Como enfrentar e anular a chantagem eleitoral nas relações de trabalho

Fotografia: TSE

A atuação consistente e contundente da classe trabalhadora organizada e das instituições efetivamente voltadas à defesa da democracia é fundamental e se faz urgente.

Jorge Luiz Souto Maior

Fonte: Blog do Souto Maior
Data original da publicação: 09/10/2022

“Você deve estampar sempre um ar de alegria
E dizer: tudo tem melhorado
Você deve rezar pelo bem do patrão
E esquecer que está desempregado”

(“Comportamento Geral” – Gonzaguinha)

São cada vez mais numerosas as notícias e denúncias de empregadores que estão chantageando seus empregados para que votem em determinado candidato nas eleições presidenciais.

É necessário reprimir tais atos, como têm feito, de forma sempre exemplar, o Ministério Público do Trabalho (vide, a propósito, a Nota Técnica emitida pela entidade) e a Justiça do Trabalho (vide noticia de decisão judicial a respeito).

Mas é preciso, também, refletir um pouco mais sobre estes fatos e pensar em fórmulas jurídicas que possam anular os seus efeitos por completo, de modo a impedir que exerçam qualquer influência nas eleições.Inicialmente, é importante dar o nome adequado à investida patronal. Não se trata de um assédio, mas de um crime, que se concretiza na forma de uma chantagem.

Pensando mais profundamente sobre a recorrência dessas chantagens, faz-se necessário perceber que elas são, de fato, reflexos da cultura escravista que insiste em estruturar as relações sociais no Brasil e da posição paternalista que o Estado brasileiro historicamente assumiu em favor da classe dominante nacional e do capital internacional.

Vislumbrando a realidade com o olhar do primeiro aspecto ressaltado, fica fácil perceber que o que estes empregadores estão fazendo é uma expressão nítida do sentimento impregnado na lógica escravista de domínio sobre a vida daqueles que prestam serviços em atividade econômica alheia, como se devessem sempre, que agradecer pelo “favor” concedido.

Na visão escravista, “dar emprego” é um “favor” que se faz a quem não teria o que comer se não vendesse a sua força de trabalho. E uma vez que o “favor” foi feito, nada de mal haveria em fazer este “pedido” de retribuição, sendo que, no momento em que o “pedido” é feito, de forma bastante estratégica, o empregador se oferece como “parceiro” dos trabalhadores e trabalhadoras. Concretamente, no entanto, nenhuma alteração se processa na consciência do escravista, quanto ao seu sentido de superioridade e sua determinação de dominação, tanto que a “recompensa” prometida nada mais faz do que reforçar a lógica do “favor”, que, ademais, está na base das recorrentes demandas pela retração de direitos trabalhistas e do próprio desrespeito reiterado e assumido com relação a estes direitos.

Na concepção empresarial escravista, quem presta um “favor” a outra pessoa não pode ser onerado para além do que vai a sua vontade de ajudar.

Este sentimento de superioridade e sua orientação de dominação ainda mais se reforçam quando a pessoa chantageada, além de pobre, é mulher ou negro e, sobretudo, negra e, mais ainda, transgênero ou com orientação sexual que se apresenta fora da heteronormatividade socialmente imposta, dada a dificuldade que tais pessoas possuem para se inserir (e se manter inserida) no mercado de trabalho.

Vista a situação a partir do segundo aspecto mencionado, evidencia-se que ao se disporem a cometer crimes de forma explícita e declarada, para favorecer um candidato, aqueles que chantageiam certamente vislumbram uma vantagem econômica, que pode se resumir à preservação das coisas como estas se encontram.

Fato é que, se de um lado, a dominação e a superexploração são registros históricos das relações de trabalho no Brasil, por outro, a sensação de poder ilimitado destes empregadores talvez nunca tenha sido tão assumida e até institucionalmente legitimada, dado o efeito da “reforma” trabalhista de 2017, que transformou a ordem jurídica trabalhista em uma estrutura de direitos para a satisfazer unicamente os interesses do empregador. O Direito do Trabalho que antes, atendendo as reivindicações dos trabalhadores e trabalhadoras, servia para impor limites à exploração do trabalho, ao mesmo tempo que garantia aos empregadores a preservação do sistema capitalista baseado na exploração do trabalho, passa a ser assumido como método de atuação estatal nas relações de trabalho com o único objetivo de agradar aos interesses escravistas e coloniais, que tantas vezes se disfarçam em liberal.

Cumpre perceber que o que de fato preconiza este setor, que se apresenta como liberal, é uma atuação estatal em prol de seus interesses (vide, a propósito: https://www.hojeemdia.com.br/politica/fiemg-entrega-a-bolsonaro-pedido-para-mudancas-em-regras-trabalhistas-1.925390)

Concretamente, as chantagens baseadas em manutenção de emprego, primeiro reproduzem uma das pedras de toque da “reforma”, que seria a do “direito” do empregador de cessar vínculos de emprego sem dar satisfação a ninguém, e, segundo, não chegam a representar a preservação de um emprego com direitos integrais, constitucionalmente previstos, eis que muitos destes direitos foram extirpados pela “reforma” e os poucos restantes foram direcionados a um estágio de inefetividade plena. No Brasil, hoje, quem tem carteira assinada não tem, de fato, um emprego, no sentido constitucional. E, concretamente, a maior parte daqueles que trabalham estão na “informalidade”, que melhor se traduz por “trabalho na ilegalidade”, ou seja, sem ser alcançados por qualquer direito. Atingimos, assim, o modelo preconizado por Gonzaguinha, no qual o trabalhador brasileiro deve agradecer o patrão e esquecer que, mesmo trabalhando, está desempregado.

E quanto à cidadania, retomamos o momento do “voto de cabresto”, quando o trabalhador era coagido pelo dono da terra em que morava ou pelo chefe oligárquico local a votar de acordo com as instruções e as ordens dadas, já que lhe era concedido o “favor” da possibilidade de trabalhar, o “favor” de pertencer àquela sociedade (mesmo sem ser a ela efetivamente integrado) e o “favor” de ficar nas terras do latifundiário, ou, dito de outro modo, o “favor” de ser explorado.

E a grande questão é que se chegou a esta situação por atuação decisiva de muitos daqueles que hoje estão aí se apresentando como arautos da defesa da democracia.

A grande mídia, por exemplo, até tem noticiado os casos de “assédio” eleitoral, como eufemisticamente denominam, mas não se engajam efetivamente em uma campanha contra os assediadores, pois isto representaria, de certa forma, reconhecer a necessidade e a relevância de um Direito do Trabalho que limite os poderes do empregador e da essencialidade de instituições estatais para fazer valer os direitos trabalhistas, como a Justiça do Trabalho, o Ministério Público do Trabalho e o Ministério do Trabalho, além, evidentemente, dos sindicatos de trabalhadores.

A grande mídia foi (e continuará sendo) parceira da lógica escravista e do Estado como agente da agenda do poder econômico internacional, tanto que seu “apoio” ao outro candidato está vinculado à assunção de compromissos nesta direção.

Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal já há algum tempo vem posicionando juridicamente a favor da retração de direitos trabalhistas, contribuindo, pois, para o aumento do poder dos empregadores nas relações de trabalho e, talvez por conta disso, não esteja encarando estas chantagens com a gravidade devida. Ao menos não se tem notícia, até agora, de qualquer intervenção do STF nas relações de trabalho, para, em defesa do Estado Democrático de Direito, punir os chantageadores.

Ora, a chantagem eleitoral é um autêntico e possivelmente o mais sério atentado contra o Estado Democrático de Direito, além de ser uma agressão violenta à cidadania e à dignidade das trabalhadoras e trabalhadores.

Fato é que, vista a situação com a importância que possui e a representatividade que revela, deve-se vislumbrar respostas jurídicas que, em tempo hábil, façam um enfrentamento concreto da chantagem eleitoral, de modo a anular os seus efeitos.

Com todo o respeito, pedido de desculpas do “assediador” e imposição de multas, por mais altos que sejam os valores, não são suficientes para se chegar a este objetivo, isto porque as desculpas são notoriamente insinceras e o pagamento das multas quase sempre é direcionado para momento posterior, com cumprimento incerto. Até lá, nas relações reais, a chantagem tem o potencial de continuar fazendo efeito.

Penso que um modo efetivo para anular o efeito e, por consequência, inibir a prática ou mesmo estimular nos trabalhadores e trabalhadoras a realização da denúncia, é obrigar que as promessas feitas sejam cumpridas independentemente do resultado das eleições, garantindo-se aos trabalhadores e trabalhadoras chantageados não só o recebimento destas vantagens, como também a estabilidade no emprego por, no mínimo, 24 (vinte e quatro) meses, tudo isto, sem prejuízo do pedido de desculpas e da imposição de multas por dano à ordem democrática.

A atuação consistente e contundente da classe trabalhadora organizada e das instituições efetivamente voltadas à defesa da democracia é fundamental e se faz urgente neste e em vários outros temas que se ligam ao respeito da ordem constitucional trabalhista.

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