêt-à-porter pela elite política e empresarial.
Os trabalhadores chilenos sentem há anos a perversidade do modelo econômico e político construído às custas de muitas violações de direitos humanos e mentiras durante a ditadura de Pinochet que, ao chegar oficialmente ao fim através de um plebiscito em 1988, se viu continuado no modelo político e econômico da transição democrática. Os 20 anos do período “concertacionista” trouxe grandes taxas de crescimento, além de distribuição de renda com inclusão socioeconômica através do acesso a bens de consumo, mas deixou de fora diversas camadas da sociedade, dando continuidade ao crescente e profundo contraste social. Enquanto os governos democráticos administravam o projeto neoliberal seguiu se aprofundando e criando raízes para além da economia, moldando todas as esferas da vida social, debilitando a participação política popular e impedindo um desenvolvimento social e econômico mais inclusivo.
“Não são 30 pesos, são 30 anos”
Para compreender os processos sociais e históricos que fizeram explodir os recentes acontecimentos, devemos considerar que a população chilena vive submetida aos mais inacreditáveis abusos por parte dos poderes econômicos e políticos. Além disso, o sentimento de traição em relação àqueles que representam a política institucional é muito latente e recobra evidência em todo o processo constituinte que se abriu em outubro do ano passado.
O aumento das tarifas dos transportes em 2019 no Chile sem dúvida deu início à explosão massiva do “estallido social”. Naquele momento, as tentativas de justificar mais um abuso contra a classe trabalhadora por parte das autoridades fizeram com que as e os secundaristas chilenos se organizassem em jornadas de evasão massiva do pagamento da tarifa (um tipo de protesto conhecido no Brasil como “catracaço” ou “pula catraca”), convocando os usuários para se rebelar contra o encarecimento da vida e alçando outras esferas de indignação coletiva.
Ao mesmo tempo, a população chilena tem grande apreço pelas manifestações lideradas pelos estudantes, que desde 2006 vêm colocando no centro do debate público a crise do modelo neoliberal de laboratório no Chile. Mais conhecida como “revolución pingüina”, a revolta secundarista de 2006 se levantou contra a Ley Orgánica Constitucional de Enseñanza (LOCE) – imposta pela ditadura e intocada pelo primeiro mandato progressista de Michelle Bachelet –, abrindo um debate crítico a respeito da privatização da educação e do endividamento das famílias chilenas. Eram os primeiros sinais de que o modelo neoliberal instalado no país não iria mais ser tolerado.
Em 2019, assim como em 2006, os estudantes secundaristas foram os responsáveis por abrir uma conjuntura importante, na qual massivos protestos determinaram os rumos da política do país. Contudo, persistia o temor de que, ao alcançar esferas institucionais, a revolta pudesse ser domesticada por acordos fechados “por cima”. Exemplos como esse não faltam na política chilena e o mais famoso acordo aconteceu justamente para colocar fim na “revolución pingüina”. Com uma aliança entre o governo de 2006 e a oposição, houve a substituição formal da LOCE. No entanto, a educação de mercado e o endividamento das famílias chilenas persistiram, organizados em outros dispositivos jurídicos.
Alguns anos mais tarde, em 2011, o movimento estudantil voltou a sacudir o cenário político enquanto Sebastián Piñera exercia seu primeiro mandato e tentava trazer com sua coalizão política (Chile Vamos) a imagem de líder de uma direita repaginada e democrática, e assim buscar se desvincular da figura de Pinochet. Novamente os estudantes voltaram a sinalizar muito claramente os principais problemas do modelo econômico do país; ao reivindicar o fim da educação de mercado com o grito de “não ao lucro!”, o movimento estudantil chileno desvelou como a mercantilização permeia todos os aspectos da vida no país, recebendo um amplo respaldo social ao escancarar o alto nível de endividamento da classe trabalhadora. Além disso, com o cenário político marcado por escândalos de corrupção, promessas não cumpridas e a marcha veloz da precarização da vida, o questionamento da ordem institucional e um descontentamento generalizado se expressaram com grande força.
Em contrapartida, vislumbrando uma nova disputa eleitoral nacional de 2013 e capitaneando os slogans dos movimentos sociais, o Partido Comunista se somou à coalizão liderada por Michelle Bachelet (Concertación) e passou a ser chamada “Nueva Mayoría“. Bachelet venceu as eleições do ano de 2013 com considerável apoio popular e assumiu o governo com um programa que prometia sanar as dívidas que o Estado chileno arrastava em relação aos Direitos Humanos, além de prometer educação gratuita, demanda pela qual o movimento estudantil chileno havia feito parar o país em 2011. Entretanto, a “Nueva Mayoría” mergulhou em uma crise política devido a desacordos elementares sobre as reformas anunciadas no programa de governo Bachelet durante a corrida eleitoral, somando-se a esses desacordos também escândalos de tráfico de influência e irregularidades no financiamento de campanha. A coalizão se desfez e mais uma vez a capitulação dos anseios levantados por um movimento de massas terminou com mais um ciclo de promessas não cumpridas.
Tsunami feminista
Para além do movimento estudantil, a força do movimento feminista chileno foi também protagonista desse despertar. As revoltas de 2019 não se explicam sem a capacidade organizativa e convocatória das feministas. Nem agora, nem em outras épocas. As feministas tiveram um papel tão fundamental em todo o processo de resistência social no Chile, não somente no atual processo constituinte, ou quando voltaram a levar massivamente pessoas a questionar as violências institucionais em 2018. É importante recordar que as feministas chilenas têm também um histórico poderoso na resistência contra a ditadura de Pinochet.
Foi através da iniciativa das mulheres organizadas em partidos políticos, em sindicatos e em diversas organizações populares, que se abriu caminho para a unidade na luta para alcançar a democracia. Um dos principais movimentos nas ações de resistência contra Pinochet era o chamado “Mujeres por la vida”, que junto a outras tantas organizações de mulheres, usaram muita criatividade quando poucas pessoas se atreviam a sair às ruas. As feministas da década de 1980 se uniram para levantar ações artísticas e atos relâmpagos que geraram conscientização para denunciar o regime de morte que se apoderou do país, somando cada vez mais força para quebrar o silêncio. Desse modo, foi crucial a participação organizativa feminista para somar suficiente expressividade social e acabar com o regime militar, algo que não se explica somente pelas campanhas publicitárias a favor do sufrágio no vitorioso plebiscito do “NO” em 1988.
Reivindicando esse legado as feministas da nova geração ocuparam as ruas em 2018, tomando a discussão pública e ganhando os meios de comunicação como resposta positiva às ocupações das universidades por coletivos de mulheres e dissidências sexuais e de gênero que também atuam no movimento estudantil. Foi exigindo o fim do acobertamento institucional aos assediadores nas universidades por parte da reitorias que o movimento de mulheres ressurgiu tendo como principal demanda a criação de protocolos contra assédio, além de exigir melhorias nos mecanismos para denúncias e celeridade nos processos.
A chamada “ola feminista” (em tradução livre, “onda feminista”) de 2018 levantou o debate por uma educação não-sexista, exigindo renúncia dos assediadores e reitores e, dentre outras coisas, formação com perspectiva de gênero para a comunidade acadêmica, medidas de prevenção à violência de gênero nas universidades, fortalecimento dos mecanismos já estabelecidos para lidar com esse problema, mais mulheres em cargos de liderança na academia e ambiente que assegure condições para as mães estudantes e trabalhadoras.
As marchas e as ações nas universidades levaram o país a discutir massivamente a violência sexual, inclusive fora dos espaços universitários, um ambiente restrito para a grande maioria da população. O sentimento de impotência contra a violência de gênero sofrida nos locais de trabalho, na rua e, na maior parte dos casos, no ambiente doméstico, se converteu em debate nacional após a adesão à greve de cerca de 35 universidades ao largo de todo o país. A partir disso as feministas seguiram protagonizando a maioria dos debates políticos do país, levantando um chamado à greve feminista internacional para o 8 de março do ano seguinte.
A adesão às mobilizações feministas de 2018 e principalmente às marchas de 8 de março em 2019 claramente não são meros acidentes contingenciais. Sem dúvida fazem parte de uma continuidade processual de lutas unificadas, que associam a educação mercantil à manutenção da divisão sexual e reprodutiva do trabalho e dos cuidados, apontando para a feminização da pobreza que o sistema neoliberal chileno aprofunda com a previdência social privatizada, e para a feroz precarização da vida através da defesa do lucro em todos os âmbitos.
Em 2020, o “estallido social”, somado ao contexto de crise sanitária, evidenciou de forma inquestionável as principais falências que a sociedade chilena já vinha denunciando havia anos. Assim, a derrubada da constituição ilegítima que sustentava os pilares do modelo neoliberal no país se tornou uma batalha de urgência sem precedentes. Dessa vez, porém, com a substancial diferença que tanto as feministas como também os povos originários indígenas organizados não permitiriam que a política institucional os excluísse.
Pelo direito de viver em paz
Vencemos o plebiscito em 25 de outubro em 2020 com a maior participação eleitoral dos últimos 8 anos. O grito de indignação de 2019 se legitimou com uma presença significativa e incontestável da população, considerando o período de pandemia em que vivemos, demonstrando que a forma de se fazer política no país não será mais a mesma. No entanto, é preciso cautela nas análises, pois o neoliberalismo e os efeitos de uma constituição que foi o pilar legislador do legado de Pinochet ainda seguem operando.
O desafio de encerrar esse legado certamente passa por seguir recuperando a organização política dos sujeitos sociais. Assim, um dos caminhos apresentados é politizar o sentido de solidariedade e autogestão das camadas populares, espírito que conseguiu sobreviver mesmo sob o jugo de um dos regimes militares mais infames da América Latina, e persiste até os dias atuais. Ainda hoje, sob as piores adversidades e ausência de políticas públicas emancipatórias, o povo chileno continua levantando suas cooperativas, centros de saúde de bairro, comitês de direitos humanos, redes de educação popular, oficinas de arte e etc.. É dessa forma que, por meio do fundamental trabalho solidário das “ollas comunes” (“panelas comunais”, em tradução livre) – instâncias de participação comunitária levantada por mulheres –, é possível resolver a necessidade mais básica entre vizinhos: a fome.
Há um acúmulo de indignação, cultura solidária e força social para fazer sacudir com bastante fúria os alicerces dos poderes oligárquicos caso os rumos do processo constituinte não atendam as suas motivações originais. Contudo, não podemos esquecer que a subjetividade neoliberal é um elemento coercitivo poderoso, e sem nenhuma sombra de dúvidas, a criminalização da política conseguiu se instalar no tecido social. São 47 anos de uma sociedade construída com sangue mapuche, sangue da população LGBTQIA+, sangue de mulheres e homens pobres trabalhadores. Uma sociedade mutilada, empobrecida e levada ao endividamento para assegurar sua saúde, moradia, educação e aposentadoria – ou seja, sua sobrevivência. Nas últimas décadas, os setores que defendem o estado empresarial sequestraram e criminalizaram a política, e impuseram um modelo de sociabilidade individualista, mercantilizada e meritocrática, com perigosos sintomas de desvinculação política por falta de imaginário e valores coletivos.
O grande desafio para enterrar com o legado de Pinochet e com o espólio neoliberal segue em aberto no Chile, assim como o processo constituinte. Esperamos que assim siga, pois, um arremate prematuro, em esferas que não permitem o debate social amplo, tampouco é desejável. Com a experiência dos movimentos feministas à frente na palestra pública, sem dúvida experimentamos novos elementos revigorantes – como o coletivo Las Tesis, que com sua performance “Un violador en tu camino” desarticulou o discurso que criminalizava os movimentos sociais naquele momento – , e assim voltaremos a nos organizar para o próximo desafio que será eleger representantes constituintes com critério de paridade de gênero para escrever a nova constituição chilena, pleito eleitoral que deverá ocorrer em 11 de abril de 2021.
Desse modo, voltar a expandir a política em todos os espaços da vida cotidiana é uma tarefa pendente e, em particular, neste momento de vitória pós-plebiscito, de sensação revigorante. Portanto, um dos desafios centrais é converter essa massividade heterogênea expressada nas ruas e nas urnas em força organizativa, retomando os cabildos (instância de representação direta das comunidades) que antes eram feitos de forma presencial, agora em forma digital, tendo em vista que ainda vivemos em contexto de crise sanitária.
Acima de tudo, resta a clareza de que é preciso seguir lutando para que nossos esforços não terminem novamente repaginando outro pacto social neoliberal, dessa vez renovado e legitimado pelas urnas. Vencer o plebiscito foi um passo importante no longo caminho do processo constituinte que já se iniciou – mas foi apenas o primeiro de muitos que virão.
Sabrina Aquino é diretora da Fundación País Digno e militante feminista de Convergencia Social. Mora em Valparaíso e é licenciada em história.