Catadores de materiais recicláveis: a linha de frente invisível

Fotografia: Unsplash

No início da pandemia, 80% das organizações de catadores ficaram paralisaram devido a riscos aos quais estavam expostas e a falta de orientações técnicas para seguirem trabalhando com segurança.

Daisy Bispo e Davi Amorin

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 11/12/2020

No Brasil, o isolamento social impactou severamente a produção de lixo. A quantidade de lixo doméstico cresceu de 15% a 25%, de acordo com a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe). Antes uma casa produzia em média 4,86 kg de lixo por semana, número que sobe para 5,83 kg após início da pandemia. O aumento vertiginoso de lixo na pandemia está associado a maior busca por materiais de uso único. Contudo, uma vez descartados, poucos são os que se perguntam quem está lidando com esse problema de modo a diminuir focos de contágio. Nesse sentido, a pandemia não somente contou com grupos de profissionais especializados nas áreas de saúde, abastecimento e alimentação na linha de frente, mas também com catadores e catadoras de materiais recicláveis.

Atualmente, existem cerca de 800 mil profissionais catadores em atividade no Brasil, e uma média de 1.700 cooperativas[1]. No início da pandemia, 80% das organizações de catadores ficaram paralisaram devido a riscos aos quais estavam expostas e a falta de orientações técnicas para seguirem trabalhando com segurança. Isso gerou um grande impacto na indústria da reciclagem por falta matéria-prima, pois 90% dos insumos vem das mãos dos catadores. Um exemplo disso é a indústria do vidro, que precisou importar cacos para que seus fornos não parassem.

Além disso, a pandemia intensificou a guerra de preços entre o plástico reciclado e virgem. Com a queda no preço petróleo, ficou mais caro produzir plásticos de origens recicláveis. Segundo a Independent Commodity Intelligence Services (ICIS) está de 83% a 93% mais caro produzir garrafas de bebidas vindo de plásticos recicláveis.

Mesmo com todas as adversidades, muitos catadores permaneceram na ativa. Seu trabalho é indispensável, pois, principalmente em tempos de pandemia, intensificam os serviços de limpeza urbana[2], recolhendo materiais passíveis de contágio.

Superfícies lisas de plástico, papéis e metais permitem que o vírus seja transportado, com persistência de até cinco dias[3]. Tal processo coloca a categoria também na linha de frente do combate a covid-19, pois ao realizarem o recolhimento de resíduos acabam também mais vulneráveis ao vírus. Para se ter uma ideia do volume e da vulnerabilidade, de acordo com o Atlas do Plástico, da Fundação Heinrich Böll, se todos os brasileiros usassem máscaras descartáveis, seriam quase 10,5 mil toneladas de plástico, o equivalente ao peso de nove estátuas do Cristo Redentor[4], por mês. Isso sem mensurar materiais que tiveram contato com pessoas infectadas e foram descartados sem o devido cuidado.

Pelo o risco de contágio, houve seguimentos empresariais que propuseram que todos os resíduos fossem incinerados e que essa seria uma solução definitiva para se lidar com o lixo no pós-pandemia. Contudo, o que pode parecer uma solução simples e barata, na verdade produz quantidades diversas de substâncias tóxicas, orgânicas ou inorgânicas[5], que causam severos riscos à saúde e ao meio ambiente. Além disso a incineração vai na contramão da Política Nacional de Resíduos Sólidos[6] e não resolve o problema na fonte, que é reorganização dos padrões de consumo em um país cuja população gera por ano aproximadamente 460 mil containers somente de resíduos plásticos[7]. Organizações de catadores estiveram no embate dessa narrativa de que seria impossível conciliar pandemia e reciclagem, instituindo protocolos de segurança[8] e promovendo soluções inovadoras, como a quarentena dos materiais recicláveis, em que os produtos ficam até sete dias armazenados antes de serem encaminhados para reciclagem. Outras medidas também têm sido adotadas, como a pulverização dos materiais com produtos de higienização.

Os catadores de rua viram a produção de resíduos recicláveis migrarem do comércio, onde antes conseguiam materiais de melhor qualidade, para as residências, no qual o resíduo sai mais misturado e dispende mais horas de trabalho para conseguir melhor renda. Contudo, é impressionante notar que a produção de materiais recicláveis aumentou durante a pandemia. Na cidade de São Paulo, o aumento na produção e coleta de resíduos recicláveis é de 25%, segundo a Autoridade Municipal de Limpeza Pública (Amlurb). Já segundo a prefeitura de Curitiba, na cidade o percentual é de 28%.

Uma parte das organizações de Catadores, cerca de 20%, nunca chegou a paralisar o trabalho durante a pandemia. Um alto nível de organização permitiu que adotassem rapidamente protocolos de segurança, como distanciamento no local de trabalho, revezamento de turnos, uso rigoroso de máscaras e proteção facial, higienização constante das mãos, entre outras medidas. Foi possível adotar essas medidas graças a contratos de prestação de serviços com os municípios, um dos benefícios do trabalho cooperativado, ao contrário da informalidade e do empreendedorismo individual.

Os municípios nos quais não há contratação das organizações de Catadores a situação é mais difícil, pois os trabalhadores têm que arcar sozinhos com a compra do equipamento de proteção. Por isso, acesso a EPIs têm se dado por meio de companhas de solidariedade, como a iniciativa do Ministério Público do Trabalho do Paraná que promoveu a compra e distribuição desse tipo de proteção aos Catadores. Em Natal (RN), o MPT permitiu a realização testes de covid-19 prioritariamente aos catadores, afirmando que entre enfermeiros, médicos, caminhoneiros e outros profissionais na linha de frente há também esses “alquimistas do lixo”[9].

A pandemia do coronavírus caminha junto com efeitos de desequilíbrio ambiental que causam mudanças climáticas em todo o mundo. É necessário reconhecer a essencialidade que atividades produtivas que contribuem para o equilíbrio ambiental planetário como a reciclagem e o papel fundamental dos catadores e catadoras nesse contexto.

Notas

[1] AMORIN, Davi; COSTA, Claudete da; ROCHA, Laureano da (2020) Lutar, Criar, Reciclagem Popular in Atlas do Plástico (2020). Fundação Heinrich Böll.

[2] Bortoli, Mari Aparecida (2013): Processos de organização de catadores de materiais recicláveis: lutas e conformações inRev. katálysis vol.16 no.2 Florianópolis July/Dec. 2013

[3] Kampf, G. et al. Persistence of coronaviruses on inanimate surface and their inactivation with biocidal agents. Journal of Hospital Infection, no 104, 2020. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0195670120300463

[4] MONTENEGRO, Marcelo (2020): O Tsunami Plástico in Atlas do Plástico (2020). Fundação Heinrich Böll.

[5] GOUVEIA, Nelson  and  PRADO, Rogério Ruscitto do. Análise espacial dos riscos à saúde associados à incineração de resíduos sólidos: avaliação preliminar.Rev. bras. epidemiol. [online]. 2010, vol.13, n.1 [cited  2020-12-02], pp.3-10. Available from: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-790X2010000100001&lng=en&nrm=iso>. ISSN 1415-790X.  https://doi.org/10.1590/S1415-790X2010000100001

[6] Elisabeth Grimberg, Instituto Polis in https://polis.org.br/noticias/coalizao-contra-a-incineracao-do-lixo-cria-estrategias-de-mobilizacao/

[7] TELES, Daisy Bispo in Gigante pelo próprio lixo que produz in Atlas do Plástico (2020). Fundação Heinrich Böll.

[8] ORIS – Observatório da reciclagem Inclusiva e Solidária, As atividades dos catadores e a coleta seletiva durante e após a pandemia da COVID-19: https://mncr.org.br/biblioteca/publicacoes/livros-guias-e-manuais/as-atividades-dos-catadores-e-a-coleta-seletiva-durante-e-apos-a-pandemia-da-covid-19-manual-operacional

[9] AMORIN, Davi; COSTA, Claudete da; ROCHA, Laureano da (2020) Lutar, Criar, Reciclagem Popular in Atlas do Plástico (2020). Fundação Heinrich Böll.

Davi Amorin, coordenador do setor de comunicação do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Reciclados.

Daisy Bispo Teles, coordenadora júnior para agricultura da Fundação Heinrich Böll.

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