Um negócio obscuro floresce em oficinas de costura clandestinas no estado de São Paulo. Nelas, centenas ou até mesmo milhares de imigrantes ilegais trabalham em condições que lembram a escravidão.
Eles são na maioria bolivianos, que trabalham de segunda a sábado, das 7h à meia-noite, ganhando menos de 400 dólares por mês, produzindo muitas vezes para grandes grifes do mercado vestuário.
As confecções de roupas que se valem desse trabalho análogo ao escravo conseguem obter uma vantagem competitiva de mais de 2.000 reais para cada imigrante explorado, segundo cálculos do Ministério Público do Trabalho de São Paulo.
“A maneira como esses imigrantes são explorados gera um lucro enorme para quem está por trás da exploração”, afirma o procurador do Trabalho Luiz Fabre. “O concorrente tem duas alternativas: ou adota as mesmas práticas ou fecha.”
A terceirização, comum no setor têxtil, agrava a situação, diz a defensora pública federal Fabiana Galera Severo. “Grandes empresas se valem de um vácuo jurídico para terceirizar a própria atividade e, com isso, se livrar de responsabilidades trabalhistas.”
Bolivianos exploram bolivianos
Os bolivianos são geralmente trazidos para o Brasil por aliciadores. “Eles visitam as casas, ou as vítimas veem anúncios em jornais. São pessoas em situação vulnerável, que vivem em áreas rurais ou em situação grave de pobreza”, relata a jornalista boliviana Carmen Hilari, da Pastoral do Migrante.
Durante três meses ela trabalhou numa oficina de costura no Brás, no centro de São Paulo, para poder relatar os casos de exploração. Donos de oficina bolivianos, que já trabalharam para confecções de sul-coreanos, hoje exploram os compatriotas.
“Muitos deles retêm os documentos até que o trabalhador consiga pagar o valor da viagem da Bolívia até o Brasil. Os imigrantes ficam invisíveis na clandestinidade por muito tempo”, lamenta.
As falhas começam na fronteira. Os imigrantes a atravessam sem passar por um processo de identificação. A ação dos chamados coiotes e também de redes familiares ocorre em locais de difícil acesso pela fiscalização do trabalho, de acordo com o Ministério da Justiça.
“Os grupos de coiotes atravessam a fronteira sem que apresentem documentação e ameaçam as vítimas”, diz Fernanda dos Anjos, diretora do Departamento de Justiça do Ministério da Justiça.
Segundo ela, é necessário agir no âmbito do Mercosul para difundir entre os imigrantes informações sobre os acordos de livre trânsito. “Os imigrantes podem apresentar um documento de identificação na fronteira para não ficar de forma ilegal no Brasil”, explica.
Outra medida é a ampliação da fiscalização. Uma frente de pesquisa do ministério visitará neste mês 15 cidades onde foram identificados os pontos mais vulneráveis. Elas ficam no Amapá, em Roraima, no Acre, no Mato Grosso do Sul, no Paraná e no Rio Grande do Sul. No Amazonas, segundo o ministério, a rede de postos instalada já é ampla.
“Não há um trabalho em prol da deportação. Pelo contrário, o Brasil tenta receber imigrantes em situação de violação de direitos humanos e de miséria em seus países de origem”, diz Severo. “O que é preciso evitar é que aqui eles se tornem alvos do tráfico internacional de pessoas e do trabalho escravo.”
Lei só para os pequenos
Na esfera criminal, a Justiça tem conseguido alcançar apenas os “peixes pequenos” na cadeia da exploração. O artigo do Código Penal que trata do trabalho escravo pune apenas pessoas e não empresas.
Segundo a subprocuradora-geral Raquel Rodge, do Ministério Público Federal, o desafio é alcançar todos os envolvidos. “Nós notamos que as investigações estavam muito limitadas ao executor imediato e às vezes ao aliciador, mas ela não se aprofundava ao ponto de identificar o contratante”, diz.
A nova estratégia é provar o envolvimento dos maiores beneficiários do trabalho escravo no setor: as grandes grifes. “Se atuamos numa oficina, conseguimos resgatar 20 trabalhadores; se atuamos no âmbito das grandes marcas, conseguimos atingir até 15 mil pessoas numa única operação”, diz Fabre.
Na segunda-feira (05/05), o Ministério Público Federal em Piracicaba denunciou quatro pessoas por manter 51 trabalhadores em condições análogas à escravidão numa oficina de costura em Americana. Das vítimas, 45 eram bolivianas. Eles trabalhavam para a Rhodes Confecções, fornecedora da marca espanhola Zara.
Em 11 de abril, a Justiça negou em primeira instância um recurso da grife e responsabilizou a marca pela exploração de outros 15 trabalhadores. O grupo Inditex, responsável pela marca, afirmou que irá recorrer. Se condenada, a Zara corre o risco de entrar para a chamada lista suja do trabalho escravo, elaborada pelo Ministério do Trabalho e Emprego. O cadastro reúne o nome e a razão social das empresas que utilizaram esse tipo de mão de obra.
“É muito fácil para o beneficiário de uma cadeia produtiva argumentar que não tinha conhecimento da situação e, com isso, escapar de uma eventual condenação”, explica Fabre. Segundo ele, a medida mais eficiente tem sido aplicar multas pesadas para empresas que não fiscalizam o próprio processo de produção. “Essa repercussão no bolso acaba sendo mais eficiente do que uma responsabilização criminal.”
São raros os casos de condenação por exploração do trabalho escravo no Brasil. Entre 2010 e 2014, o número de autuações mais que dobrou. Mas a resposta do Judiciário ainda é lenta. Das 500 ações penais envolvendo escravidão contemporânea ajuizadas pelo Ministério Público Federal entre 2010 e 2013, apenas três foram julgadas.
Modelo internacional
O Projeto de Emenda Constitucional do Trabalho Escravo está há 15 anos parado no Congresso Nacional. Na Câmara dos Deputados, a Comissão Parlamentar de Inquérito que tratava do tema terminou no ano passado sem a aprovação de um relatório final após encontrar grande resistência, sobretudo da bancada ruralista.
Sancionada em janeiro de 2013, a lei paulista contra o trabalho escravo é apontada pela ONU como modelo mundial de combate à escravidão moderna. Ela prevê o fechamento das empresas exploradoras.
Além disso, os autuados ficam impedidos por dez anos de abrir uma nova empresa ou trabalhar no setor. As sanções também se aplicam a sócios e outros beneficiários da prática ilícita. O registro pode ser cassado assim que uma das empresas da cadeia produtiva sofrer uma condenação judicial em qualquer esfera – civil, trabalhista ou criminal – em segunda instância.
“A lei vai à raiz do problema porque impõe uma sanção econômica rígida”, argumenta o deputado estadual Carlos Bezerra Jr. (PSDB), autor da proposta. “O explorador só é condenado depois de um longo processo no âmbito criminal. A lei agiliza a possibilidade de responsabilização pelo trabalho escravo.”
Há duas semanas, a Assembleia Legislativa de São Paulo abriu uma CPI estadual sobre o trabalho escravo. Na primeira sessão, foi criado um canal para o recebimento de denúncias.
Segundo levantamento da CPI, o estado de São Paulo tem mais de 10 mil oficinas de costura clandestinas, onde trabalham ilegalmente cerca de 200 mil imigrantes, a maioria bolivianos. Os casos podem ser enviados por e-mail para o endereço cpitrabalhoescravo@al.sp.gov.br.
Fonte: Deutsche Welle
Texto: Karina Gomes
Data original da publicação: 06/05/2014