Leonardo Sakamoto
Fonte: UOL
Data original da publicação: 03/04/2019
O ministro da Economia Paulo Guedes defendeu, mais uma vez, em audiência na Câmara dos Deputados, na quarta (3), que os mais pobres não devem ser os mais atingidos pela Reforma da Previdência.
Citou a progressividade nas alíquotas, que cobrarão mais de quem ganha mais, inclusive no funcionalismo público, e menos de quem recebe menos. Segundo ele, quem terá que trabalhar e contribuir com parcelas maiores é a “moça de classe média alta“. Ele usou o exemplo ao debater debater com os deputados a questão da imposição de uma idade mínima de 65 anos (homens) e 62 (mulheres).
A idade mínima não será o principal obstáculo a ser superado pelos trabalhadores pobres e miseráveis para poderem se aposentar. E o ministro sabe disso.
Abaixo, cinco pontos da Reforma da Previdência que afetam diretamente os mais vulneráveis:
1) O governo propôs que o tempo mínimo de contribuição passe de 15 a 20 anos, ou seja, de 180 para 240 meses. Sem isso, mesmo tendo atingido a idade mínima, a pessoa não se aposenta. Não seria um grande problema se o país não contasse com altas taxas de informalidade.
De acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), considerando-se a aposentadoria por idade, 50% das mulheres que acessaram essa forma de benefício conseguiram comprovar apenas 16 anos de contribuição. Do total de mulheres ocupadas, quase metade (47%) não possuía registro em carteira, dificultando a contribuição previdenciária.
O Dieese cita que em 2014, ou seja, antes do pior da crise, a média de contribuição foi de 9,1 meses a cada 12 devido à rotatividade do mercado de trabalho e à informalidade. Para cumprir 15 anos, uma pessoa precisaria, na prática, de 19,8 anos. Se forem 20 anos de contribuição, esse número subiria para 26,4 anos. Os cálculos são médias, mas servem para provar um ponto: se é difícil chegar aos 15 anos, imagina aos 20 então.
2) Quem se aposentar por idade, tendo contribuído 20 anos, receberá uma aposentadoria no valor de 60% da média salarial e não mais 90%, como é hoje para quem perfaz duas décadas.
3) A Reforma da Previdência quer que a pensão paga a viúvas e órfãos de aposentados seja de 60% do valor do benefício, acrescida de 10% para cada dependente adicional até 100%. E, pior: abre-se a porteira para receber pensões de menos de um salário mínimo. Hoje, o valor é integral. Ou seja, se um “conjê” (hehehe) que recebia um salário mínimo de aposentadoria morre, não há filhos ou eles já são maiores de 21 anos, o viúvo ou viúva receberia R$ 598,80.
4) O governo propôs que a idade mínima para que idosos em condição de miserabilidade (menos de R$ 249,50 de renda familiar mensal per capita) possam receber o salário mínimo mensal do Benefício de Prestação Continuada (BPC) passe de 65 para 70 anos. Em contrapartida, quer desembolsar uma fração desse total – R$ 400,00 – dos 60 aos 69 anos. Vale lembrar que é mais fácil conseguir um bico para complementar a renda aos 60 aos 65 do que dos 65 aos 69 – sem contar que a demanda por recursos para custos de saúde e emergências aumenta exponencialmente nessa idade. Os deputados prometeram derrubar esse ponto e o próprio Guedes já se mostra resignado que seu “bode na sala” vá embora.
5) Quanto às aposentadorias no campo, a Reforma da Previdência demanda uma contribuição anual mínima de R$ 600,00 por família durante 20 anos, ao invés de apenas comprovar o trabalho no campo por 15 anos, como é hoje. A proposta ignora que o produtor, às vezes, termina o ano sem renda líquida, por fatores climáticos ou de preço no mercado, dependendo do Bolsa Família. Essa parte também vai ser defenestrada, principalmente pela chiadeira de políticos do Nordeste.
Mas ficam ainda os impactos contra os assalariados rurais. Após 2020, por conta de mudanças em lei, eles já teriam que contribuir por 15 anos – vale ler esse número sob a luz da taxa de informalidade no campo, que ultrapassa os 55%. Com a reforma, terão que contribuir por 20 anos. Ou seja, vai ter gente no campo que cairá invariavelmente no colo do BPC, a supracitada assistência a idosos muito pobres. Essa é uma das razões pela qual o governo quer mover a idade de acesso do benefício de 65 para 70 anos, porque sabem que outras mudanças na reforma farão chover gente nessa fila.
Há outros pontos, mas esses já bastam para mostrar que a discussão é mais completa do que a retórica quer fazer crer. A Reforma da Previdência traz propostas importantes, como a já citada cobrança de contribuição previdenciária de forma progressiva, que aumenta com o salário. Mas é bom que se saiba que as “maldades” com os pobres, que deveriam ser prioridade de proteção em momentos de crise, não se resumem às mudanças no BPC e na aposentadoria de trabalhadores rurais.
Um dos pontos mais discutidos nesta tarde foi a conversão do regime de repartição (em que os da ativa contribuem para os aposentados) para o de capitalização (em que cada um faz seu próprio pé de meia), sonho de consumo de Guedes. Para alguns dos deputados da oposição presentes, ele subverte a Constituição Federal de 1988.
Entre os objetivos fundamentais da República, previstos em seu artigo 3o, está o desenvolvimento nacional, mas também a erradicação da pobreza, a redução das desigualdades sociais e regionais, a promoção do bem de todos e a construção de uma sociedade livre, mas também justa e solidária. A proposta de uma capitalização sem contribuição patronal , sendo carregada apenas com o que vem do trabalhador, é um exemplo de subversão a isso.
A população espera debates abertos e francos de seu governo sobre a Previdência, para explicar o tamanho do ajuste fiscal, apresentar os cálculos detalhados disso, os dados sobre a projeção do envelhecimento da sociedade e analisar todas as fontes possíveis de financiamento das aposentadorias e da seguridade social.
Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e o desrespeito aos direitos humanos no Brasil. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão.