Chegou a hora de retomarmos a reforma agrária

A Colômbia é um dos países com a maior desigualdade de posse de terras do mundo. Novo governo tem o mandato popular para fazer frente a um dever historicamente postergado: a reforma agrária.

Pablo A. Durán Chaparro, Gómez-Delgado e Cote R.

Fonte: Jacobin Brasil
Tradução: Sebastián Granda Henao
Data original da publicação: 14/02/2023

O problema da terra na Colômbia põe em evidência a oposição entre as iniciativas institucionais de reforma e as apostas de mudança agrária desde o campo popular, o qual se estende ao longo do século XX. Primeiramente, a lei 200 de 1936, promulgada durante o governo de Alfonso López Pumarejo (1934-1938) entregou parcialmente terras a pequenos proprietários através de créditos, contudo, enfatizando principalmente a exploração da terra por fazendeiros, em lugar de colonos. Essa política não alterou o que o economista socialista colombiano Antonio Garcia Nossa chamou de “ideologia senhorial”, que caracterizou a estrutura agrária do século XIX, na qual o campesinato não possuía representação política nem acesso aos bens associados à posse da terra.

Os conflitos agrários dos anos 1930 ocorreram onde a situação dos campesinos e colonos não melhorou. Um marco dessa organização popular foram as ligas e sindicatos agrários e as ocupações de terras no Caribe, algumas lideradas pelo anarco-socialista italiano Vicente Ádamo (1876-s.d.) e a líder campesina Juana Julia Guzmán (1892-1975), “La robatierra”. Adicionalmente, os limites da ideologia senhorial às modificações da estrutura agrária, somados à falta de representação política campesina, solidificaram outros processos organizativos de auto-defesas campesinas, como foram as guerrilhas liberais, antecessoras do movimento guerrilheiro dos anos 1960.

A Colômbia uniu-se à onda reformista latino-americana em 1961, tendo por antecedentes a revolução boliviana (1952) e a cubana (1959). Especialmente como reação contra a última, o governo dos Estados Unidos deu início ao processo do reformismo agrário com a Aliança para o Progresso. Colômbia foi um dos países que recebeu mais financiamento. Nesse contexto, a Lei 135 da Reforma Social Agrária do governo de Alberto Lleras Camargo (1958-1962) continuou – pelo menos no papel – as agendas gerais da Lei 200 de 1936 e propôs modificar a estrutura da posse de terras pela extinção dos prédios improdutivos. Segundo Magdalena León e Carmen Diana Deere, essa política beneficiou somente a uma pessoa por família, concentrando-se no homem cabeça de família. Essa segunda tentativa de reforma foi limitada pelo veto das elites rurais à aposta de redistribuição. Esse veto foi expressado no Pacto de Chicoral, um acordo promovido pelo governo conservador de Misael Pastrana (1979-1974) entre os partidos tradicionais e as agremiações econômicas, que dificultaram a expropriação de terras.

No final dos anos 1960, o presidente Carlos Lleras Restrepo (1966-1970) promoveu a criação da Associação Nacional de Usuários Campesinos (ANUC), buscando criar uma base popular de dimensões nacionais que respaldasse o governo. Essa organização transcendeu as intenções paternalistas e brindou uma nova linguagem de protesto. Pela ineficiência da reforma e inspirados na luta dos anos 1930, um setor da ANUC trabalhou nos anos 1970 com sociólogos como Orlando Fals Borda em projetos de pesquisa-ação e de reforma agrária de fato que resultaram em várias ocupações de terra no litoral do Caribe colombiano.

Finalmente, a terceira tentativa de institucionalização ocorreu nos anos 1990, durante o governo de César Gaviria (1990-1994). A Lei 160 de 1994 – promovida pelo atual ministro da fazenda de Petro – foi uma reforma agrária de mercado que, seguindo as recomendações do Banco Mundial, priorizou a promoção de um mercado “livre” de compra e venda de terras. No final dos anos 1980 e durante os 1990 houve mobilizações dos campesinos cocaleiros, que exigiam a titulação de prédios, o acesso a créditos e a assistência técnica, assim como a delimitação de uma Zona de Reserva Campesina. A figura da Zona de Reserva Campesina foi acolhida pela mencionada lei em um dos seus incisos e é uma das ferramentas que tem o campesinato para permanecer no território, enfrentar a grilagem e acumulação de terras e conservar os ecossistemas que habitam.

No entanto, nenhuma dessas tentativas conseguiu mudar a estrutura agrária do páis. Distintas organizações internacionais e entidades nacionais estimam que o índice Gini de terras na Colômbia localiza-se entre o 0,8 e 0,9. Em outras palavras, é uma enorme desigualdade. Embora recentemente não tenham existidos esforços para concretizar a reforma, as lutas populares seguem insistindo em lograr uma redistribuição de terra produtiva e melhorar as condições de vida dos campesinos, indígenas e afrocolombianos. Isso fica evidente pelo menos no Mandato Agrário de 2003, nas greves agrárias e cívicas que tem acontecido desde 2013 e as distintas mingas ou convergências populares das distintas regiões do país, como a Cúpula Agrária, Campesina, Étnica e Popular.

Algumas dessas demandas também se vêem refletidas no Acordo de Paz entre o governo e as FARC-EP, cujo primeiro ponto é a reforma rural integral – também na plataforma política que respaldou a vitória de Petro e Márquez. O que resta ver é como o mandato popular pela implementação da reforma agrária consegue se solidificar neste novo governo, que vem pela vontade política de conduzi-la, e que além disso conta com a participação de muitos atores sociais e populares que historicamente têm lutado pela terra.

Apostas e desafios

O programa de governo de Petro e Márquez mostra um perfil de mudança evidente da política agrária através da “distribuição equitativa da terra”. Essa mudança irá assumir contornos quando for estruturado o Plano Nacional de Desenvolvimento para o próximo quadriênio, do qual tem se falado que será o resultado dos diálogos regionais que combinem o saber técnico com o saber popular. Por enquanto, o informe técnico de transição para o setor agrícola dá certas luzes sobre as políticas e ações que serão priorizadas.

No final das contas, o que está em jogo é se este novo governo — que possui uma maior representação das lutas populares e agrárias não institucionais – conseguirá evitar os vetos da elite latifundiária rural e da classe política tradicional, para finalmente implementar uma reforma agrária. Essa reforma deverá ser verdadeiramente redistributiva, e isso só é alcançado, como aponta Saturnino Borras, se se consegue afetar a estrutura agrária, particularmente enquanto à estrutura fundiária, de posse da terra, e o controle sobre os recursos dela[3].

Segundo a Unidade de Planejamento Rural Agropecuário (UPRA) mais de 11 milhões de hectares são aptos para a agricultura na Colômbia; no entanto, somente 35% são usadas destas são usadas para essas atividades. Em contraste, 38 milhões de hectares são usados para atividades de pastagem, embora só 8 tenham vocação pecuária. Uma das principais apostas do novo governo é passar do uso inadequado do solo a um uso acorde com a vocação produtiva das terras. Isso implica, segundo o programa, superar a pecuária extensiva e avançar na produção agroalimentar e a implementação de sistemas agrosilvopastoris. Uma das medidas-chave que a equipe de transição sugere para sincronizar a produção de alimentos com o uso eficiente do solo é fortalecer as agências responsáveis de capturar informação sobre a vocação do solo e assim articulá-la ao registro fundiário rural.

A nova ministra de agricultura, Cecilia López, disse que as terras da reforma agrária do governo eleito não serão expropriadas, mas que serão compradas dos atuais proprietários e que os recursos para isso teriam origem, em parte parte, dos novos impostos ao latifúndio improdutivo. Aqui é fundamental definir os critérios relativos à “produtividade”. Além disso, deve-se levar em consideração o desafio administrativo que representa a compra de terras, quando o país enfrenta seu maior déficit fiscalAinda que não haja certeza sobre o processo de compra, a equipe de transição identifica claramente os elementos que acompanharão o processo: estabelecer mecanismos que impeçam a especulação, garantir o acesso das mulheres às terras, priorizar a compra de terras aptas para a produção agroalimentar e em aquelas faixas territoriais localizadas em áreas próximas de centros urbanos.

Outra ferramenta para o acesso às terras, contemplada no Acordo de Paz, é o Fundo de Terras, no que aspira-se ter 3 milhões de hectares. No entanto, um informe multi-partidário de acompanhamento à implementação do processo de paz aponta que, do total de hectares que entraram no Fundo, só 25,3% foi distribuído e somente 2,5% foi entregue a camponeses sem terra ou com terra insuficiente. Além disso, deve-se ter em conta que a principal fonte de terras para o Fundo são baldios, e muitos deles se encontram indevidamente ocupados e poderiam, inclusive, ser disputados pela agroindústria anteriormente beneficiada pela institucionalidade do Estado colombiano. 

Somado ao desafio do acesso à terra está o da informalidade da propriedade. Não é um desafio menor: o ponto de partida é a formalização pendente dos 7 milhões de hectares identificados pelo Acordo de Paz. O grupo de transição também ressalta as tensões e os conflitos relativos à situação em pelo menos três níveis: entre cidadãos, entre comunidades e o Estado, e entre cidadãos-comunidades-Estado e atores armados. O anterior sem deixar de lado que a titulação deve estar acompanhada de uma profunda modificação do acesso a recursos fundamentais, como a água, além de uma maior infraestrutura e garantia de bens públicos. Se isso não for feito, poderia resultar em uma maior concentração de terras, devido a formalização de terras que estavam fora do mercado, implicando na disponibilidade para compra e venda.

Os desafios da distribuição e formalização das terras são ainda maiores em um contexto de instabilidade social e controle territorial por parte de distintos grupos armados em várias zonas do país, como na floresta amazônica e na selva do Chocó. Nessas zonas requer-se a materialização de medidas que impeçam novos mecanismos de desapropriação violenta por parte desses atores e de seus latifundiários aliados. Essas dinâmicas de desapropriação estão ligadas a profundos processos de desflorestação (somente durante 2021 foram desflorestados mais de 174.000 hectares). O novo governo também deverá, então, considerar estratégias concretas para evitar a destruição e conversão em savanas das florestas, que somam aproximadamente 60 milhões de hectares – mais do que a metade do país. Nesses esforços, os indígenas, afro-descendentes e camponeses que habitam neles deverão ser reconhecidos como atores fundamentais da sua conservação e devem contar com o respaldo estatal sem titubear na hora de consolidar alternativas produtivas que melhorem suas condições de vida. 

Em suma, os desafios mencionados se desenvolvem em três níveis justapostos: um primeiro nível institucional, no qual será necessário harmonizar os instrumentos políticos que são requeridos para as mudanças radicais, mas possíveis. Um segundo nível é o estrutural, no qual o novo cenário político de maioria progressista no Congresso e em outras frações do Estado poderia minimizar o impacto da agenda, até hoje dominante, dos grandes proprietários que se oporão à reforma. E um terceiro nível territorial, no qual uma agenda de segurança integral e paz total deve ir da mão de medidas de justiça ambiental e social.

Em direção de um horizonte reformista

O novo governo poderá ser um catalisador das forças da mudança agrária. Isso vai depender dos acordos e das disputas entre os distintos atores que estão definindo hoje o caminho em direção do reformismo agrário. O futuro desse reformismo depende do fato que Gustavo Petro e Francia Márquez foram eleitos, em parte, por atores e organizações que já têm liderado as lutas pela terra, mas – ao mesmo tempo – eles governarão a partir de acordos políticos com quem anteriormente era obstáculo para esse desejo de reforma. Solon Barraclough concorda com Antônio García Nossa que a reforma agrária não é uma política simplesmente da mudança rural, senão que implica um processo estratégico que exige tanto a atividade estatal como a mobilização conflitiva de outras forças sociais.

Nesse mesmo sentido, não devemos acreditar que as consequências e o alcance da reforma dependerão exclusivamente da sua implementação institucional “de cima”, ou da vontade política do novo governo progressista. Como destaca Jonathan Fox, se as reformas de cima contam com uma persistente mobilização social de baixo, podem permitir aos camponeses pobres sucessivas e permanentes vitórias.

Portanto, o resultado dessa nova tentativa reformista não se deve reduzir, como tem sido feito no passado, ao simples binômio fracasso-sucesso. É fundamental perguntamo-nos o que entendemos por “reforma agrária”, não necessariamente para compartilhar o mesmo horizontes de expectativas, mas para orientar – e comemorar – essas mudanças agrárias que deixarão de ser furtivas às forças populares que hoje tem um pé na institucionalidade e que exigirão desde as ruas, veredas e estradas para que seja cumprido o seu mandato. 

Pablo A. Durán Chaparro é pesquisador independente e promotor das Zonas de Reserva Camponesa na Colômbia. Ela tem mestrado em estudos de desenvolvimento pelo International Institute for Social Studies da Erasmus University of Rotterdam, na Holanda.

Gómez-Delgado é doutorando em sociologia e estudos históricos na New School for Social Research

Cote R. é um cientista político colombiano, pesquisador em políticas climáticas e setor de uso da terra. Possui mestrado em Gestão Pública pela Universidade de Potsdam na Alemanha e mestrado em Ciência Política pela Universidad de Los Andes na Colômbia.

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