Taxar as grandes fortunas, discussão do momento no Brasil, é uma recomendação do economista francês Thomas Piketty, autor do best-seller O Capital no Século XXI, que trata da concentração de renda em vários países. Ao professor Paulo Feldmann, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP), chamou a atenção o conhecimento que Piketty demonstrou ter sobre a realidade brasileira, em visita recente ao país. Por vários motivos, o francês vê como melhor estratégia para os países a taxação de fortunas – “que é exatamente o que não fazemos no Brasil”, escreveu Feldmann em artigo no jornal Valor Econômico publicado há pouco mais de um mês.
Outra ideia que poderia ser aplicada por aqui é de aumentar a taxação das heranças. O chamado Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), tributo estadual, é de 4%. “Um décimo do valor da alíquota do Reino Unido, onde o imposto sobre herança é um dos tributos mais importantes”, observa Feldmann. No Brasil, os governos estaduais arrecadaram R$ 4,5 bilhões com o ITCMD em 2013. Seriam R$ 45 bilhões com uma alíquota de 40%.
Soma-se a isso um possível imposto, também de 4%, cobrado das famílias com patrimônio pessoal superior a US$ 1 milhão, em torno de 225 mil no Brasil, de acordo com relatório do banco Credit Suisse citado pelo professor, poderiam ser arrecadados mais R$ 36 bilhões. O valor se obtém de uma estimativa conservadora de patrimônio médio em torno de US$ 1,5 milhão por família, o que representaria um total de R$ 900 bilhões.
Assim, os dois impostos poderiam totalizar R$ 81 bilhões, no tamanho do “ajuste” visado pelo governo. Seria uma forma mais justa de aumentar a arrecadação, poupando a classe média e os setores mais pobres da sociedade. Em vez da receita de Levy, o economista da USP propõe o modelo Piketty. “O que estou dizendo no artigo é que chegou a hora de mexer com os mais ricos”, afirma, em entrevista.
Por que o debate sobre a taxação sobre grandes fortunas não avança?
Não acha que haja tanta dificuldade, desde que o governo resolva levar isso como uma questão prioritária. Levando ao Congresso e pedindo principalmente à bancada do PT, acho que a chance de aprovar seria muito grande. O que precisa é o governo arregaçar as mangas e levar essa discussão adiante.
A discussão tem se limitado a aumentar impostos e cortar gastos. Falta ousadia, criatividade, à equipe econômica?
Este governo, lamentavelmente, está optando por um caminho muito neoliberal e não está colocando as medidas que sempre foram defendidas pelo PT e pela esquerda em geral, no Brasil e no mundo. Isso (imposto sobre fortunas) já aconteceu em outros países. Esse governo está caminhando para uma política de agradar as camadas mais ricas e os donos do capital. O Brasil é o único país que está aumentando taxa de juros. Por que o Joaquim Levy virou ministro da Fazenda? Porque o governo quer agradar o grande capital, que não quer mudanças como essa. A política econômica que está aí é muito ortodoxa, ultrapassada.
Qual seria o possível impacto de uma medida como essa?
Seria muito mais lógico taxar as grandes fortunas. As duas juntas (incluindo uma tributação sobre heranças) davam uma arrecadação a mais de R$ 80 bilhões, que é mais do que o Joaquim Levy está precisando. Essa mudança não criaria um problema sério na economia, não faria com que a classe média sofresse novamente e não mexeria nas políticas sociais. A Dilma montou essa ministério para ter maioria no Congresso. Aparentemente não tem, ou não perderia a votação para a presidência da Câmara. Mas, na minha opinião, não haveria resistência tão grande, desde que fosse claramente colocado aos deputados e senadores.
A distribuição de renda melhorou nos últimos anos, mas os chamados rentistas continuam ganhando mais que os assalariados. Como isso aconteceu?
O Lula foi muito hábil, muito inteligente, quando criou os programas sociais, principalmente o Bolsa Família. Ele pegou uma parcela que tinha no orçamento federal e criou o Bolsa Família. Não houve um imposto novo sobre os ricos. Foi um processo de distribuição de renda bem atípico, sem ter onerado os mais ricos. Não foi distribuição de renda, o governo usou os seus próprios recursos. O que eu digo no artigo é que chegou a hora de mexer com os mais ricos. Não são muitos, são 225 mil famílias apenas. Acho que não vão ter condições de se opor politicamente a isso. A classe média, que é a que mais se move, vai às ruas, vai ficar contente.
Com economia estagnada e o atual processo de ajustes, existe o risco de os ganhos sociais obtidos recentemente serem anulados?
Com certeza eles serão anulados. Quem está dirigindo a economia hoje não dá importância para isso. Já houve alguns cortes importantes, que sinalizam cortes nos benefícios sociais. A linha que ele (Levy) sempre defendeu não é defender os direitos dos mais pobres, é que o ajuste seja feito e as contas sejam adequadas. A gente não está vendo nenhum sinal de que haja uma preocupação com a questão social. Se houvesse, a primeira coisa que tinha mudado era a política de juros. A gente paga de juros, todo anos, 5% do PIB brasileiro. No ano passado, foram R$ 250 bilhões com juros. É uma política absurda, que nenhum país está usando. É impressionante o poder que os bancos têm.
No início do primeiro governo Dilma, houve uma aparente tentativa de comprar essa briga, iniciando uma política de redução de juros que levou a taxa a 7,25%, no seu menor nível histórico. Mas isso parou, e de lá para cá, ganhamos 5,5 pontos percentuais e a taxa agora está em 12,75%. O que mudou?
Acho que a resposta está no site www.transparencia.gov.br. Lá está quanto foi doado para as campanhas eleitorais. Entre os dez maiores doadores, estão os grandes bancos privados. Não tenho dúvida de que essa é a principal explicação. Sem contar que a rentabilidade dos bancos é uma das mais altas do mundo. O governo trabalha para o bem do setor financeiro. Tudo é feito para beneficiar os bancos. Na época (da queda dos juros), a revista The Economist (espécie de porta-voz do sistema financeiro) fez matérias muito ruins sobre o ministro Mantega.
Ao apresentar a Medida Provisória 669, o ministro Joaquim Levy fez críticas duras sobre a política anterior de desoneração. Foi injusto?
Na minha opinião, a política de desoneração foi um erro. Os setores beneficiados não tiveram nenhum avanço, pelo contrário. Agora, eu acho que o ministro Joaquim Levy deve estar muito seguro da situação dele, confortável, para criticar uma medida do próprio governo Dilma e continuar ministro. Numa situação normal, ele seria demitido. Se você reparar, o governo está totalmente perdido, criticado de maneira impressionante de todos os lados. Acho que isso tem muito a ver com o fato de a Dilma ter engolido essa declaração do Levy.
Já disseram que o imposto sobre grandes fortunas afugentaria patrimônio do nosso país. O senhor acredita nisso, ou é um pouco de terror?
Isso é terror, claro. Mesmo com esse tipo de coisa, o Brasil vai continuar sendo mais interessante para quem tem capital. Sempre vai ter quem queira colocar dinheiro nas Bahamas, Bermudas, ou na Suíça. A Receita Federal é uma das poucas coisas que funcionam no Brasil. Se esse pessoal levar dinheiro para fora, vai ter de declarar. O que estou propondo não é nada exagerado, é aumentar um pouco a alíquota.
O governo não sancionou a correção da tabela de Imposto de Renda acima da inflação. Deveríamos ter mais alíquotas?
Nos Estados Unidos, existe um alíquota de 40% para quem é muito rico. Na França, é 50%. Em países da Escandinávia, mais de 50%. Acho que quem está errado é o Brasil. Poderíamos ter uma alíquota de 35%, de 45%. Com isso, aumentaria muito a arrecadação. O patrimônio das famílias ricas é de R$ 900 bilhões. Um imposto de 4% daria R$ 36 bilhões a mais. Nem estou propondo mudar a alíquota (do IR), que também seria muito apropriado. Há diversas formas de tirar um pouco das classes mais ricas.
O ambiente político que o país vive não é um obstáculo a essa discussão?
O ambiente está tão ruim que começa a se falar de uma aliança entre PT e PSDB. Mas nessa hora é que o governo Dilma deveria lançar bandeiras que sempre defendeu. Vamos pelo menos defender bandeiras justas.
Fonte: Rede Brasil Atual
Entrevistador: Vitor Nuzzi
Data original da publicação: 10/03/2015