‘Como é possível defender a narrativa de meritocracia quando o Brasil é o país que menos taxa herança?‘
A provocação é do economista irlandês Marc Morgan Milá. Nos últimos anos, ele vem investigando dados sobre a concentração de renda no Brasil para definir um retrato mais apurado da desigualdade no país.
“Se você ganhar uma fortuna de seus pais e essa fortuna é pouco taxada, como no Brasil, você já começa com mais vantagens na sociedade. Como falar de meritocracia? O que há é a persistência da desigualdade através de gerações”, diz ele, em entrevista à BBC, durante o Brazil Forum UK, evento organizado por estudantes brasileiros na Inglaterra.
Uma das conclusões mais contundentes de seus estudos é de que a desigualdade no Brasil não caiu tanto quanto se imaginava nos últimos anos: na prática, argumenta o especialista, ela acabou ofuscada pelo enriquecimento dos mais ricos num ritmo superior ao dos mais pobres.
Nascido na Irlanda, Milá é aluno do francês Thomas Piketty, o economista que ganhou fama mundial com seu livro, o best-seller O Capital no Século 21, em que mostrou que o capitalismo vem concentrando renda.
No Brasil, a alíquota máxima do imposto sobre herança, o ITCMD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação), de competência estadual, é de 8%. Mas a média cobrada é menor, de 4%, lembra o economista.
Já em outros países, como a Europa Ocidental, os Estados Unidos e o Japão, essa taxa é bem mais alta, de 25% a 40%.
Milá defende a implementação de um sistema de impostos de herança “progressivo”. “Ou seja, quanto maior a fortuna a ser recebida, maior a incidência do imposto”, explica.
Isso não significa dizer que toda e qualquer herança deveria ser sobretaxada. O economista reforça que o imposto deveria variar de acordo com o montante recebido.
“Talvez seja injusto para famílias mais modestas pagar maior alíquota da herança. Mas a chave é a progressividade. Acima de determinado nível, tem que ser debatido se as taxas deveriam ser aumentadas e em até quanto. O problema do Brasil é que se aplica apenas uma alíquota, o que é muito limitante, independentemente do volume do patrimônio transferido”, diz.
Milá lembra, contudo, que outras nações emergentes não cobram nenhum imposto sobre herança, como China, Índia ou África do Sul.
“Mas a pergunta que devemos nos fazer é: deveríamos seguir o exemplo deles?”, questiona o economista.
Segundo ele, há uma associação direta entre a taxação de grandes heranças e a desigualdade.
“Há uma forte correlação entre como você regula a transmissão de riqueza e o desempenho dos indicadores de desigualdade de renda”, diz.
Questionado pela reportagem, Milá argumenta que o caso vale inclusive para os Estados Unidos que, embora longe de ser exemplo, ainda é menos desigual do que o Brasil.
“É importante lembrar que, durante as décadas de 50, 60 e 70, países como os Estados Unidos e o Reino Unido eram os que cobravam as maiores alíquotas sobre a herança, chegando a 70%-80% em alguns casos”, explica.
O problema, segundo Milá, é que não basta aperfeiçoar a tributação sobre a herança se o sistema tributário não for reestruturado como um todo.
“Trata-se de apenas um ingrediente. No caso americano, por exemplo, essa taxação foi amplamente erodida ao longo do tempo. Hoje há várias lacunas que possibilitam aos mais ricos evitarem pagar um imposto maior.”
No contexto brasileiro, além da alíquota única e baixa, o sistema também é falho, argumenta o economista. “Não necessariamente a transmissão é feita quando da morte, mas pode ser feita por meio de ‘presentes’ e doações”, acrescenta.
Na avaliação de Milá, “não queremos construir uma sociedade na qual as pessoas herdem fortunas e, por causa disso, não tenham que trabalhar, enquanto os outros não têm a mesma opção”.
Solução
Qual seria, então, a solução para a desigualdade no Brasil?
Para Milá, “essa decisão cabe aos brasileiros. Como um observador internacional, depende de quais são as preferências”.
Ele arrisca palpites. “Há muito mais que pode ser feito no campo da arrecadação. O Brasil ainda recolhe muito pouco comparado com o que poderia porque há muitas isenções”.
Neste sentido, diz ele, o argumento “de que se paga muito imposto no Brasil” pode ser justificável do ponto de vista da classe média.
“Talvez a classe média tenha um ponto. Porque muitas dessas isenções se aplicam a rendas dos muitos ricos, então esse fardo acaba ficando com ela”, diz.
“Aqueles que ganham mais deveriam pagar uma fatia maior da sua renda. Esse é um elemento crucial. Estou falando do montante de imposto que você paga se a sua renda ultrapassar um determinado limiar”, acrescenta.
“Por exemplo, se um executivo ganha US$ 1 milhão e quer ganhar outro US$ 1 milhão, a alíquota vai incidir sobre esse adicional. Isso cria um menor incentivo para que ele receba esse aditivo salarial. É uma forma de regular renda numa sociedade.”
Segundo Milá, é preciso definir quais níveis são “justificados”.
“Alguém deveria ganhar mais de US$ 1 milhão por ano? A alíquota não é tão importante, mas, sim, a partir de que limiar essa alíquota vai valer. Claro que você não vai aplicar uma alíquota de 90% em quem ganha 50 mil reais por ano. Tudo depende de como você estrutura as alíquotas em acordo com os limiares”, assinala.
O economista acrescenta que a desigualdade no Brasil e no mundo é uma “escolha política”.
“Em última análise, a desigualdade não é um fenômeno natural. Sempre foi uma escolha política. Quando as sociedades se tornam mais desiguais, o processo econômico para sustentar mais crescimento fica mais difícil, uma vez que há poucas pessoas no topo”, diz.
Para Milá, quanto mais desigual uma sociedade, menos democrática ela se torna.
“Se você concentra renda nas mãos de poucas pessoas, qual é o sentido da democracia? Qual é o sentido do processo eleitoral? Neste sentido, a política acaba se tornando um jogo de R$ 1 por voto, de US$ 1 por voto, em vez de uma pessoa por voto”, conclui.
Fonte: BBC Brasil
Texto: Fernanda Odilla, Nathalia Passarinho e Luís Barrucho
Data original da publicação: 06/05/2018