Capitalismo, tecnologia e trabalho: do deslumbramento à barbárie

Fotografia: Alex Knight/Unsplash

O presente artigo cuida da relação entre o capitalismo e a tecnologia e tem por objetivo provocar um autoesclarecimento sobre o atual estágio de exploração da força de trabalho.

Zéu Palmeira Sobrinho

Fonte: Justificando
Data original da publicação: 04/06/2021

O presente artigo cuida da relação entre o capitalismo e a tecnologia e tem por objetivo provocar um autoesclarecimento sobre o atual estágio de exploração da força de trabalho. Algumas questões chaves são postas como inspiração, a saber: estamos na sociedade pós-industrial? As inovações tecnológicas tem hegemonicamente contribuído para chegarmos a um salto civilizacional? Qual o impacto das inovações tecnológicas sobre a vida e a saúde das pessoas e dos trabalhadores?

As questões ora colocadas surgem num contexto em que se disseminam as teses da suposta hegemonia do trabalho imaterial e do conhecimento como elementos fundantes da produção capitalista, a exemplo do que pregam autores como Gorz, Offe, Meda, Negri e outros. Tais percepções partem da presunção de evaporação da relação dialética entre o  trabalho concreto, que faz surgir um bem com valor de uso, e o trabalho abstrato, que possibilita a criação de um bem com valor de troca. 

Para se enfrentar as questões propostas, parte-se aqui de duas premissas. A primeira é a de que o modo de produção vigente, em razão do seu caráter parasitário, não sobrevive sem se apropriar da relação de assalariamento, haja vista que o trabalho concreto continua a ser a condição ineliminável da existência humana no planeta. A segunda premissa é a de que o capitalismo vem tentando ocultar a importância da produção material  por meio da promessa de desenvolvimento consubstanciada no encantamento da propaganda sobre o trabalho imaterial e a Revolução 4.0.

A tese do trabalho imaterial, ao tentar ocultar a explosiva realidade global da extração do trabalho vivo, atua como um biombo ou tapume apodrecido, repleto de buracos. O que se tenta mascarar é a recorrente capacidade de o modo de produção vigente articular, contraditoriamente, as formas de exploração que envolvem o moderno e o atrasado, ou seja, que conjugam ora a apropriação do trabalho abstrato e ora o resgate de padrões produtivos inerentes ao regime escravagista.  Invisibilizar essa complexidade e voracidade do capital sobre o processo concreto de produção tem sido uma preocupação dos Estados, das megacorporações capitalistas e das instituições burguesas controladas pelo mercado.

China, Taiwan, Índia, Coréia e outros são exemplos de países que nunca exploraram tanto o trabalho vivo e que servem para desmascarar a narrativa contraditória da hegemonia do trabalho imaterial no contexto de uma vida econômica que nunca se desmaterializou. Outro exemplo que revela o vigor da exploração do trabalho concreto vem dos levantamentos da ONG Walk Free Foundation. Segundo as estimativas desta, em pleno século XXI há mais de 40 milhões de pessoas em situação de trabalho escravo. Esse quantitativo é maior do que toda a gente escravizada que foi retirada da África entre os séculos XV a XIX. O trabalho escravo rende por ano, segundo a OIT, 150 bilhões de dólares, ou seja, o dobro do que rende o tráfico de drogas. Nunca o conteúdo material da riqueza social foi tão repleto de novos bens materiais; nunca a natureza foi tão devastada; e nunca o adoecimento dos trabalhadores foi tão preocupante. O atual modelo de exploração da força de trabalho tem uma repercussão direta sobre a saúde dos trabalhadores. Este autor, em obra publicada em 2012, já havia alertado que a relação de exploração capitalista vem causando danos aos trabalhadores, tais como o explosivo aumento da depressão, da síndrome de burnout, do câncer ocupacional, das mutilações, etc. Enquanto a saúde e a vida são precificadas pelo capital, a predatória produção de mercadorias possibilita que, em cada recanto do mundo, tenha uma loja de produtos chineses ou uma tenda de um desses players da indústria mundial emergente, repleta de produtos cosméticos, brinquedos, eletrônicos, ferragens, bricolagem, roupas, quinquilharia, etc.

Karl Marx (1994) alertou que o capitalismo, além de modificar constantemente as relações produtivas,  visa, de modo  contraditório,  eliminar “toda tranquilidade, solidez e segurança da vida do trabalhador, mantendo-o sob ameaça constante de perder os meios de subsistência.” Ante as capacidades destrutivas desse moinho satânico, que transforma uma relação entre pessoas numa relação entre coisas, justifica-se à partida uma atitude de suspeição diante do deslumbre da narrativa da chamada “era do conhecimento”, a qual teria dado surgimento a Revolução 4.0. 

As pessoas tendem a ficar maravilhadas com as excentricidades da tecnologia. É como se esta introduzisse um feitiço nas consciências. Parte do deslumbre não é só em relação ao que existe de inovação tecnológica, mas também no tocante a crença edulcorada de que poderá haver no futuro um capitalismo humanizado. Esta é uma contradição em termo, pois o fim supremo do modo de produção é a obtenção de lucro e não a construção de uma sociedade fraterna. 

 A propósito da polêmica sobre o capitalismo humanizado, Stefano Quintarelli (2019), escreveu um livro chamado “Instruções para um Futuro Imaterial”, em que ele defende que é possível humanizar as máquinas se introduzirmos valores humanos nos algoritmos em serviços digitais.  A obra citada é uma demonstração de que parte da humanidade vem sendo alimentada por leituras de deslumbramento e de esperanças no capitalismo, sob um invólucro de “slogans persuasivos”, tais como: tempo do trabalho imaterial; era do capitalismo verde; milênio do desenvolvimento sustentável, etc. No contexto desse feixe de palavras sedutoras está subjacente um conjunto de interpretações idealistas que, além da opacificação do que se sucede no plano concreto, contribuem para que a humanidade não desperte e não reaja urgentemente diante do potencial de destruição do planeta que representa a direcionalidade das inovações tecnológicas manipuladas pelo mercado. 

Um pesquisador do MIT (Massachusetts Institute of Technology ), Max Tergmark (2020),  demonstra que a destruição da vida pode ser acelerada com a tecnologia 4.0, que celebra tão efusivamente a supremacia dos algoritmos. O autor defende que será preciso desacelerar essa tecnologia descontrolada. Tergmark diz que cada vez que um algoritmo provoca desemprego, aquele valor do salário, que antes era pago ao empregado, passa a engordar as contas do dono do capital. 

 A tecnologia, sob o capitalismo, está – em considerável parcela – a serviço da estupidez, da barbárie e do controle pelo mercado para manipular as populações, discriminar pessoas e comunidades, desregulamentar a exploração do trabalho, implodir as democracias e alavancar as chamadas megacorporações globais. 

No documentário Coded Bias, a pesquisadora negra Joe Buolamwini denunciou que Amazon, no seu processo de seleção de pessoal, contava com um robô programado para o reconhecimento facial e para excluir as mulheres. Em consequência,  a empresa foi obrigada a não fazer uso do robô e a retirar do formulário, de habilitação a vaga de emprego, o campo referente a identificação do sexo. Após a citada medida, as mulheres passaram a ser admitidas na empresa em proporções superiores aos homens. 

Evgeny Mozorov, autor do livro Big tech: a ascensão dos dados e a morte da política, diz que a Amazon, a Uber e o Airbnb não existiriam sem as décadas de predições e propagandas das ideias dominantes do mercado, a circularem na internet, para o afrouxamento das legislações trabalhistas ao redor do mundo. 

A despeito dos relevantes alertas de Mozarov e de Buolamwini, a tecnologia sob o capitalismo não apenas trata da espoliação dos direitos sociais, mas se volta para a destruição total do homem e da natureza. 

Segundo a matemática Cathy O’Neil, autora do best-seller “Algoritmos de destruição em massa”, resta a humanidade a alternativa de impor uma regulamentação sobre o capitalismo e exercer um controle social e democrático sobre os algoritmos, a começar pelo monitoramento, regulação e responsabilização dos sujeitos e empresas envolvidos na programação e utilização dos mesmos. 

Divergindo de Cathy O’Neil, que ainda acredita em saídas para preservar o modo de produção vigente, conclui-se que a realidade está a reivindicar a união dos trabalhadores e da humanidade para assumirem, conscientemente e com urgência, a perspectiva revolucionária, a qual deve ser sempre uma alternativa de esperança na construção de um outro mundo possível. Enfim, a única chance de se salvar o planeta, ante a voracidade destrutiva do capitalismo,  consiste na intensificação da luta pela superação do modo de produção vigente. 

Zéu Palmeira Sobrinho é juiz do trabalho, professor da UFRN e membro da AJD (Associação Juízes para a Democracia).

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