Como é o trabalho dos médicos que atuam em zonas de guerra

Entre 2012 e 2014, o CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha) registrou mais de 2.400 ataques contra instalações hospitalares em 11 países.

O último deles ocorreu na terça-feira (3/05), quando o hospital Al Dhabit, na cidade síria de Aleppo, foi atingido por foguetes que deixaram pelo menos 3 mortos dentro da instalação, além de outras 16 pessoas nos arredores. O ataque aconteceu no mesmo dia em que o Conselho de Segurança da ONU adotava a Resolução S/RES/2286, condenando justamente agressões a missões médicas em situações de conflito armado.

No mesmo dia, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, publicou texto nas redes sociais afirmando que os ataques a hospitais são crimes de guerra:

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Na quarta-feira (27/04), um pesado bombardeio já havia atingindo o hospital Al Quds, de 34 leitos, deixando 55 mortos. Dois médicos morreram no ataque, sendo um deles o pediatra que tratava das crianças feridas num dos mais violentos fronts da guerra. As imagens do circuito interno de TV registraram o momento exato em que o bombardeio atingiu o hospital.

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É o número de profissionais médicos mortos em cinco anos de guerra na Síria, de acordo com a Organização Mundial da Saúde

“Quem comete esses ataques? Bem, quase todos. Forças armadas, grupos armados e, sim, até governos que se sentam à mesa nas Nações Unidas. E sejamos francos: nem sempre é ‘dano colateral’. Pode ser algo sistemático, planejado, deliberado e ilegal. Qualquer ataque contra uma instalação médica, intencional ou ‘acidental’, é um ataque ao direito humanitário”.

Peter Maurer e Joanne Liu
Presidentes do CICV e dos MSF, respectivamente, em artigo ao jornal The Guardian

O número de ações militares contra instalações médicas tem levado organizações humanitárias a fazer um apelo por respeito às leis da guerra. Essas leis determinam, entre outras coisas, que nenhuma instalação, veículo ou profissional médico seja atacado em zona de conflito, independentemente de quem esteja sendo atendido no momento.

O que dizem os próprios médicos

O portal Nexo fez quatro perguntas a dois profissionais de saúde dos MSF e do CICV para entender qual a situação nas zonas de conflito e como eles lidam com a ameaça constante de morte enquanto trabalham para salvar vidas.

  • Tatiana Chiarella é enfermeira formada pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e mestre em saúde pública pela mesma faculdade. Integra a equipe dos Médicos Sem Fronteiras desde janeiro de 2014. Já esteve em projetos no Maláui, Sudão do Sul, Iêmen e Líbia.
  • Birgitte Gundersen é enfermeira de unidade de terapia intensiva do CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha). Ela é de Fredrikstad, na Noruega, e já trabalhou em conflitos no Iêmen, Paquistão, Chade e Sudão do Sul, onde está atualmente.

Temos tido notícias mais frequentes sobre ataques a hospitais em zona de guerra. Os ataques estão de fato crescendo, ou eles só estão sendo mais noticiados?

Tatiana Chiarella: A partir da nossa experiência, o que observamos é que ataques a hospitais em zonas de conflito estão de fato aumentando, tirando e ameaçando a vida de civis e de trabalhadores da saúde. Em 2015, 75 instalações médicas de Médicos Sem Fronteiras foram atacadas, cinco no Iêmen, onde eu estava. O que MSF tem dito é que, mesmo numa época de conflitos não convencionais, a obrigação dos Estados e grupos armados de respeitar as leis da guerra não mudou. Os ataques a hospitais não podem ser aceitos como algo normal. Por isso MSF pede que esses episódios sejam investigados de forma imparcial e independente, o que pode contribuir para impedir que novos ataques aconteçam.

Birgitte Gundersen: É difícil dizer com certeza se de fato os ataques estão crescendo ou não em uma escala global. Por outro lado, parece que estão chamando mais atenção. Mas nós deveríamos focar é em como as hostilidades são conduzidas durante conflitos. É preocupante porque sabemos o impacto tanto no prazo imediato como também no longo prazo na comunidade que fica sem acesso à saúde. Se não há vontade para combater isso, particularmente em termos de investigação e sanção de incidentes que violam as leis de guerra, esse problema pode se tornar ainda maior. Em 2015, no Afeganistão, houve um crescimento de 50% no número reportado de ataques contra hospitais  em comparação com 2014. Em 11 países onde o CICV trabalha, de 2012 a 2014, documentamos 2.400 ataques contra pacientes, pessoal da saúde, instalações e transportes – mais de dois ataques por dia, aproximadamente!

Você já se sentiu fisicamente em risco durante alguma missão médica? Como lida com isso, em termos pessoais?

Tatiana Chiarella: Os trabalhos que realizamos em áreas de conflito nos colocam em circunstâncias de risco. São comuns situações como bombardeios aéreos ou troca de tiros. No entanto, uma me marcou mais. Estive no Iêmen por três meses, entre agosto e novembro de 2015. Recebemos em nosso hospital em Khamer, uma cidade ao norte da capital, Sanaa, dois pacientes baleados ao passarem por um dos postos de controle na estrada. Esses pacientes eram funcionários do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, que infelizmente faleceram mesmo após todos os nossos esforços. Depois descobrimos que, momentos antes de o carro deles ser atacado, dois carros de MSF haviam passado pelo mesmo local, levando colegas para outro hospital com o qual cooperamos. A sensação de que estamos expostos a muitos perigos se intensificou. Mesmo com todos os protocolos de segurança, nos sentimos muito vulneráveis. Isso aconteceu no dia 2 de outubro. No dia seguinte, aconteceu o bombardeio americano a nosso hospital em Kunduz, no Afeganistão, e algum tempo depois nosso hospital em Haydan, no norte do Iêmen, foi bombardeado pela coalizão liderada pela Arábia Saudita.

Lidar com situações como essa não é fácil, por isso o apoio psicossocial oferecido por Médicos Sem Fronteiras tem sido fundamental na minha vida. Conversar com os colegas da equipe e dividir como nos sentimos diante de certos acontecimentos também ajuda muito. Muitas vezes não podemos contar com amigos e familiares, pois eles estão longe, e relatos como esse os preocupariam muito. Além disso, só quem está em campo pode entender esse sentimento um tanto contraditório: apesar de tudo, gostamos do nosso trabalho, e seguimos em frente sem perder a esperança de que tudo será melhor.

Birgitte Gundersen: Sim, em Aden, no Iêmen, definitivamente. Isso foi em abril de 2015, bem quando o conflito explodiu naquele país. O perigo era que a guerra estava caminhando de uma área da cidade para a área na qual eu estava morando. Houve ataques aéreos contra casas próximas à minha. Todas as janelas estouraram, a casa balançava, do lado de fora havia tanques e soldados. Nós tínhamos de passar por um posto de controle para ir ao hospital, e um soldado me disse ‘você está caminhando para a morte’. No momento, eu fiquei aterrorizada. Eu tive muito medo. Nós nos apoiamos em nosso time cirúrgico para ter mais força. Uma pessoa em meu grupo, um médico de emergência, disse que achava que não sobreviveria dessa vez. Mas você sempre tem esperança, faz contatos com os comandantes de áreas próximas e espera que eles lhe darão uma janela de cessar-fogo – assim como todas as suas tropas – para que você tenha tempo suficiente de ir de casa para o hospital e do hospital para o barco que nos levou do Iêmen para o Djibuti.

Por que os trabalhadores médicos são atacados numa guerra? Eles são um alvo de valor especial, do ponto de vista militar?

Tatiana Chiarellla: É difícil acreditar que ataques a médicos ou a qualquer outro trabalhador da área da saúde tenha algum valor especial numa guerra. Não entendo de estratégias militares, mas posso dizer que esses ataques tornam inviável a vida da população civil em áreas de conflito. As pessoas não têm mais a quem recorrer para ter acesso a cuidados médicos, inclusive quando essa necessidade é causada pela guerra. Tudo o que queremos é fazer nosso trabalho e tentar minimizar os danos às pessoas afetadas por conflitos.

Birgitte Gundersen: Profissionais da saúde fornecem cuidados médicos a qualquer pessoa, sem discriminação. Um médico vai cuidar de você baseado na emergência e na gravidade do seu estado, e não baseado em que lado você está, de onde você é etc. Mirar em um membro de uma equipe médica num momento em que as necessidades são maiores, em momentos de conflito, tem um impacto em tantas vidas – não é só o prédio que desaba, é todo o sistema de saúde.

O que organizações como a sua fazem para reduzir esse risco? Os protestos, campanhas e demais ações de comunicação fazem barulho nos lugares mais desenvolvidos, mas não parecem eficientes para conter combatentes nas zonas de conflito.

Tatiana Chiarella: Médicos Sem Fronteiras tem muita preocupação em proteger e preservar todos da equipe, sejam profissionais internacionais ou locais. Temos regras que podem ser bem restritas, dependendo do contexto. Isso quer dizer que não podemos andar livremente por qualquer lugar, por exemplo. Todo e qualquer integrante da equipe deve possuir um meio de comunicação, como telefone, rádio ou os dois, não podemos nos locomover sozinhos ou a pé; o coordenador do projeto deve sempre estar ciente da localização de cada pessoa da equipe, por isso também temos um quadro em que sempre devemos informar nossa localização, e ligar em caso de mudança de planos. Existe também um quarto de segurança ou um “bunker”, abastecido com água, comida, cobertores e tudo necessário, caso seja preciso passar alguns dias.

As regras são muitas e servem para nossa segurança, por isso cabe a nós respeitá-las. Mas também estamos cientes de que não é possível estar 100% protegido, ainda mais com ataques deliberados a instalações médicas, nas quais costumávamos nos sentir protegidos.

Birgitte Gundersen: Nós temos que achar um equilíbrio entre nos mantermos envolvidos e nos mantermos seguros – é um dos maiores desafios que estamos tendo hoje. A estratégia de segurança da CICV é baseada em diálogos regulares com todas as partes dos países em que trabalhamos, para sermos aceitos como puramente uma organização humanitária que não tem uma agenda política – ou qualquer outro tipo de agenda.

Isso significa, por exemplo, que nós sempre nos mantemos em contato com os comandantes locais, do exército ou do grupo armado que controla a área. Nós explicamos para eles a razão de estarmos lá. Nós precisamos de aprovação das partes em conflito para nos mover. Nós não provocamos. Nós não vamos até sermos aceitos. E nós usamos o emblema da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho para nos identificarmos e esperamos que isso nos proteja. Colocamos isso em nossos carros e no topo das nossas instalações médicas. O CICV faz tudo que está ao seu alcance para minimizar os riscos; o CICV está em contato com muitos grupos armados e militares ao redor do mundo e é muito conhecido. Mas às vezes eu não entendo o motivo de não quererem nos ouvir, pressionarem nossos hospitais ou até mesmo nos atacarem.

Qual a extensão dos ataques

Em julho de 2015, o CICV publicou um amplo estudo sobre o perfil desses ataques, mostrando quem são os perpetradores e quais são os “alvos”.

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Os MSF (Médicos Sem Fronteiras) têm lidado principalmente com ataques contra hospitais sírios aos quais a organização presta apoio. Só nos cinco primeiros meses de 2015 foram 11 ataques no país, incluindo o que deixou 55 mortos em Aleppo na quarta (27/04).

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Fonte: Nexo
Texto: João Paulo Charleaux
Data original da publicação: 07/05/2016

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