Com aumento do salário mínimo, novo gabinete argentino assume com autocrítica e relança governo

Terminada a turbulência no peronismo que governa atualmente a Argentina, causada pelo impacto da derrota nas primárias da eleição legislativa, o gabinete presidencial foi oficialmente reformulado. São sete os novos ministros do governo argentino (coalizão Frente de Todos – FdT), e as próximas semanas deverão ser de anúncios de medidas para a aposentadoria e imposto sobre os ingressos.

O primeiro anúncio foi sobre o salário mínimo, tema que começou a ser trabalhado já na terça-feira (21/09), um dia após a posse oficial do novo gabinete. O Ministro do Trabalho, Claudio Moroni, e o Conselho Nacional do Emprego, da Produtividade e do Salário Mínimo, Vital e Móvel estabeleceram um complemento de 35% sobre o valor acordado em abril deste ano. Com o ajuste, realizado em parcelas, o salário chegará a 33 mil pesos argentinos em fevereiro, o equivalente a R$ 942.

O acordo de abril foi recebido com rechaço pelas organizações de trabalhadores, e reflete algo que, agora, torna-se um grito impossível de não ser escutado, como pontua a candidata a deputada pelo FdT, Victoria Freire. “​​O resultado da eleição e a mudança de gabinete são uma oportunidade. Depois de dois anos isolados, efetivamente perdemos o contato com a realidade, apesar de que as organizações sociais sempre estiveram sustentando os territórios, foi um tempo em que não nos escutamos, não nos encontramos”, diz.

O que dizem as urnas

Na medição anual, o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec) revelou que a Argentina enfrentava 44% de pobreza no final de 2020, com base na renda da população. Um novo indicador trouxe uma cifra mais trágica: 49,6% de pobreza multidimensional no país no final de 2020, segundo o Conselho de Coordenação de Políticas Sociais. Esse índice utiliza um critério diferente – que não invalida o do Indec  – que cruza aspectos como moradia, emprego e saúde.

Diante desse cenário, o diagnóstico em comum na FdT sobre a mensagem das urnas consiste na necessidade de voltar a atenção às bases e ao próprio lema de campanha que levou o bloco ao governo: que os últimos sejam os primeiros.

No entanto, as discórdias foram muitas sobre os próximos passos a serem dados. Um setor do governo, simpático a uma política econômica e distributiva mais agressiva, critica a postura do atual ministro da Economia, Martín Guzmán, como é o caso do deputado nacional pelo FdT Hugo Yasky, secretário Geral da Central de Trabalhadores da Argentina (CTA), grêmio que representou na reunião desta terça para discutir o salário mínimo.

“O ministro da Economia sustenta uma posição mais conservadora sobre os recursos que podem ser aplicados para a reativação e demandas da população”, pontua Yasky. “Acreditamos, em alguns setores do Frente de Todos, ser necessário tomar mais medidas distributivas, enfrentar a posição conservadora que os setores do poder econômico impõem à Argentina, de que não podemos ter déficit fiscal nem financiar as demandas sociais”, completa.

A forte crise da Argentina soma em sua equação a dívida de 45 bilhões de dólares deixada pelo ex-presidente Mauricio Macri com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a paralisação de atividades econômicas durante a pandemia.

Segundo o economista Sergio Chouza, o governo cometeu uma série de erros buscando a necessária entrada de dólares ao país: cortes na aposentadoria, medidas assistenciais e de repasse financeiro insuficientes para a população vulnerabilizada, incentivos equivocados à aceleração das importações.

“Houve uma interpretação muito otimista sobre o acordo com os credores privados [da dívida com o FMI]. Confiavam que daria bons resultados nas disposições das variáveis macro, em particular na cotação dos mercados alternativos de dólar, que está altíssimo. Essa superestimação trouxe consequências sobre os preços internos”, pontua Chouza.

Relançamento do governo

Sem querer prolongar a discussão e as tensões da semana passada, o presidente Alberto Fernández anunciou as mudanças nos ministérios às 22h30 da sexta-feira (17): Relações Exteriores, Justiça, Segurança, Agricultura, Educação, Ciência e Tecnologia e Comunicação e Imprensa, além da substituição do chefe de Gabinete. Os novos ministros fizeram o juramento de posse nesta segunda-feira (20), cerimônia que o presidente abriu dedicando as primeiras palavras sobre a crise institucional do FdT.

“Muitas vezes, quando um dirigente não é escolhido com votos, se zanga com as pessoas. Quando não votam em nós, nos zangamos com nós mesmos, porque algo fizemos mal”, pontuou Fernández. “Os debates nunca me afetaram ou preocuparam. Sou presidente do Partido Justicialista. Me preocupa muito mais um movimento político silenciado, que não discute, do que um que reflete”, concluiu, seguido de fortes aplausos do público de funcionários que conformaram a plateia no Museu do Bicentenário.

Apesar da leitura que tem primado sobre a “vitória” da ala da vice-presidenta Cristina Kirchner, que pressionou a mudança de gabinete com as disposições de renúncia de diversos funcionários, a equipe do núcleo econômico do presidente se manteve intacta.

Em meio às tensões, alguns setores externos ao FdT aproveitaram para criticar os avanços nas políticas de gênero impulsiondadas pela coalizão, como uma “perda de foco”por parte do governo: a lei do aborto, o documento para pessoa snão binárias, a aposentadoria por tarefas de cuidado e a cota de trabalho trans, para citar algumas.

“As políticas de gênero parecem constrastar com a difícil realidade social, e na verdade, o que propomos é que não há contraposição de agendas”, explica a candidata a deputada pelo FdT Victoria Freire. “Todo avanço político, econômico e social implica, fundamentalmente, uma melhoria de vida para mulheres, pessoas LGBT, que se encontram empobrecidas, que têm mais dificuldade para conseguir um emprego, que sofreram com a pandemia exercendo tarefas domésticas não remuneradas e nem reconhecidas”, diz. 

Após a reconfiguração do gabinete presidencial, abriu-se um novo debate interno na coalizão – e também externo –, dado o deficitário na questão da paridade de gênero e por um dos novos ministros, contrário ao direito ao aborto: Juan Manzur, novo Chefe de Gabinete.

“Claramente, a luta pelo direito ao aborto foi algo que nos organizamos para conquistar, sem ter todas as vontades a favor, e alcançamos as vontades suficientes com uma imensa mobilização social”, afirma Freire. “Vamos conviver com contextos políticos contrários, mas, no presente, todos têm a obrigação de garantir a lei, e essa é a grande diferença. A institucionalidade constituída sobre qualquer opinião particular”, ressalta.

Mansur era governador da província nortenha de Tucuman e, como primeiro ministro não portenho, sua presença no gabinete também é uma busca de descentralização territorial nos espaços de governabilidade.

“Há muita expectativa sobre o novo gabinete e a ação em conjunto que podemos alcançar articulando com as organizações sociais, propondo um maior alcance no território e estabelecendo essa prioridade que foi parte do contrato eleitoral de que os últimos e as últimas sejam os primeiros”, conclui Freire.

Fonte: Brasil de Fato
Texto: Fernanda Paixão
Data original da publicação: 22/09/2021

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