Qualquer projeto estará fadado ao fracasso se não visar eliminar o fascismo vigente.
Raquel Braga
Fonte: Justificando
Data original da publicação: 26/08/2021
“Os artistas são a antena da raça.”
Ezra Pound
Maria Augusta Ramos delineia as alterações do mundo do trabalho em dois documentários, Não toque em meu companheiro (2020), fantástica história sindical de 1990/1991, e Futuro junho (2016), rodado nas três semanas antecedentes à Copa do Mundo de 2014.
Não toque em meu companheiro adota o nome do movimento garantidor dos salários de 110 bancários – 50 paulistas, 30 mineiros e 30 paranaenses –, funcionários da Caixa Econômica Federal, dispensados injustamente, “por justa causa”, com interferência direta do presidente da república, Fernando Collor de Mello, após a greve de 1991.
Os dirigentes obtiveram, sob minuciosa e organizada condução, autorizações de descontos em folha, no montante de 0,3% sobre os salários dos participantes, destinados ao pagamento dos dispensados até a reintegração judicial, um ano depois. O movimento, ao final, contava com 35 mil bancários colaboradores.
Quase 30 anos depois do ocorrido, o filme promoveu encontros entre os dirigentes sindicais responsáveis pela cotização e os reintegrados e entre todos eles e os jovens bancários de 2020.
Solidariedade, carinho e cumplicidade no primeiro encontro, destoaram do segundo, em que emergiram sinais de desinteresse sindical, despolitização e individualismo. A minoria dos jovens bancários divergiu das análises de conjuntura dos sindicalistas, evidenciando, mais do que mero conflito entre gerações, tratar-se de mundos em disputa.
Inevitáveis outras acareações comparativas, a força do regramento jurídico na contenção e reparação dos ilícitos, como na história, em contraste ao porvir, diminuição do Estado de providência social, desproteção legal e tecitura do tratamento dispensado às relações de trabalho no presente.
O longa-metragem entrelaça a causa imediata (retorno dos companheiros aos postos de trabalho) à luta principal (defesa das instituições públicas), incluída a não privatização da Caixa Econômica Federal, questões indissociáveis das eleições presidenciais.
Outro paralelo vem à tona: a similaridade dos presidentes, Collor e Bolsonaro. Manchetes jornalísticas, arquivos sindicais e televisivos recuperam idênticas pautas e estratégias de campanha: poder ungido por Deus, pai de família, moralismo e combate à “corrupção”.
Marilena Chauí, filósofa, e Luiz Carlos Belluzzo, economista, aparecem em diferentes momentos. Ela afirma: “o liberalismo encobre o desemprego estrutural pela uberização do trabalho, cada um acha que é empresário de si mesmo.” Ele destaca: “Os bancos privados distorcem a alocação de recursos, não investem. O mercado financeiro é autorreferido, não tem uma relação mais próxima com o emprego, produção e renda, estão relacionados com eles mesmos.”
O resultado é comovente. As belas imagens do projeto “Minha Casa, Minha Vida” e da Caixa Econômica Barco nas águas amazônicas emocionam, amostras do papel fundamental dos bancos públicos no desenvolvimento do Brasil exuberante e ferozmente destruído na atualidade.
O som de Johan Sebastian Bach preenche a tela nos minutos finais, pouco antes dos créditos, é a autorização para chorar.
O filme Futuro junho, por sua vez, substancia a tensão social do país às vésperas de sediar a Copa do Mundo de 2014, consequência da crise fabricada, aproveitada pelas elites nacionais e parcelas conservadoras, objetivando a retomada do neoliberalismo. A narrativa desenha a elevação dos lucros e o repasse dos prejuízos aos trabalhadores.
As primeiras tomadas revelam o gigantismo paradoxal de São Paulo, moderna arquitetura vertical e horizontalmente lenta pelo tráfego excessivo. Motoqueiros, em bailado habilidoso a despeito da letalidade inerente, disputam o espaço dos retrovisores de outros veículos. O povo espremido no transporte público e a elite sobrevoando a cidade de helicóptero. SP e a macroeconomia enquadram a fotografia da desigualdade social brasileira. Corta!
Avança a numerosa passeata nas laterais da tela, profissionais municipais de educação na defesa do acesso à escola de qualidade. O carro de som pontua “a inversão das prioridades da cidade, território da especulação imobiliária e financeira, arrecadação de 52 milhões de orçamento, receitas dos impostos pagos pelos cidadãos e não revertidos para a população em saúde, educação e habitação popular.”
Os protagonistas são os laboristas, seus mundos do trabalho e a conjuntura: bolsa de valores, medidas econômicas, repressão agressiva da polícia militar aos lutadores sociais, principalmente ao movimento grevista dos metroviários, e a copa do mundo (o sete a um da Alemanha no Brasil se assemelha à câmera da cineasta, que não aparece em cena, embora esteja integralmente no documentário).
O economista de investimentos, André, explica o desaquecimento econômico em 2014, após uma década de estabilidade, sem motivos para tanto alarde, porém, a elite conservadora resolveu sabotar e apostar no caos, atendendo aos anseios neoliberais privatistas e antinacionais.
O motoboy, Alex, recebe, no lar, a vendedora de jazigos, imagem nada aleatória ante o grau elevado de acidentes de trabalho fatais em sua profissão. Relata mortes, em serviço, de dois irmãos no espaço exíguo de um ano e dois meses.
O metalúrgico da Volkswagen, Anderson, diferentemente da expressiva parte dos brasileiros do período, não troca o carro de mais de dez anos, exibido em sua garagem.
O líder metroviário, Fernandes, conduz o movimento grevista e, no curso do filme, é posto na rua por isso. O desembargador explica o critério para declarar a abusividade da greve e condenar o Sindicato dos Metroviários em 100 mil reais/dia, na sessão de julgamento no Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo, retransmitida para os espectadores: “que funcionasse de forma normal como se não houvesse greve, naqueles horários de pico, autorizando que 70%, do que não é normal, funcionasse também nos demais horários.”
O absurdo da decisão mata o direito de greve e mingua o sindicato.
A atividade sindical, fio condutor da solidariedade dos trabalhadores, não existe sem legislação de sustento e, sem ela, graças à precarização do trabalho demonstrada no padrão dos personagens reais: o metalúrgico sem condições de adquirir o carro que produz e o motoboy que não consegue pagar o plano de saúde para o filho, nem mesmo o vendido pela própria esposa.
Ideias correlacionam-se, a concepção neoliberal de valorização do capital financeiro e o tratamento coisificado do trabalhador, descartável e eliminável, contrapondo-se com os seres humanos que o filme delicadamente desvela. São pessoas interessantes, dignas e identificadas: Alex Cientista, André Perfeito, Anderson dos Anjos e Alex Fernandes.
As diferenciações no grau de aproveitamento da vida aparecem na tela. O analista do mercado financeiro é o único a desfrutar da cidade: jantar em bom restaurante, concertos musicais e o jogo do Brasil, na Copa do Mundo, no estádio.
E não nos enganemos, embora o país tenha uma desigualdade abissal, essa configuração injusta a privilegiar o capital tem sido imposta mundialmente: pouca gente vive a vida, a maioria a assiste pela TV.
As 26 pessoas mais ricas do mundo detêm a mesma riqueza dos 3,8 bilhões mais pobres que correspondem a 50% da humanidade, conforme indicam dados do relatório da OXFAM, de 2018. O trabalho perdeu a centralidade, dinheiro gerando cada vez mais dinheiro é a proposta do neoliberalismo para o mundo.
As últimas cenas de Futuro junho espelham um Brasil sacolejante nos trilhos, em direção à escuridão. A sensibilidade artística, profética, antecipou o destino Paulo Guedes, ventríloquo do boneco fascista. Na verdade, quem comanda o desmonte do Estado, resvalando nas pastas da saúde, da educação e da cultura. Metas perversas bem-sucedidas, deixar queimar empregos, películas e florestas, objetivando privatizações de bancos, água, energia e o que mais conseguir.
Os dois documentários auxiliam a compreensão dos fenômenos para desestabilizar as narrativas demagógicas e oportunistas que engendraram a atualidade e não fogem ao selo da documentarista, uma das melhores do mundo, a desnaturalização dos comportamentos hipócritas diante do inadmissível.
A cineasta, com montagens primorosas, transforma imagens em convocatórias para sacudir o estado das coisas expostas. Reparem na afirmação fundamental de um dos bancários das antigas: “a necessidade da politização do debate como mais importante do que a implementação de um plano político específico.”
Exato. Emerge a urgência de um Projeto de Nação para o Brasil, com o envolvimento de todos os setores da sociedade, imune aos casuísmos, derrotando a lógica do capital financeiro, relacionando pautas ignoradas, fazendo chegar à consciência a necessidade de lutar pelo acesso igual aos bens, materiais e imateriais, em idênticas condições.
O que alcançaremos na atuação em conjunto aos movimentos sociais, criar e implementar políticas públicas afirmativas a sanar desigualdades e não aprofundá-las, como constatado na cronologia dos fatos denunciados pelos documentários.
Contudo, qualquer projeto estará fadado ao fracasso se não visar eliminar o fascismo vigente. A destruição do país, militarizado e desgovernado, em plena pandemia, resulta da política corrupta, objeto da CPI do Senado, e do genocídio de mais de 570 mil pessoas até a segunda quinzena de agosto de 2021.
À luta, ELE NÃO MAIS!
Os 10 mil caracteres disponíveis neste espaço, insuficientes para enumerar os prêmios nacionais e internacionais da cineasta, limitam-me a incluir o Prêmio Marek Nowicki (2014), pelo conjunto da obra, outorgado pela Helsinki Foundation of Human Rights.
A arte não precisa necessariamente ser engajada, no entanto, se há fascismo, os artistas que se levantam contra ele são tão imprescindíveis quanto os heróis que o combatem. Viva Maria Augusta Ramos!
Raquel Braga é Juíza aposentada (TRTRJ). FGV/MBA em Poder Judiciário. Especialista Crítica em Direitos Humanos – Universidade Pablo de Olavide Sevilha, Espanha, AJD e ABJD.