Capitalismo na era de ouro da riqueza velha

A riqueza no mundo cresceu 3,7 vezes mais rápida que a evolução do Produto Interno Bruto global durante as duas primeiras décadas do século 21.

Marcio Pochmann

Fonte: Carta Maior
Data original da publicação: 12/07/2021

Sejamos claros: capitalismo sem competição
não é capitalismo. É exploração.

Joe Biden

No primeiro quinto do século 21, a trajetória da riqueza capitalista constituída por dívidas e ativos financeiros (títulos públicos e privados) e não financeiros (imóveis urbanos rurais) cresceu significativamente. Se considerada o total da riqueza divida por adulto no mundo, o aumento média anual foi de 4,8%, saltando de 31,4 mil dólares, em 2000, para 79,9 mil dólares, em 2020, segundo o Relatório da Riqueza do Credit Suisse.

Nesse mesmo período de tempo, a renda per capita mundial (PIB dividido pela população) cresceu 1,3% em média ao ano. Em 2020, segundo o Banco Mundial, o PIB per capita global foi de 10,6 mil dólares, enquanto em 2000 era de 8,1 mil dólares.

Resumidamente, a riqueza no mundo cresceu 3,7 vezes mais rápida que a evolução do Produto Interno Bruto global durante as duas primeiras décadas do século 21.

Em grande medida, a principal razão para o disparate entre a evolução do PIB e da riqueza mundial se deveu ao papel exercido pela parcela financeira no total da composição da riqueza capitalista. No ano de 2020, por exemplo, o total dos ativos financeiros representou 54% da riqueza mundial, ao passo que em 2008 era de 50%.

Se considerar ainda as dívidas na composição total da riqueza bruta, percebe-se que em 2020, ela representava 12%. Quando somado a dívida com ativos financeiros, o valor alcançado em 2020 representou 2/3 do total da riqueza bruta do mundo.

Outro aspecto interessante da Era de ouro de valorização do estoque de riqueza velha do capitalismo atual é a presença crescente e empresa zumbis que sobrevivem sem registrar lucros. De um lado, contam com o apoio do banco central, os investidores seguem dispostos a emprestar, o que significa dizer que uma a cada cinco empresas nos EUA, por exemplo, se encontram nesta situação zumbi.

De outro lado, sobressai a experiência mais recente das grandes empresas privadas de capital aberto que operam em bolsa de valores, porém sem registrarem lucro, não pagam dividendos aos seus acionistas. Os Estados Unidos servem novamente de exemplo, pois registram 8 entre as 25 maiores empresas, segundo valor de mercado de 2020, que não conseguem pagar dividendos nos últimos dez anos (Berskshire Hathaway, Telsa, Adobe Inc., PayPal, Amazon, Google, Facebook, Netflix).

Além disso, importante destacar também o quanto o comportamento da riqueza tem demonstrado ser impermeável às variações negativas do PIB. Diante da crise sanitária da Covid-19 que impôs a queda de 4,6% no PIB per capita mundial de 2020, o total da riqueza global por adulto subiu 6% simultaneamente.

A desconexão da evolução da produção medida monetariamente (PIB) com a riqueza parece decorrer decisivamente dos mecanismos capitalistas atuais de valorização financeria do estoque de riqueza velha. Nesse sentido, percebe-se como o conjunto de medidas tomadas por grande parte dos governos em 2020 para enfrentar a pandemia da Covid-19 terminou sendo profundamente mais favorável aos proprietários de ativos financeiros que ao conjunto da população não proprietária.

Nota-se, por exemplo, que os países mais afetados pela pandemia da Covid-19 não foram aqueles que menos expandiram a riqueza. O caso do Brasil parece interessante, uma vez que enquanto o PIB declinou 425,5 bilhões de dólares em 2020, o número de bilionários aumentou 46,7% (de 45, em 2019, para 66, em 2020).

Ao mesmo tempo, as fortunas dos super-ricos cresceu 73,4%, saltando do total de US$ 127,1 bilhões, em 2019, para US$ 220,4 bilhões, em 2020. Assim, a somatória das fortunas dos bilionários em relação à riqueza nacional foi multiplicada por 2,2 vezes, passando a equivaler a 15,2% do PIB brasileiro de 2020 (a maior na história do capitalismo no país) contra 6,8% em 2019.

A imunidade capitalista às crises de produção da riqueza nova (PIB) decorre da capacidade atual dos governos de mais do que compensá-las, por conta dos mecanismos institucionais de proteção e valorização do estoque da riqueza velha (presença dos ativos financeiros e da dívida na composição da riqueza). Sinal disso tem sido o avanço do endividamento público comparado ao PIB.

Somente em 2020, a relação entre a dívida pública e o PIB subiu significativamente nos países enquanto resultando direto da intensa transferência de renda do Estado para o setor privado, sobretudo aos segmentos ricos, proprietários, em geral, dos ativos financeiros e dívida. No Brasil, por exemplo, o estoque da dívida pública federal cresceu 17,9% no ano passado, o que equivaleu ao deslocamento de 761 bilhões de reais de recursos do Estado para o setor privado.

Para isso não há teto de gastos no país. O enorme volume de emissões dos títulos públicos estourou qualquer perspectiva de controle das finanças públicas, conforme sempre advogam os defensores do receituário neoliberal. A contradição da retórica da austeridade em relação à gastança governamental para salvar os ricos em pleno capitalismo na era de ouro da riqueza velha.

Marcio Pochmann é professor e pesquisador do Cesit/Unicamp e da Ufabc.

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