Antonio David Cattani e Michele Savicki
Existem no Brasil, aproximadamente, sete milhões de trabalhadores domésticos, na sua grande maioria mulheres, negras e de baixa escolaridade, que em geral possuem alta carga de trabalho e baixa remuneração.
Apesar de a maior parte serem nacionais, o Brasil registra a “importação” de imigrantes, em especial filipinas, para o desempenho de tarefas domésticas. A entrada dessas mulheres no Brasil é intermediada por agências nacionais e estrangeiras que providenciam o visto de trabalho e fazem a conexão entre as trabalhadoras e as famílias empregadoras. Numericamente insignificante, esse fenômeno tem importância pois revela comportamentos das classes abastadas em dois aspectos: a busca pela distinção e o apreço pelos comportamentos servis.
A origem escravocrata do trabalho doméstico no Brasil
Em todo o mundo, a relação de trabalho doméstico remunerado é marcada por desigualdades de classe e de gênero. A atribuição de tarefas domésticas enquanto responsabilidade das mulheres faz parte de uma concepção moldada histórica e socialmente que distingue e hierarquiza os trabalhos produtivo e reprodutivo. A divisão sexual do trabalho reserva à mulher o trabalho no âmbito privado e doméstico, porém é a existência de classes forjadas pelo sistema capitalista que possibilita às mulheres de classes altas transferirem tarefas depreciadas às mulheres de classes baixas, perpetuando o sistema de dominação (FARIAS, 1982).
Além das desigualdades de gênero e classe, para compreender a configuração do trabalho doméstico no Brasil, é necessário recuperar a sua origem escravocrata. As possibilidades de inserção da mulher negra no mercado de trabalho após a abolição limitavam-se em grande parte ao trabalho doméstico (cozinheira, ama de leite, copeira, mucama, engomadora, dentre outros). Eram designadas como “criadas de servir”. Depois de 1888, houve uma grande preocupação com os libertos, vistos como “vadios” e despreparados para a vida em sociedade, levando as classes abastadas a intensificar o controle sobre a população egressa do cativeiro e seus descendentes. O objetivo era manter a ordem social e os “bons serviços”. Legislações específicas regulamentavam os contratos de serviços. Tais normativas previam a inscrição dos “criados de servir” em registros públicos, geralmente controlados pela polícia, e a anotação de contratos de trabalho, com justificativa em caso de demissão, funcionava como atestado de boa (ou má) conduta dos trabalhadores.
Conforme resgatado por historiadores, nos registros de trabalho eram frequentes os protestos de patrões sobre a desobediência e o atrevimento dos seus criados de servir. Ocorriam demissões em resposta aos pedidos de maior salário e dispensa de mulheres grávidas e idosas por não servirem mais a contento. A busca por respeito nas relações contratuais era vista como atrevimento, sendo comum a continuidade no tratamento: “o negro Adão”, a “negra Rosa” etc. A insubordinação demonstrava a recusa dos empregados em dar continuidade a práticas escravistas e condições de trabalho insustentáveis, mas era entendida como falta de respeito e incapacidade para o trabalho.
As relações patrões-empregados domésticos no final do século XIX esclarecem comportamentos que se mantêm até hoje. Especialmente, a permanência do arbítrio privado dos patrões, a exploração de menores de idade, a exigência de estar à disposição 24 horas sempre manifestando fidelidade e obediência em troca de “tratamento digno” (SANTOS, 2013, p. 53). Em especial nas situações em que a empregada reside na casa dos patrões, ocorre o domínio do seu tempo de trabalho de forma quase ininterrupta, resultando em apropriação da vida privada da trabalhadora, já que esta não tem tempo reservado para si.
Ignoradas pela Consolidação das Leis Trabalhistas de 1943, as trabalhadoras domésticas somente conseguiram um patamar digno de direitos em 2013 com a aprovação da Emenda Constitucional 72/2013, posteriormente regulamentada pela Lei Complementar 150/2015. Ou seja, 125 anos depois da abolição formal da escravatura.
Práticas servis, despreza pela “ralé” e distinção social
Na primeira década dos anos 2000 e até aproximadamente 2015, o número de desempregados caiu ao menor percentual já registrado na história do Brasil. A isso se soma o fato dos trabalhadores domésticos passaram a ter direitos básicos: limite de oito horas de trabalho e pagamento de horas extras. “Com dificuldade para encontrar empregadas que aceitem dormir no serviço, famílias de classe média alta estão trazendo domésticas das Filipinas.” (FOLHA, 2015).
Ao se referir à trabalhadora doméstica filipina contratada, uma das empregadoras entrevistadas se refere a título de elogio que: “A Liza está sempre bem humorada e eu preciso até pedir pra ela parar de trabalhar; o povo filipino gosta de servir.” (FOLHA, 2015). A empregadora expressa satisfação com a ausência de limites no tempo de trabalho e, sobretudo, ao fato que a doméstica demonstre bom humor na servidão. Na mesma reportagem, outro empregador declara: a empregada filipina “era incrível, fazia compras, limpava, cozinhava e dirigia. Ela até lavava o carro! No Brasil, babá é só babá, cozinheira só cozinha e empregada só limpa.” (FOLHA, 2015).
Condições de trabalho que para muitas brasileiras não são mais aceitáveis podem parecer razoáveis para trabalhadoras estrangeiras. Mas, por sua vez, as trabalhadoras estrangeiras têm maior dificuldade para sair de uma relação de trabalho indesejada, pois não conhecem ninguém no Brasil e não falam português. Em muitos casos, não têm condições de retornar ao seu país ou mesmo são proibidas de deixarem a casa dos empregadores.
Diversas situações de trabalho análogo à escravidão foram descobertas. Em alguns casos, as trabalhadoras não tinham direito a qualquer descanso, trabalhando mais de 16 horas por dia, inclusive domingos e feriados. A fiscalização do Ministério do Trabalho encontrou situações de falta de alimentação e restrição absoluta de saídas da casa, configurando cárcere privado; foram descobertas ainda situações de maus tratos e servidão por dívidas em que os custos anteriormente assumidos pelos empregadores (passagens e direitos trabalhistas) eram descontados do salário das trabalhadoras. Ainda, as trabalhadoras eram ameaçadas de deportação caso tentassem denunciar as condições de trabalho (REPÓRTER BRASIL, 2017; SINAIT, 2017; G1, 2017; AGÊNCIA BRASIL, 2017; ESTADO DE SP, 2017).
A contratação de mão de obra filipina simboliza a reação das classes abastadas à pequena ascensão social das trabalhadoras domésticas brasileiras e resistência aos recentes avanços da legislação trabalhista, buscando perpetuar os privilégios e as relações desiguais de poder existentes desde o período da escravidão.
Um segundo aspecto merece ser destacado. A preferência por trabalhadoras estrangeiras responde também a um desejo de distinção social e a um desprezo pelas classes populares brasileiras, de onde provêm as trabalhadoras domésticas nacionais. Conforme Jessé Souza:
“A classe média brasileira possui um ódio e um desprezo cevados secularmente pelo povo. Essa é talvez nossa maior herança intocada da escravidão nunca verdadeiramente compreendida e criticada entre nós.” (SOUZA, 2017)
A classe média se espelha fielmente nas classes mais abastadas, venerando-as e imitando-as. A integração plena e digna dos ex-escravos ao mercado de trabalho nunca ocorreu. Eles acabaram formando o que Jessé Souza denomina de maneira provocativa a “ralé”, ou seja, pessoas excluídas e desclassificadas, consideradas como não tendo a dignidade do agente racional, nem dotadas de habilidades produtivas desejadas pelo mercado. É nessa ralé que se encontram as mulheres trabalhadoras domésticas. Sua condição de subcidadania é reiterada o tempo todo de forma imperceptível nos signos sociais aparentemente sem importância. A linguagem corporal traduz em carne e osso toda uma visão de mundo e hierarquia social (SOUZA, 2003 e 2009). Isso é possível de se verificar na manifestação do senso de hierarquia pelas crianças cuidadas por trabalhadoras domésticas. Tais aprendizados se dão, por exemplo, pelas restrições espaciais e indumentárias, pela existência de um “banheiro da empregada”, pela utilização do quarto da trabalhadora como depósito, ou pela proibição de comer junto à família ou sentar no mesmo sofá (BRITES, 2007).
A preferência de altas classes por trabalhadoras domésticas estrangeiras responde, em parte, à compreensão de que as mulheres pobres brasileiras são ralé, subcidadãs, pessoas sem a qualificação e a capacidade desejadas para desempenhar o trabalho. A desqualificação das trabalhadoras domésticas brasileiras é explicitada num anuncio da agência Global Talent sobre a contratação de trabalhadoras filipinas:
“Um talento em sua casa. Encontrar uma profissional para cuidar da casa e da família é uma tarefa cada vez mais árdua para as famílias. A baixa qualificação e a alta rotatividade são algumas das experiências que as famílias brasileiras experimentam no dia a dia. (…) No mercado internacional de profissionais domésticos, as de origem filipina são consideradas referência no quesito qualidade e custo-benefício. São profissionais reconhecidas pela afetuosidade, o zelo, organização, domínio de técnicas de cozinhar, excelência na atividade de limpeza e pelo zelo com as crianças.” (REVISTA A, 2016)
Assim também referiu a reportagem da Revista Veja:
“Por aqui, essas estrangeiras são valorizadas pela vasta experiência. “Elas frequentam muitos cursos, como de cozinha e enfermagem, e o currículo chega a ter oito páginas” (…) Assim como a especialização, o idioma é um fator importante para a contratação das filipinas por famílias da elite paulistana. Em suma, os pais querem estimular os filhos a aprender inglês (a língua é um dos idiomas oficiais do país, ao lado do filipino).” (VEJA, 2017)
Empregar uma trabalhadora doméstica estrangeira, além de evitar a convivência com a ralé brasileira, demonstra distinção social, atribuindo capital simbólico aos empregadores. Segundo Bourdieu (2007), bens de consumo de luxo recebem outro valor além de atender as finalidades objetivas, pois atribuem distinção e garantem a dominação perante as demais classes; é o caso da prática de tênis (e não do futebol ou outros esportes), ou ainda da compra de um casaco de pele num país tropical. E a relação de trabalho doméstico na configuração brasileira para estes assemelha-se a uma relação de consumo, não de bens, mas de serviços de luxo.
A contratação de trabalhadoras domésticas filipinas é um elemento adicional nas estratégias de reconhecimento, de distinção social. Além de atender a finalidade objetiva de uma trabalhadora doméstica (limpeza da casa, cuidado das crianças etc.), indica um poder econômico e simbólico reservados às classes abastadas. Porém, essa distinção esconde o verdadeiro espírito dos donos da Casa Grande, mesmo quando essa seja uma cobertura no Leblon ou nos Jardins.
Referências:
AGẼNCIA BRASIL. MPT processa agências que faziam tráfico e aliciamento de filipinas no Brasil. 15 de agosto de 2017. Disponivel em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-08/mpt-processa-agencias-que-faziam-trafico-e-aliciamento-de-filipinas-no-brasil – acesso em 31 de maio de 2018.
BOURDIEU, Pierre. A Distincão: crítica social do julgamento. São Paulo: EDUSP; Porto Alegre, RS: Zouk, 2007. 560 p.
BRITES, Jurema. Afeto e desigualdade: gênero, geração e classe entre empregadas domésticas e seus empregadores. Cadernos Pagu (29), julho-dezembro de 2007.
COSTA, Ana Paula do Amaral. Criados de servir: estratégias de sobrevivência na cidade do Rio Grande (1180-1894). 174 p. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2013.
ESTADO DE SÃO PAULO. Ministério do Trabalho constata trabalho escravo entre domésticas trazidas das Filipinas. 31 de julho de 2017. Disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,ministerio-do-trabalho-constata-trabalho-escravo-entre-domesticas-trazidas-das-filipinas,70001917544 – acesso em 31 de maio de 2018.
FARIAS, Zaíra Ary. Domesticidade: “cativeiro” feminino? Rio de Janeiro: Achiame, 1982. 150 p.
FOLHA DE SÃO PAULO. Empresa ‘importa’ babás e domésticas das Filipinas para o Brasil. 10 junho 2015. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/05/1627108-empresa-importa-babas-e-domesticas-das-filipinas-para-o-brasil.shtml – acesso em 29 de maio de 2018.
G1. Ministério do Trabalho investiga se filipinas estão em condição de trabalho escravo em casas de família em SP. 31 de julho de 2017. Disponível em: https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/mp-investiga-se-filipinas-estao-em-condicao-de-trabalho-escravo-em-casas-de-familia-em-sp.ghtml – acesso em 31 de maio de 2018.
REPÓRTER BRASIL. Domésticas das Filipinas são escravizadas em São Paulo. 31 julho 2017. Disponível em: http://reporterbrasil.org.br/2017/07/domesticas-das-filipinas-sao-escravizadas-em-sao-paulo/ – acesso em 31 de maio de 2018.
REVISTA A. Publicação no Facebook em 02 de maio de 2016. Disponível em: https://www.facebook.com/revistaACHEI/photos/a.386167734787496.84366.304337249637212/1016644735073123/?type=3&theater – acesso em 31 de maio de 2018.
SANTOS, Maurício Reali. Gênero, raça e classe: as possibilidades de inserção das mulheres no mercado de trabalho doméstico em Porto Alegre no pós-abolição (1896-1908). 57 p. Trabalho de conclusão de curso (Graduação em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013.
SINAIT. Auditores-Fiscais resgatam filipinas escravizadas em residências de alto padrão em São Paulo. 03 de agosto de 2017. Disponível em: https://sinait.org.br/site/noticia-view?id=14594/auditores-fiscais%20resgatam%20filipinas%20escravizadas%20em%20residencias%20de%20alto%20padrao%20em%20sao%20paulo – acesso em 31 de maio de 2018.
SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: editora da UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003.
SOUZA, Jessé. A ralé brasileira. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2009.
SOUZA, Jessé. A elite do atraso. São Paulo: LeYa, 2017.
VEJA SP. Famílias investem em empregadas e babás filipinas. 01 junho 2017. https://vejasp.abril.com.br/cidades/babas-empregadas-filipinas/ – acesso em 29 de maio de 2018.
Antonio David Cattani é professor titular de sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Michele Savicki é advogada trabalhista e mestranda em sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
[…] Fonte: DMT […]