“Proletários de todos os países, quem lava as vossas meias?”, questionaram, na década de 1960, as feministas francesas. Há muitas perguntas que a história das experiências subalternas ou invisibilizadas nos obriga a fazer.
José Soeiro
Fonte: Esquerda
Data original da publicação: 22/11/2021
A 19 de novembro de 1921, faz agora 100 anos, o Governador Civil de Lisboa pôs-se em fuga para o Brasil. O motivo? A luta das empregadas domésticas da capital contra um humilhante livrete que as obrigava a apresentar-se na polícia, recolher impressões digitais, registo criminal e outros documentos. A contenda começara quando, em maio daquele ano, o anúncio dessa obrigação pôs em polvorosa as 35 mil “criadas” de Lisboa, que não aceitavam ser tratadas como “mulheres de má vida” e assaltadas pelas taxas para obter o livrete. Em junho, numa assembleia com 300 mulheres, é fundada a Associação de Classe das Empregadas de Hotéis e Casas Particulares. Em poucos dias, a associação angaria mais de 3.500 sócias e abre várias delegações pelo país. Convoca-se então uma greve. Uma das líderes da associação é detida. Algumas trabalhadoras voltam às suas aldeias de origem. Nas casas dos patrões, o pavor do trabalho por fazer. Durante semanas, as empregadas de Lisboa resistem à repressão. Naquele mês de novembro de 1921, na sequência da sua primeira greve, as empregadas acabam por ganhar a luta contra o livrete. Mas queriam mais: respeito pelo seu trabalho e criar escolas e bibliotecas, fazer palestras e brochuras, tudo o que servisse para consciencializar a classe.
É a partir deste episódio real e praticamente esquecido que a atriz, dramaturga e encenadora Sara Barros Leitão decide contar-nos, no tempo que demora o ciclo de lavagem de uma máquina de roupa, a história recente do trabalho doméstico no nosso país. O “Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa”, a sua mais recente criação, não começa, todavia, na narrativa de há um século. Antes disso, é a invisibilidade destas tarefas que é levada à cena, reivindicando a nossa atenção, o nosso olhar, o nosso tempo, para esse trabalho em que tão pouco se repara, mas sem o qual o resto não seria possível. Desvelando, afinal, o espaço estético, também ele, como espaço de trabalho. Exigindo demoradamente, com os movimentos minuciosos e repetitivos de uma mopa ou de uma esfregona, que não deixemos de perguntar “quem limpa o mundo?”. O das artes, mas não só.
Depois, é como se nada desta longa história conseguisse escapar à obsessiva sensibilidade da peça. Os maus tratos e a humilhação, o paternalismo e a exploração disfarçada de afeto ou enfeitada de proximidade familiar, a mudança política, a partir da década de 1930, com o enquadramento social e ideológico da Obra de Santa Zita (padroeira das criadas!), uma associação de fiéis fundada para formar raparigas para o serviço doméstico e educá-las a serem obedientes e submissas – “servir os senhores como se serve a deus”. A migração interna dessas milhares de filhas de trabalhadores rurais, “confiadas aos patrões” para servir como criadas nas cidades e serem assim, desejavelmente, poupadas à fome.
Sara Barros Leitão transporta-nos para a Revolução – mais uma vez, mas vista agora por aquelas que não podiam sair de casa – e para o turbilhão de um processo em que um sindicato podia ser creche e cantina popular, alfabetização e convívio, organização de vizinhas e espaço de confidências. E para uma história feita corpo. O corpo em que se inscrevem a dominação e a opressão que o mecanizam, que o deterioram, que o desamparam, que o enchem de mazelas. Mas o corpo também como lugar de libertação, o corpo que sai à rua, que experimenta a liberdade, o corpo na voracidade de tudo viver quando tudo passou a parecer possível, o corpo que desafia e contesta o cansaço, que descobre o prazer e a sofreguidão desesperada de viver.
Há muitas histórias por contar dentro da história de quem somos enquanto país. Este “Monólogo…”, que estará em digretessão pelo país até abril do próximo ano, é pois um ato de resgate de uma experiência singular e valiosa, que aliás acompanha o que outros, como Olegário Paz ou Celeste Vieira, procuraram fazer no passado quando quiseram escrever a história de mulheres em luta e do Sindicato do Serviço Doméstico. Ou como fazem Inês Brasão, Manuel Abrantes e Nuno Dias, por exemplo, quando insistem em recolher, em dar a conhecer e em salvar do esquecimento tantas “memórias da servidão”.
Olhemos para elas, porque essas memórias falam e têm tantos silêncios para romper. Porque essas memórias elucidam e nos interpelam sobre o presente. Portugal é, em 2021, um dos países do mundo com maior proporção de trabalhadoras do serviço doméstico. Mais de 109 mil pessoas fazem esse trabalho, 98% mulheres, um terço migrantes. No serviço doméstico cruzam-se e ampliam-se todas as desigualdades: de classe, de género, as que resultam da racialização e da divisão internacional do trabalho. À desvalorização económica deste trabalho e das tarefas tidas como femininas, soma-se muitas vezes a violência, a invisibilidade e a desconsideração social e pessoal por quem o faz. Soma-se um “circuito global de cuidados” que importa “força de trabalho” de países do hemisfério sul para vir colmatar a “crise de cuidados” dos países europeus. Soma-se, à desigualdade social, uma verdadeira marginalização legislativa: o serviço doméstico é regulado por uma lei à parte, fora do Código do Trabalho, com menos direitos em aspetos essenciais da regulação laboral (período normal de trabalho, proteção em caso de despedimentos, descanso…) e um regime de proteção social de segunda (em que por exemplo não existe, para a maioria, subsídio de desemprego). Até 1979, não havia um salário mínimo para as trabalhadoras do serviço doméstico – e só em 2004 ele passou a ser o mesmo que o dos trabalhadores em geral.
“Proletários de todos os países, quem lava as vossas meias?”, questionaram, na década de 1960, as feministas francesas. Há muitas perguntas que a história das experiências subalternas ou invisibilizadas nos obriga a fazer. O “Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa”, título orgulhosamente roubado às Novas Cartas Portuguesas, ilumina esse silencioso ruído do trabalho doméstico e da condição servil em Portugal. A peça inquieta-nos, mexe connosco e emociona-nos. Põe-nos lado a lado com a atriz e, através dela, com as figuras que fizeram esta história. E, nesse espaço belo e precioso, é como se, empolgadamente, avançássemos com elas.
José Soeiro é dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.