Um galpão pequeno sem ventilação, com teto baixo de zinco e água quente para beber. São nestas condições de calor extremo que os trabalhadores de uma pequena fábrica de resistência elétrica em Sorocaba, interior de São Paulo, enfrentam as ondas de calor que assolam o Brasil.
“Começamos a passar mal. Tive pressão baixa e dor de cabeça. Parei de trabalhar e fui para fora da fábrica até melhorar”, conta um dos funcionários sobre o calorão de novembro, quando os termômetros bateram 38ºC na cidade. A pedido, ele não será identificado.
As altas temperaturas dos últimos meses provocaram um aumento de denúncias a sindicatos e ao Ministério Público do Trabalho (MPT) por más condições laborais. Embora a emergência climática seja uma realidade, empregadores e órgãos públicos parecem não estar preparados para enfrentá-la.
Trabalhadores, sindicatos e especialistas ouvidos pela Repórter Brasil pedem mais ações de fiscalização nas empresas e urgência para adequar ambientes de trabalho ao aquecimento global. Uniformes mais leves, água fresca e climatização adequada são algumas das medidas, a fim de que o trabalho no calor extremo não seja considerado o novo normal.
O cenário preocupa pois 2023 foi o ano mais quente da história – e a tendência é o calor se agravar.
“O futuro das mudanças climáticas chegou, e os empregadores vão ter que se adaptar e adotar medidas para esse problema. Esse perigo externo terá que ser avaliado no programa de gerenciamento de risco das empresas”, afirma a procuradora Juliane Mombelli, vice-coordenadora da Codemat (Coordenadoria Nacional de Defesa do Meio Ambiente do Trabalho e da Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora), do MPT.
Na pequena indústria de Sorocaba, os trabalhadores afirmam ter registrado 48°C dentro da fábrica em novembro. Apesar de terem feito reuniões com a direção da empresa, eles dizem que a situação só começou a melhorar quando o Sindicato dos Metalúrgicos de Sorocaba e Região foi acionado.
“A empresa prometeu bebedouro novo e que aumentaria o teto ou colocaria forro. Até agora só o bebedouro [industrial] chegou”, diz o funcionário.
Conforto térmico
Segundo o MPT, a legislação prevê que as empresas se responsabilizem pelo bem-estar e pela saúde dos trabalhadores. Isso inclui o “conforto térmico”, ou seja, condições de temperatura e umidade dentro de limites de tolerância. Isso pode ser feito por meio de sistemas de ventilação, exaustão, ar condicionado ou aquecimento (quando o local é frio).
As medidas são definidas após medições de temperatura nos ambientes de trabalho, seguindo as Normas Regulamentadoras (NRs) do Ministério do Trabalho, como as de número 1, 15, 24 e 17. A aplicação depende da atividade econômica da empresa e do tipo de trabalho exercido.
No ABC paulista, o sindicato dos metalúrgicos informa adotar a NR 15, que trata dos limites de tolerância ao calor. A medição do calor considera diversos fatores e não é feita por termômetros comuns.
Na fábrica da Scania em São Bernardo do Campo, os metalúrgicos dizem que bebedouros e ventiladores não garantem conforto para trabalhar. Uma imagem obtida pela Repórter Brasil mostra o termômetro marcando 40,1°C.
“A gente fica fechado num forno dentro da fábrica. Chegou a bater 45°C. Quando tem onda de calor, fica insuportável. A gente fica mole, sente fadiga, cansa mais rápido, cai a pressão e cai a produtividade. Chegamos em casa com dor nas pernas e inchaço nos pés. É desumano”, conta um funcionário que trabalha no local há mais de dez anos. Ele também não será identificado.
As principais reivindicações dos trabalhadores são climatização e mudança dos uniformes. “Nos dias quentes sentimos a camisa colar no corpo, por isso pedimos camisetas. A empresa está modernizando maquinários e seus produtos, mas dá apenas o mínimo para trabalhar. A climatização resolveria o problema, mas eles dizem que é caro. Somos cerca de 5.000 nessa situação”, afirma o metalúrgico.
As chamadas de emergência aumentaram nas fábricas da região, conta Claudio Roberto Ribal, diretor do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e Região e vice-presidente da Cipa (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes) da Scania. “Teve dias que tinha cinco trabalhadores passando mal com pressão baixa, dor de estômago e de cabeça”, diz.
Em negociação com a fábrica, foram combinadas paradas técnicas de 15 minutos durante a tarde e medidas de hidratação. Segundo o sindicato, os trabalhadores relataram que essas pausas têm sido suficientes para amenizar o calor.
Procurada, a Scania disse que não reconhece a imagem obtida pela reportagem como “oficial”. Em nota, a empresa disse que realiza diariamente pausas programadas nos setores produtivos em época de temperaturas mais altas para hidratação.
A empresa afirmou ainda que os uniformes foram desenvolvidos para oferecer segurança e conforto térmico, e que as instalações fabris têm ventilação específica ou telha termoacústica, que contribuem para o isolamento térmico e a diminuição do calor.
O Ministério do Trabalho e Emprego disse, em nota, que a exposição ao calor ambiental tem se tornado uma preocupação mais relevante devido às mudanças climáticas, mas que não é um problema novo. “A fiscalização do trabalho já procura observar e exigir medidas de proteção e de compensação”.
O texto diz ser “essencial” que toda a sociedade, especialmente os empregadores, “reconheçam o impacto ocupacional que essas alterações [climáticas] podem trazer, e se preparem adequadamente” (leia os posicionamentos na íntegra).
Calor extremo e racismo ambiental
Os setores que lideram o ranking de denúncias ao MPT são atividades a céu aberto: agricultura e construção civil. Em ambientes fechados, aparecem fábricas, lojas, supermercados, lanchonetes, empresas de TI e telemarketing.
O MPT ainda está compilando os dados, mas diz que as queixas começaram com dois meses de antecedência nesta temporada, em novembro. Reclamações vieram também de setores que não costumam aparecer na lista, como quiosques de praias e grandes eventos no Rio de Janeiro. Brigadistas que atuam em incêndios e queimadas na Amazônia também figuram na lista.
“É importante que os trabalhadores não normalizem essas condições”. Juliane Mombelli, procuradora do MPT.
Independentemente do setor, os mais afetados são os trabalhadores de baixa renda, pois ocupam empregos com maiores riscos ocupacionais, ou vivem em áreas mais sujeitas a desastres climáticos.
“Esses trabalhadores sempre foram explorados. O que pode acontecer agora é piorar a condição de trabalho. Eles têm um ambiente de trabalho insalubre e, quando vão para casa, continuam expostos ao estresse térmico”, afirma Sandra de Sousa Hacon, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fiocruz.
A exposição ao calor extremo pode levar a uma série de problemas de saúde, como desidratação, aumento da frequência cardíaca, queda de pressão e problemas respiratórios. Hacon diz que é urgente aumentar campanhas educativas e a fiscalização, e colocar limite de horários para exposição às altas temperaturas.
“A literatura mundial mostra um aumento de casos de doenças, principalmente cardiovasculares, chegando ao óbito. Quando a temperatura é muito alta, o corpo é sábio e tenta manter o organismo em equilíbrio. Ele baixa a pressão arterial, porque assim tem menos gasto de energia. Esses sinais precisam ser monitorados para tirar um indivíduo da exposição. O indivíduo que tem comorbidade, como diabetes, hipertensão, obesidade, por exemplo, ele tem que ser atendido em caráter de emergência ”, ela diz.
Denúncias por estresse térmico podem ser registradas nos principais canais de denúncias do MPT. A procuradora Cirlene Zimmermann, coordenadora nacional da Codemat, diz que o órgão planeja ações específicas a partir das denúncias recebidas.
A pesquisadora defende ainda ações de capacitação a profissionais de saúde do SUS com foco em emergências climáticas. “Sem isso, a estatística não vai aparecer. Dificilmente vamos ter médicos reportando que o indivíduo está passando mal por conta das altas temperaturas”.
Para os trabalhadores do chão de fábrica, a expectativa é por melhor tratamento. “O administrativo e a engenharia têm ar condicionado para quem fica no computador o dia todo. A gente que é trabalho braçal passa mal, vai no banheiro e depois volta a trabalhar”, lamenta o metalúrgico da Scania.
Fonte: Repórter Brasil
Texto: Anelize Moreira
Data original da publicação: 18/01/2024