Há cem anos, as empregadas domésticas de Lisboa revoltaram-se contra a imposição de uma caderneta cadastral e formaram o seu primeiro sindicato.
Jorge Costa
Fonte: Esquerda
Data original da publicação: 23/11/2021
Passada a primeira década de República, os desejos de justiça da população trabalhadora estavam largamente frustrados, mas a convulsão social mantinha-se e parecia capaz de chegar até aos recônditos confins da ordem doméstica. A crise das velhas instituições, a começar pela clerical, o avanço na alfabetização e a intensa disseminação das “ideias avançadas” levava as próprias empregadas domésticas, as “criadas de servir”, ao desassossego. Apesar de oriundas sobretudo do meio rural e de serem mantidas em relativa clausura pela sua condição, criadas havia que melindravam patrões (e patroas) ao mostrarem-se cada vez menos suas: “Nestes últimos tempos, por uma criada fiel, dedicada, obediente, calada, cumpridora dos seus deveres, havia 99 respondonas, namoradeiras, caluniadoras”, estampava o Jornal de Notícias em 1921, de fonte certamente segura.
Nesse ano, o tenente-aviador Lelo Portela, governador civil de Lisboa, impõe às empregadas domésticas a obtenção de uma licença junto da polícia, que ateste que não praticaram ilícitos nos três anos anteriores e certifique a sua vacinação e não-doença. A proibição de manter contratadas mulheres que não apresentem a caderneta atualizada é simplesmente ignorada pela grande maioria das empregadas domésticas e seus patrões. Das 35 mil criadas que trabalham no distrito, apenas 1.700 comparecem para obter o documento. Em maio, um manifesto público denuncia este cadastro, que trata as trabalhadoras “como gatunos”. Mas o grande vexame é a semelhança ao regime da prostituição: “em Portugal, só há uma classe de gente obrigada a ter livrete. É preciso que outra não aceite”.
Face ao fracasso do novo regulamento, o governador civil anuncia rigorosa vigilância e brigadas especiais para o impor. Prevendo agitação, procura dividir o inimigo e isenta os sindicalizados (cozinheiros e empregados de mesa, homens na sua larga maioria). As empregadas domésticas não têm associação de classe. Ainda.
Nasce a associação de classe das empregadas domésticas
Quando Efigénia Duarte, Celestina de Sousa e Emília Augusta formam a comissão pró-Associação de Classe, declaram à imprensa: “Nós, classe humilde, também temos a nossa sensibilidade, o sentimento da dignidade ofendida. Por isso nos humilha o facto de nos vermos tratadas como objetos, como coisas. As serviçais preferem retirar para as suas casas na província e deixar Lisboa entregue aos seus próprios recursos no que refere a criadas de servir”.
Na assembleia de 20 de junho, reúnem-se trezentas trabalhadoras para aprovar os estatutos da nova associação de classe, com o apoio da Confederação Geral do Trabalho. A regra mais importante é a que impõe sanção de expulsão às trabalhadoras que vão levantar a licença ao governo civil. Da tribuna, diz-se o nome de Emília Oliveira, cujo caso foi argumento para a necessidade de licença. Criada de servir, Emília fora levada aos calabouços da polícia depois de identificada numa “casa de má reputação”. Vinha da província, muito nova, trazida por uma “inculcadeira”, que vendia a promessa de trabalho na capital. As futuras sindicalistas denunciam a desgraça de Emília como um caso de miséria e recusam que sirva para generalizar o estigma a toda uma classe que começa a reconhecer-se como tal.
Os objetivos da nova associação incluíam a instalação, na tradição sindicalista revolucionária, de uma “bolsa de trabalho” para acompanhar a oferta de emprego e controlar as condições laborais (que, no caso das empregadas domésticas, incluíam as de habitação); a abertura de uma escola de “aperfeiçoamento profissional”; a realização de “conferências educativas” como aquela que viria a proferir, pouco depois, a sufragista e livre-pensadora Maria Clara Correia Alves, então vice-presidente do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, presidido por Adelaide Cabete.
De acordo com a imprensa, em poucas semanas a associação ultrapassa as 3.500 inscritas e funda delegações nos concelhos à volta de Lisboa. Em agosto, é recusada autorização para nova assembleia e a polícia irrompe, na noite de 17 para 18, na reunião clandestina da associação de classe. Face à “inutilidade das pacíficas manifestações de protesto” e aos “numerosos protestos, tanto da parte dos nossos companheiros [das outras associações de classe dos serviçais] como até da classe patronal que nos dá o seu apoio”, as associações de classe dos serviçais declaram a greve até à retirada do regulamento.
Lisboa perplexa perante a coragem das mais humildes
“A Praça da Figueira foi pouco concorrida, tendo as grevistas intimado algumas que para lá se dirigiam”, reporta um jornal. Estão encerrados muitos cafés, casas de pasto, restaurantes e hotéis. Noutros, os patrões servem à mesa, ajudados por crianças contratadas à pressa. O dono da Brasileira do Chiado manda os empregados para casa. Pelas três da tarde, o patronato reúne-se no Hotel Metrópole e dá razão às grevistas. Mas isso não basta para demover Lelo Portela. O governador civil manda cercar a sede das associações de classe dos serviçais, onde é detida Virgínia de Lemos, que presidia à reunião. Ao segundo dia de greve, são detidas na esquadra de Arroios as sindicalistas Rita Freire, Lídia, Amélia Cândida, identificada como originária de Valpaços, Zulmira Neves, de Estarreja, e Conceição Silva, de Viana do Castelo. Face à repressão, as associações dos serviçais levantam a greve, deixando isoladas as empregadas domésticas e de hotéis.
Terminada a greve sem vitória, “O Século” vaticina: “a polícia vai ser pouca para subir aos andares à procura da criada”. E foi mesmo. A regra está morta e continuará desobedecida até cair de vez. Para isso, será preciso esperar ainda um par de meses. A 20 de outubro, dia seguinte à revolta que ficou conhecida como “a noite sangrenta”, Lelo Portela abandona o posto e foge para o exílio. Não tardará a regressar, deputado nas listas do Partido Republicano Liberal. O livrete das criadas, esse, cairá no esquecimento.
Jorge Costa é deputado e dirigente do Bloco de Esquerda. Jornalista.