Leonardo Sakamoto
Fonte: Blog do Sakamoto, com edições
Data original da publicação: 13/05/2015
Os 20 anos do sistema de combate ao trabalho escravo no Brasil foram celebrados, na manhã desta quarta (13), 127º aniversário da Lei Áurea, em evento no auditório do Ministério do Trabalho e Emprego, em Brasília. Auditores, procuradores, juízes e autoridades que estiveram envolvidos nessa política ao longo das últimas duas décadas deram seus depoimentos.
Em maio de 1995, a primeira operação do grupo especial de fiscalização móvel foi realizada no país. Coordenado por auditores fiscais do trabalho e em parceria com procuradores do Ministério Público do Trabalho e policiais federais e rodoviários federais, essas equipes investigam denúncias, resgatam trabalhadores, obrigam o pagamento de salários e direitos trabalhistas devidos e reúnem provas para a abertura de processos trabalhistas e criminais contra os empregadores envolvidos.
Desde então, mais de 49 mil pessoas foram resgatadas de fazendas de gado, soja, algodão, frutas, cana, carvoarias, canteiros de obras, oficinas de costura, entre outros. Nesse período, o trabalho escravo contemporâneo deixou de ser visto como algo restrito a regiões de fronteira agropecuária, como a Amazônia, o Cerrado e o Pantanal e, paulatinamente, passou a ser fiscalizado também nos grandes centros urbanos.
Rosa Campos Jorge, presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho, reivindicou que o Ministério do Trabalho e Emprego voltasse ser protagonista na garantia de direitos social. O ministro da pasta, Manoel Dias (PDT), que estava sentado ao lado, afirmou que um novo concurso para a contratação de auditores fiscais deve ser aberto em breve.
O retorno urgente do cadastro de empregadores flagrados com mão de obra escrava, a conhecida “lista suja”, suspensa por decisão do Supremo Tribunal Federal, também foi exigido na mesa de abertura, que também contou com a presença de Luís Camargo, procurador geral do Trabalho, Paulo Sérgio de Almeida, secretário nacional de inspeção do trabalho do MTE, e Mario Guerreiro, da Advocacia Geral da União.
Também foi lembrado o assassinato de três auditores fiscais e de um motorista do Ministério do Trabalho e Emprego – no que ficou conhecido como a Chacina de Unaí (MG), em 28 de janeiro de 2004. Até agora, os empresários apontados como mandantes – Antério e Norberto Mânica – não foram à julgamento.
Combate ao trabalho escravo até quando?
Criada por Fernando Henrique (que reconheceu diante das Nações Unidas, em 1995, a persistência de formas contemporâneas de escravidão em nosso território), elevada à condição de exemplo internacional por Lula (que ampliou os mecanismos de combate a esse crime) e mantida por Dilma, ela tem sido uma política de Estado e não de governo.
Milhões de reais em condenações e acordos trabalhistas foram pagos. Centenas de empresas aderiram ao Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, comprometendo-se a cortar negócios com quem utiliza esse tipo de crime. Temos um Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, além de estados e municípios engajados em planos regionais.
Nesses 20 anos, programas de prevenção e reinserção passaram a ser implementados envolvendo de jovens que ainda não estão em idade laboral até adultos resgatados.
O Brasil é visto como referência nos fóruns internacionais e no sistema das Nações Unidas por conta disso.
Mas a política nacional de combate a esse crime está sofrendo pesados ataques de grupos que perdem dinheiro com ela. E apenas parte do governo federal está se dedicando a protegê-la.
Há três projetos tramitando no Congresso Nacional para reduzir o conceito de trabalho escravo.
Hoje, são quatro elementos que podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado, servidão por dívida, condições degradantes (trabalho sem dignidade alguma, que põe em risco a saúde e a vida do trabalhador) e jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua vida).
A bancada ruralista diz que é difícil conceituar o que sejam esses dois últimos elementos, o que gera “insegurança jurídica”. Querem que as condições em que se encontram os trabalhadores, por mais indignas que sejam, não importem para a definição de trabalho escravo, mas apenas se ele está em cárcere ou não.
Ou seja, se trabalhadores bebiam a mesma água do gado, se eram obrigados a caçar no mato para comer carne, se ficavam em casebres de palha em meio às tempestades amazônicas, se pegavam doenças ou perdiam partes do corpo no serviço e se eram largados sós, entre tantas outras histórias que acompanhei em mais de uma dezenas de operações de libertação de escravos que participei no campo desde 2001.
O fato é que com o confisco de propriedades tendo sido aprovado, no ano passado, após 19 anos de trâmite, a bancada ruralista passou a atuar para afrouxar o conceito. É aquela coisa: concordo que se puna assassinato…desde que sejam os cometidos entre 12h e 19h.
Ou seja, praticamente condenar só quem usa pelourinho, chicote e grilhões, sendo que os tempos mudaram, a escravidão é outra e os mecanismos modernos de escravização adotados são sutis. Com a mudança no conceito, milhares de pessoas que, hoje, poderiam ser chamadas de escravos modernos simplesmente vão se tornar invisíveis. Vamos resolver o problema chamando-o por outro nome.
Ao mesmo tempo, a “lista suja” do trabalho escravo foi suspensa em decisão do ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, no apagar das luzes do ano passado, a pedido de uma associação das incorporadoras imobiliárias, ele está suspenso.
Desde 2003, esse cadastro público que reúne empregadores flagrados com esse crime pelo Ministério do Trabalho e Emprego tem sido uma das maiores ferramentas para o combate à escravidão. Ele garante ao mercado transparência e informações para que empresas nacionais e internacionais possam gerenciar os riscos de seu negócio. E, consequentemente, proteger o trabalhador.
Após protestos da sociedade civil e do setor empresarial, que demandam o retorno desse instrumento de gerenciamento de risco, o Ministério do Trabalho e Emprego e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República lançaram uma nova portaria prevendo a recriação da “lista suja” com base na Lei de Acesso à Informação.
Contudo, apesar dela já estar pronta, ainda não foi divulgada.
Manoel Dias, no evento desta quarta, afirmou que o ministério já fez o que podia para o retorno da “lista suja”.
A Advocacia Geral da União defende que o Supremo Tribunal Federal deve definir a perda do objeto da antiga portaria que regulava a lista e foi suspensa. Mas, segundo servidores públicos ouvidos por este blog, não quer agir nesse sentido.
Ou seja, o governo quer e não quer combater o trabalho escravo.
Por fim, caso seja aprovado do jeito em que está o projeto que regulamenta a terceirização e está tramitando no Congresso Nacional, o combate ao crime sofrerá um revés. Casos famosos de flagrantes de trabalho escravo surgiram por problemas em fornecedores ou terceirizados em que o governo federal e o Ministério Público do Trabalho puderam responsabilizar grandes empresas pelo que aconteceu na outra ponta. Consideraram que havia responsabilidade solidária por se constatar terceirização de atividade-fim.
Com o projeto aprovado, isso será mais difícil. Além do mais, os chamados “coopergatos” (cooperativas de fachada montadas para burlar impostos) irão se multiplicar e o nível de proteção do trabalhador cair.
Há setores no governo federal, em governos estaduais e municipais e em diversos partidos que têm atuado firmemente no combate a esse crime. Contudo, há outros setores que fazem corpo mole ou agem contra.
Nos corredores do Palácio do Planalto e da Esplanada dos Ministérios, por exemplo, há quem defenda reservadamente que melhor seria deixar o conceito de trabalho escravo retroceder e a “lista suja” ser derrubada porque a situação atual cria problemas para setores econômicos, como o da construção civil, que tocam obras do PAC. Ou doam recursos para campanha. Nesse sentido, o Ministério do Trabalho e Emprego acaba tendo como “inimigos” instituições que, em tese, deveriam defendê-lo.
Entidades patronais vêm intensificando a resistência aos avanços sociais em diversos fóruns. No âmbito da Organização Internacional do Trabalho, vêm se tornando cada vez mais frequentes as ameaças de boicote aos debates tripartites sobre temas tão diversos quanto a responsabilidade das empresas sobre as condições de trabalho em cadeias produtivas globais, o direito fundamental dos trabalhadores à greve e a definição de trabalho forçado e o alcance dos dispositivos do Protocolo Adicional à Convenção 29, recentemente publicado, que trata do tema. Tentam, não raro, interditar o debate democrático e a reafirmação dos direitos humanos, caminhos para garantir um modelo sustentável.
Sem isso, a tão proclamada paz social que consta da Constituição da maioria dos Estados modernos corre o risco de se tornar letra morta.
É momento de analisar e celebrar os 20 anos que se foram. Mas também lembrar que há muito o que fazer. E principalmente, que tudo o que é sólido desmancha no ar.
Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política. Cobriu conflitos armados e o desrespeito aos direitos humanos em Timor Leste, Angola e no Paquistão. Professor de Jornalismo na PUC-SP, é coordenador da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão.