Leonardo Sakamoto
Fonte: UOL
Data original da publicação: 16/11/2018
Do caso da fazenda Vale do Rio Cristalino, no Sul do Pará, que pertencia à Volkswagen, durante a ditadura militar, até os das grandes marcas de vestuário e da construção civil hoje, respeitáveis corporações já foram envolvidas em denúncias relacionadas ao trabalho análogo ao de escravo. Mais de 53 mil pessoas foram libertadas, desde 1995, em operações de fiscalização do governo federal e um número maior do que isso permaneceu nessas condições porque não conseguiu denunciar sua situação.
Alguns dos que agora erguem a voz contra a “escravidão” de médicos cubanos nunca abriram a boca para dar um pio sequer de solidariedade nesses casos supracitados. E sabe por quê? Porque não dão e nunca deram a mínima se um trabalhador escravizado vive ou morre, nos campos ou nas cidades. Querem apenas ganhar sua guerra ideológica e política particular usando as ferramentas que têm em mãos, dobrando as definições legais sobre esse crime se necessário.
Uma investigação conduzida pela Procuradoria Regional do Trabalho da 10a Região considerou que o modelo de remuneração do acordo entre Brasil e Cuba para o Mais Médicos representa discriminação de trabalhadores cubanos, pois nossa lei garante isonomia salarial e direitos trabalhistas – o que venho defendendo desde 2013. Contudo, a mesma investigação do Ministério Público do Trabalho afirmou também que, nem de longe, a situação assemelha-se a trabalho escravo. O problema é que, nesta era de pós-verdade, as opiniões calcadas em emoções são mais importantes do que fatos apurados por órgãos competentes.
Ou seja, se for para atacar Cuba e, com isso, constranger o programa Mais Médicos vale a pena batizar qualquer coisa de trabalho escravo, esgarçando seu conceito legal. Criam-se os maiores malabarismos a fim de explicar que aquilo pode se enquadrar nessa forma de exploração – que, de acordo com o artigo 149 do Código Penal, caracteriza-se por trabalho forçado, servidão por dívida, condições de degradantes de trabalho ou jornada exaustiva.
Façamos uma experiência: vamos ampliar o conceito e considerar esses médicos como escravos. Mas com o compromisso de que, assim que o último cubano for “libertado”, passaremos a resgatar todos os trabalhadores brasileiros em fazendas, indústrias, comércio, serviços, vítimas de irregularidades trabalhistas, que passariam a ser “escravos” também devido a essa forçação de barra. Ou seja, se fossemos por esse devaneio, o problema sairia da casa de dezenas de milhares para cerca de 17 milhões de pessoas – 8% do país – em estimativas conservadoras de juízes e procuradores ouvidos por este blog.
Uma luta tem sido travada junto aos Três Poderes, nos últimos anos, envolvendo políticos, organizações sociais, juízes, procuradores, defensores públicos, empresários, servidores públicos, entre outros, para evitar que a definição legal de escravidão contemporânea seja desidratada. Em outubro do ano passado, por exemplo, o governo Michel Temer publicou uma portaria do Ministério do Trabalho mudando as regras da fiscalização e tornando irrelevantes as condições em que os trabalhadores se encontram para a caracterização de escravidão. A partir dela, escravo seria apenas quem estivesse preso sob vigilância armada. Após intensa pressão da sociedade e da imprensa, as mudanças foram suspensas pelo Supremo Tribunal Federal. E, com isso, o governo voltou atrás.
Mas o oposto também tem sido feito: há uma luta para evitar que tudo seja chamado de trabalho escravo. Porque se tudo é escravo, nada é de fato. Durante a campanha, Jair Bolsonaro criticou o enfrentamento à escravidão contemporênea, citando dados equivocados sobre a fiscalização. Falou do caso de uma mulher grávida que teria sido considerada como submetida à escravidão porque foi exposta à aplicação de agrotóxico. O que não procede. De acordo com a área de fiscalização do Ministério do Trabalho, uma irregularidade como essa não configura o crime. Esse tipo de declaração do presidente eleito, ao tentar ampliar o escopo do que é trabalho escravo para ajudar sua argumentação, é um desserviço ao setor empresarial brasileiro por levar à insegurança jurídica.
Quando o Mais Médicos foi anunciado há cinco anos, afirmei que uma coisa é a política pública em si, de levar médicos estrangeiros ao interior do Brasil em áreas carentes, que – a meu ver – está correta. Outra, muito ruim, foi a ideia equivocada de não pagar a totalidade do salário diretamente ao trabalhador.
Como já expliquei aqui, o acordo com a instituição cubana responsável pelos profissionais, firmado via Organização Panamericana de Saúde (Opas), prevê que um “imposto” seja cobrado dos médicos que estiverem em missão no Brasil. O valor líquido repassado é de R$ 3 mil, enquanto o governo cubano fica com R$ 8,8 mil, pagos mensalmente – menos uma taxa operacional que fica com a Opas. Além desse valor, os médicos também recebem auxílio-moradia e auxílio-alimentação das prefeituras.
De um lado, defensores desse modelo apontam que ele é correto por ser o pagamento por uma missão médica contratada de outro país e que o valor da dedução não é tão maior que os impostos sobre renda cobrados em alguns países. De outro, críticos afirmam que o ideal seria que os médicos recebessem o mesmo que profissionais de outras nacionalidades e, caso necessário, o Brasil pagaria, à parte, pelo serviço da empresa cubana de saúde.
Como já dito acima, a Procuradoria Regional do Trabalho da 10a Região considerou que há discriminação de trabalhadores cubanos, pois nossa lei garante isonomia salarial. Mas que isso, nem de longe, assemelha-se a trabalho escravo.
Entrevistei dois médicos cubanos que faziam parte do programa e atuavam em um município na Grande São Paulo, como expliquei aqui no texto de ontem. Bem quistos pelos moradores no posto de saúde, rechaçaram as denúncias de que estariam submetidos a esse tipo de exploração. “Escravos não têm esses privilégios”, afirmou um deles, Mario. Ele disse que como sua família tem à disposição um sistema educacional e de saúde gratuitos em Cuba, que funcionam, e que fez faculdade de medicina, residência e mestrado sem ter que pagar pelos cursos, livros ou materiais, acha justo colaborar para que esse sistema continue funcionando.
Nem todos acham justo, contudo. E, por conta disso, o mais correto à luz da nossa legislação é a isonomia salarial com os brasileiros e pessoas de outras nacionalidades.
Alguém duvida que, quando todo esse furdúnculo desaparecer, se auditores fiscais passarem a libertar trabalhadores considerando como escravidão toda e qualquer irregularidade trabalhista do nível de gravidade da verificada pelo MPT junto aos médicos cubanos, iremos ouvir reclamações daqueles que chamarão os auditores fiscais de “comunistas”?
Seria ótimo que esses que agora se preocupam com escravização de pessoas cobrassem do presidente eleito a garantia de que a área de fiscalização do trabalho seja protegida de influência política e econômica, de preferência em um Ministério do Trabalho que não seja rebaixado, desmembrado ou enfraquecido, e com recursos para que possa verificar toda e qualquer denúncia de escravidão contemporânea que chegue até ele. Ou exigissem que políticos parem de receber doações eleitorais de pessoas físicas que se beneficiaram desse tipo de crime. Quando defendi meu doutorado sobre trabalho escravo contemporâneo, em 2007, fiz um extenso levantamento envolvendo várias eleições e doadores, o que apontava uma esbórnia. Os cruzamentos da “lista suja” do trabalho escravo com os doadores de campanha mostram que ela continua ainda hoje.
Em tempo: há quem fale da importância da defesa da democracia ao reclamar do relacionamento com o autoritarismo cubano, mas não se importa nem um pouco ao fazer um bom negócio com o autoritarismo chinês.
Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e o desrespeito aos direitos humanos no Brasil. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão.