Em suas ideias, defendia desenvolvimento interno, com foco no Nordeste e na Reforma Agrária. Ainda hoje, economista seria visto como revolucionário, por uma elite que enxerga país como dependente e submisso às economias centrais.
José Álvaro de Lima Cardoso
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 17/08/2020
“Poucos de nós temos consciência do caráter profundamente anti-humano do subdesenvolvimento. Quando compreendemos isto, facilmente explicamos por que as massas estão dispostas a tudo fazer para superá-lo”
(Celso Furtado, A pré-revolução brasileira)
Em 26.07.20 comemorou-se 100 anos de nascimento de Celso Furtado, tido como um dos grandes “intérpretes” do Brasil. Durante mais de cinquenta anos, esse paraibano de Pombal se dedicou à difícil (e fascinante) tarefa de entender a economia e a sociedade brasileiras. A obra de Celso Furtado reflete a permanente tentativa de entender o Brasil, no contexto latino-americano, e propor saídas para o subdesenvolvimento crônico, que acomete toda a Região. O essencial da exuberante obra do autor, mesmo tendo sido formulado mais nas décadas de 1950 e 1960, é muito atual. Dentre outras razões, porque os problemas que ele catalogou não foram resolvidos (por exemplo, o Subdesenvolvimento).
O autor misturou fina inteligência e o conhecimento de economia, com evidente sensibilidade social. Sua abordagem, ainda mais para os anos de 1950, era heterodoxa, se opunha aos padrões estabelecidos pelas teorias dominantes. Celso Furtado defendeu em suas obras e palestras, com a necessária frequência, uma ideia fundamental para os dias atuais: os países que se sujeitam a divisão internacional do trabalho, aceitam-na tal como está colocada, estarão condenados ao subdesenvolvimento. Ou seja, não há desenvolvimento social e econômico sem postura soberana. Uma ideia chave, especialmente em dias de descarada capitulação.
A abordagem histórica perpassa as obras de Furtado. Como dizia ele, no “começo eu pensava ser historiador”. Mas o economista lia sobre muitos assuntos como ciência política, antropologia, filosofia, geografia, métodos quantitativos, além de história econômica, é claro. Levava muito a sério a ideia de que para ser um bom economista, tinha que olhar muito além da economia.
A obra de Celso Furtado tem como preocupação central a questão do desenvolvimento e do subdesenvolvimento, incluindo a forma como as economias subdesenvolvidas e periféricas se inserem no sistema mundial. Ao contrário dos economistas da Escola Neoclássica, que destacavam as vantagens relativas da especialização produtiva dos países atrasados (ou subdesenvolvidos), Furtado irá mostrar em seus textos que a natureza das relações entre países centrais e subdesenvolvidos, bem como a própria estrutura social interna dos países periféricos, impedem o desenvolvimento e as mudanças sociais.
Celso Furtado tinha constante preocupação também com o planejamento e com o desenvolvimento regional. Lhe interessava grandemente o desequilíbrio regional do Brasil, tendo defendido praticamente em toda a sua vida profissional, a necessidade de um amplo incentivo para o desenvolvimento nordestino. Por isso participou do Conselho de Desenvolvimento Econômico do Nordeste e, fomentou a criação de um órgão de planejamento regional – a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) em 1959. As formulações de Celso Furtado relacionam-se ao chamado enfoque Estruturalista Latino-Americano, que teve como centro os intelectuais e técnicos reunidos na Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), instituição criada em 1948 pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas.
A Economia Estruturalista é uma abordagem da economia que destaca a importância de levar em conta características tipicamente estruturais ao empreender a análise econômica. Esta escola surgiu basicamente com o trabalho da CEPAL e está associada principalmente ao seu diretor Raúl Prebisch e Celso Furtado. Uma das preocupações centrais das formulações da Cepal era como o Estado poderia contribuir para o sistema de desenvolvimento econômico nas sociedades periféricas. Preocupação que se mostrou muito legítima, pois todo o desenvolvimento brasileiro desde então se deu a partir da coordenação e apoio do Estado.
Ao estudar o subdesenvolvimento do Nordeste, Furtado percebeu que o problema da seca integrava um contexto de atraso, concentração de renda, baixa produtividade, e dominação econômica e política por parte das oligarquias. Ele irá mudar, juntamente com outros grandes conhecedores da Região, a perspectiva sobre os problemas do Nordeste. Tanto a Sudene quanto o Banco do Nordeste representavam a nacionalização da questão nordestina, relacionando-a à integração regional. A Sudene e o planejamento estatal tornaram-se recursos centrais para o desenvolvimento nordestino.
Um dos pontos fundamentais dessa proposta de reformulação trazida pela Sudene foi o combate ao que se convencionou chamar de indústria da seca, ou seja, o uso dos recursos federais em proveito da estrutura de poder tradicional, das oligarquias nordestinas, sobretudo nas regiões mais secas do semiárido nordestino. A ideia de Furtado era transformar um problema, que era a pobreza e a desigualdade do Nordeste em relação ao resto do país, numa tremenda solução. Para tanto, defendia a realização de uma reforma agrária, que desse outro destino ao excedente rural, que não o uso improdutivo, e possibilitasse um vigoroso incentivo à industrialização da região. O que contribuiria para o desenvolvimento do país, como um todo.
Furtado percebia que o futuro do Brasil como nação dependeria da transformação do Nordeste, pois as divisões regionais e sociais acabariam por comprometer o desenvolvimento, e a própria unidade política do Brasil. Celso Furtado era um radical no pensamento, mas um conciliador na política. Sabia que suas propostas não seriam “engolidas” por outros, teria que convencê-los. Mas suas propostas de industrialização, combate à pobreza, e às desigualdades regionais, entravam em rota de colisão com os setores conservadores e com a burguesia nacional, especialmente a mais atrasada e entreguista. Era um período de muita ebulição política e social. O país tinha sofrido uma tentativa de golpe de Estado em (1954), mais uma tentativa de golpe em 1961 (militares não queriam deixar João Goulart assumir) e os mesmos conspiradores e golpistas, sob coordenação dos EUA, estavam articulando outro golpe, que viria a ser sacramentado em 1964.
Em 1963, já como ministro de Planejamento de João Goulart, Furtado lança o Plano Trienal, elaborado em apenas três meses por uma equipe coordenada por ele. As políticas econômicas iniciais de Goulart não tinham funcionado. O objetivo do Plano Trienal era controlar a inflação (foi de 51,6% em 1962, a 79,9% em 1963, e em rota de elevação) retomar o crescimento, e distribuir melhor a renda. O plano previa uma política de substituições das importações gradualmente, aumento dos investimentos do Estado, crescimento rápido da indústria.
Um dos objetivos do Plano era criar condições para que os frutos do desenvolvimento se distribuíssem de maneira cada vez mais ampla pela população. Para isso os salários reais deveriam crescer com taxa idêntica à do aumento da produtividade do conjunto da economia, após os ajustamentos decorrentes da elevação do custo de vida (disso os golpistas de 1964 não perdoariam Furtado).
Suas propostas à época (e ainda hoje), eram “subversivas”: reforma agrária, mudança na estrutura tributária, distribuição de salários conforme a produtividade. Em países dependentes e periféricos, todas essas reformas capitalistas assumem um caráter revolucionário, dado o conservadorismo da burguesia brasileira e à forma subordinada de inserção do Brasil na economia internacional. A própria proposta de industrialização do pais e da região nordeste assumia um caráter transformador muito forte. Não se conseguiria implementar aquelas mudanças à frio, apenas através de medidas governamentais e negociadas, como a história iria demonstrar.
É claro que as medidas propostas no Plano Trienal continham problemas e lacunas, como ocorre com 100% dos planos econômicos. Haveria muito o que debater tanto no Plano Trienal, quanto no conjunto da abordagem de Celso Furtado sobre outros temas. Mesmo porque, a crítica fundamentada é vital ao desenvolvimento da ciência e da reflexão. Mas não se tratava de deficiências técnicas do Plano Trienal, e sim da viabilidade política de sua implementação. O golpe de 1964 mostrou que, naquela conjuntura, não havia correlação de forças para implementar um plano que, mesmo que moderadamente, atendia ao grosso dos interesses nacionais.
Após o golpe de 1964, a ditadura militar reconfigurou a Sudene, mantendo o poder dos coronéis, e implementou mecanismos autoritários de planejamento na utilização dos recursos vindos do governo federal. Com o golpe, Celso Furtado, um reformista e conciliador, é exilado. Furtado não poderia ser mesmo suportado pela ditadura: gostava do Brasil e do seu povo, e era nacionalista. Além de tudo era um sujeito extremamente culto, autor de quase 40 livros. São defeitos insuportáveis para uma ditadura repressora do seu povo e lambe botas do imperialismo, como foi a de 1964.
Dentre as ideias de Celso Furtado, merece destaque a de que os países que se sujeitam à divisão internacional do trabalho, aceitam-na tal como está colocada, estão condenados ao subdesenvolvimento. Seria esperar muito que o atual Ministro da Economia, Paulo Guedes, tivesse lido Celso Furtado. Mas não trata de conhecimento do problema, não é uma questão de domínio técnico da questão. É que a implementação das mudanças que Celso Furtado propunha, significaria retirar poder da burguesia monopolista internacional. E Paulo Guedes está ao serviço dessa.
José Álvaro de Lima Cardoso é economista, doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina, supervisor técnico do escritório regional do DIEESE em Santa Catarina.