Buscar trabalho no “liquidificador de gente” do Nordeste

Desempregado na cidade onde vivia, Camaçari, na Bahia, o pintor industrial Ubiray de Carvalho Santos decidiu se mudar às pressas para Pernambuco, a mais de 800 quilômetros de distância, quando soube que ali poderia haver uma nova oportunidade de trabalho. “Soube que tinha emprego e vim”, conta o trabalhador de 43 anos, sobre sua mudança para o Cabo de Santo Agostinho, a 40 quilômetros do Recife, em 2009. Ele vendeu o pouco que tinha e partiu, em um esforço que, naquela época, não foi em vão. Ao longo de cinco anos, Santos conseguiu estabilidade trabalhando na construção do Complexo Industrial Portuário Governador Eraldo Gueiros, conhecido também como Porto de Suape, hoje o quinto maior porto público do país em movimentação de carga.

Localizado em sua maior parte nos municípios do Cabo de Santo Agostinho e Ipojuca, no litoral sul pernambucano, Suape, cujo nome é homônimo a uma das praias onde o complexo foi construído, foi criado em novembro de 1978, mas só começaria a operar efetivamente cinco anos mais tarde, em 1983. Inicialmente, era somente um porto de distribuição de combustível. Aos poucos, os terminais foram sendo construídos, e o porto se expandindo, até se instalarem dezenas de indústrias, recebendo maior ou menor aporte, dependendo da gestão que comandava o Estado e o país no momento.

Foi durante os primeiros anos de Eduardo Campos à frente do Governo do Estado (2007 a 2014) que os investimentos ganharam fôlego, graças à relação de amizade entre ele e o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Na época, a aliança garantiu grandes investimentos do Governo Federal, resultando, por exemplo, na construção do Estaleiro Atlântico Sul e na Refinaria Abreu e Lima, a “mais moderna refinaria” construída pela Petrobras, como a estatal a apresenta em seu site. Ao mesmo tempo, o Estado atraía empresas privadas por meio da concessão de benefícios fiscais. Assim, Suape tornou-se rapidamente o eldorado dos investimentos, o símbolo de um Pernambuco que crescia a taxas chinesas em meio à bonança brasileira empurrada pelo preço internacional das matérias primas.

Os números eram eloquentes na menina dos olhos do Nordeste. Entre 2008 e 2012, a economia de Pernambuco cresceu, em média, 4%, ante 2,6% da média nacional para o período. Naquela época, além dos investidores, Suape também recebia, diariamente, 50.000 trabalhadores diretos e indiretos, milhares deles de outros Estados. A oferta de trabalho atraiu não somente o pintor Ubiray Santos, como também sua família toda. Com ele, vieram a mãe e os irmãos com suas respectivas famílias. Eles ajudaram a construir parte do complexo que hoje ocupa 13.500 hectares, três vezes a cidade de Olinda. “Tinha trabalho para todo mundo”, lembra o pintor.

O pintor industrial Ubiray de Carvalho Santos na casa onde vive, no Areal. Fotografia: Brenda Alcântara

Mas em 2014 essa sorte mudaria. Naquele ano, a crise econômica mundial finalmente bateu com força no Brasil. Além disso, Eduardo Campos, que havia deixado o Governo para ser candidato à presidência, morreu em um acidente aéreo. E no mesmo ano fora deflagrada a Operação Lava Jato, colocando no alvo algumas das empresas que fazem parte do complexo. “Quando estourou a crise nacional, em 2014, houve essa infeliz coincidência”, explica Jorge Jatobá, economista e sócio-diretor da Consultoria Econômica e Planejamento (Ceplan). “No momento em que Suape estava bombando e chegando à fase de conclusão dos seus grandes investimentos, empregando dezenas de milhares de trabalhadores, deu-se início à crise”, diz ele. A força de trabalho foi então reduzida drasticamente, levando ao desemprego milhares de trabalhadores. Muitos deles não conseguiram mais se recolocar.

A família inteira de Ubiray Santos faz parte dessa estatística. Até hoje, cinco anos após o início da crise, eles não conseguiram um emprego formal. “Eu estou desempregado, meu irmão está desempregado, meu cunhado, minha irmã, minha mulher…”, contabiliza ele. “A única fonte de renda que cai todo mês é a aposentadoria da minha mãe”.

No momento do início da crise, a dimensão dessa massa de desempregados chegou a ser comparada à da construção de Brasília. “Na história do Brasil, só houve desmobilização similar quando Brasília foi construída. E a gente sabe como é o entorno de Brasília até hoje”, afirmara Márcio Stefani o então secretário de Desenvolvimento de Pernambuco na época.

A vila de desempregados

Sem emprego e sem dinheiro para voltar para a Bahia, a única saída encontrada pela família de Santos foi se mudar para o Sítio Areal, uma ocupação próxima ao Complexo, onde hoje vivem cerca de 1.000 pessoas, a imensa maioria desempregados do complexo. O local pode ser considerado um dos maiores símbolos da ascensão e queda do império do Porto de Suape. À franja de um cenário paradisíaco, em meio a praias de areia branca e mar azul, a ocupação surgiu há cerca de cinco anos, erguida por trabalhadores demitidos. Em condições precárias, até hoje as casas do Areal não têm acesso à rede de água, luz e esgoto, mas, ainda assim, é a única alternativa para quem vive ali.  “Aqui pelo menos eu não pago aluguel”, diz Santos.

Parada de ônibus na entrada do Sítio Areal. Fotografia: Brenda Alcântara

Hoje, dos mais de 50.000 trabalhadores que participaram da construção do porto, não restam mais que 20.000 empregados diretos e indiretos nas mais de 70 empresas do complexo. Orbitam por Suape companhias do ramo de bebidas, alimentos, embalagens, material de construção, fabricação de torres eólicas, logística, automobilística e combustível.

José Rodrigues trabalhou por cinco anos na construção do Complexo e hoje faz bico de garçom na praia. Fotografia: Brenda Alcântara

Mas, atingidas pela crise, muitas dessas empresas tiveram que mudar seus planos. E com isso, seus funcionários também. José Rodrigues, 34, é laboratorista de solos e concreto, além de técnico em segurança de trabalho. Porém, hoje, vive de bico como garçom na praia de Gaibu. “Trabalhei por cinco anos na construção da Refinaria Abreu e Lima. Ao final das obras, a empresa para onde eu prestava serviço ia me levar para o Maranhão para outro empreendimento, mas veio a Lava Jato e nada disso aconteceu”, diz. “Hoje, trabalho de dia para comer de noite. Voltamos aos velhos tempos”.

Marcicléia de Souza vende bombons para complementar a renda da família desempregada. Fotografia: Brenda Alcântara

A família de Marcicléia Medeiros de Souza, 38, que veio de Belém (PA) está entre a maioria de desempregados do Cabo de Santo Agostinho. O marido, pintor, conseguiu emprego ao longo de um ano em Suape, até ser demitido em 2012 e nunca mais conseguir emprego formal. “Perdemos tudo”, resume ela. “Tínhamos internet, TV à cabo, morávamos bem”, conta. Hoje, a família vive em uma pequena casa no Sítio Areal. Ela faz malabarismos com as contas domésticas e vende bombons para complementar a renda proveniente dos bicos que o marido faz. Enquanto caminha pelo chão de terra batida da ocupação, Marcicléia conta a história do lugar. “Isso aqui é um liquidificador de gente, tem gente de tudo quanto é lugar do Brasil que veio atrás da promessa de um sonho”.

O desemprego talvez seja um dos saldos mais negativos deixados por Suape. Segundo os dados mais recentes do IBGE, em 2016 em Ipojuca, onde fica a menor parte (30%) do complexo, dos 94.000 habitantes, menos da metade, 36%, estavam empregados. Já no Cabo de Santo Agostinho, onde fica a maior parte de Suape, somente 19% dos 205.000 habitantes estavam ocupados naquele ano.

Os números também dialogam com a situação do Brasil, que fechou 2018 pelo terceiro ano consecutivo com a taxa de desemprego maior que 10%, contra a média que não chegava nem a 8% no auge do Governo Lula. As histórias também são eloquentes porque justamente está no Nordeste um dos maiores contingentes de desempregados do país: 14,4% dos nordestinos estão sem trabalho, contra 11,9% da média nacional no terceiro trimestre de 2018. Pernambuco tem ainda taxa maior que a da região, 16,7%, quase cinco pontos acima da brasileira.

“Temos o grande desafio de enfrentar os efeitos da crise econômica, do desemprego recorde”, disse Jair Bolsonaro na cerimônia de posse há uma semana. Diferentemente do que o novo presidente afirmou, a taxa de desocupação atual não é recorde (o patamar mais alto foi pouco acima de 13%, registrado em 2017). No entanto, um número, sim, está no seu ponto mais alto desde 2012: a taxa de trabalhadores na informalidade, outro traço que aparece em Suape. As previsões são, na média, de que o Brasil cresça em torno de 2,5%, mas nem isso é um alento imediato: os índices de emprego costumam ser os últimos a reagir à melhora.

“Casa bonita não enche barriga”

O crescimento de Porto de Suape, que, apesar da crise, bateu recorde de movimentação de cargas em 2017, também transformou profundamente não só a paisagem urbana como também a ambiental. Segundo levantamento da companhia, em 2009, 6.800 famílias viviam no território do complexo, sendo que 2.620 em áreas industriais ou de preservação ambiental, como o caso do terreno onde está o Sítio Areal. Aos que tiveram que deixar suas casas para ceder lugar à construção do complexo, a empresa afirma que indeniza as famílias e oferta novas residências, construídas com recursos do programa Minha Casa Minha Vida. O Conjunto Habitacional Governador Eduardo Campos, visitado pela reportagem quando estava em fase de finalização, é o maior já construído nesse contexto e promete acomodar mais de 2.000 famílias que tiveram de ser retiradas de onde vivem para dar espaço ao avanço da expansão de Suape.

Em outra ponta do Cabo de Santo Agostinho está o conjunto Vila Nova Tatuoca, formado por 75 casas entregues pela companhia em 2014. As famílias que vivem ali tiveram de ser removidas da ilha de Tatuoca, onde foram construídos dois estaleiros. Em seu site, Suape ostenta o “projeto social completo” construído próximo à praia. Mas dona Severina Silva, 58, uma das moradoras do conjunto, se lembra com mágoa de quando foi “tirada” de sua casa na ilha. “Eu fiquei uma semana triste, de cama”, diz. Por isso, mais de quatro anos após a mudança, ela ainda sonha em voltar para o local onde nasceu. “Quero voltar para o meu canto”, conta.

Jaqueline Ferreira do Nascimento, em frente à casa onde vive, na Vila Tatuoca. Fotografia: Brenda Alcântara

Grávida do terceiro filho, a filha de dona Severina, Jaqueline Ferreira do Nascimento, 27, explica que a relação com a ilha, onde a família vivia, não era somente afetiva, mas uma questão de sobrevivência. “Somos pescadores, viver lá era mais simples, nosso alimento estava ali, fácil”. Hoje, o acesso à ilha é proibido para quem não tem a permissão de Suape. “O pessoal aqui tem casa bonita. Mas casa bonita não enche barriga de ninguém”, diz Edson Antônio da Silva, 45, outro morador do conjunto. “Na ilha, as pessoas acordavam dentro da empresa delas, que era o mar. Agora, mal tem mangue para tirar alguma coisa”.

Um estudo realizado pela Universidade de Pernambuco (UPE) mostra que as obras de expansão de Suape foram responsáveis pela extinção de mais de 500 hectares de mangue da região. De acordo com Clemente Coelho, professor de biologia UPE e especialista em manguezais, a supressão dos mangues reflete diretamente na vida de quem vive da pesca. “A pesca caiu drasticamente quando começaram a aterrar os mangues”, diz. “Isso porque os serviços ecossistêmicos que o manguezal presta à sociedade são inúmeros, como, por exemplo, servir de berçário para novas espécies, de filtro biológico para a retenção de sedimentos, evitar a erosão e aprisionar carbono, o que é um importante aliado na luta contra o aquecimento global”, afirma.

Edson Antônio da Silva, presidente da Associação de Moradores da Vila Tatuoca. Fotografia: Brenda Alcântara

Para conseguir a permissão de avançar sobre o mangue, a empresa, de acordo com a lei, precisou propor políticas compensatórias, em que, para cada hectare suprimido, seria preciso plantar a mesma área ou criar a mesma área de unidade de conservação. Para isso, a companhia elaborou um Plano Diretor, vigente desde 2011, determinando que 59% do território do Complexo fosse destinado à Zona de Preservação Ambiental. Está em curso também a restauração de mais de 1.000 hectares de Mata Atlântica, restinga e mangue, com mudas produzidas em um viveiro próprio.

As mudanças que a construção de Suape causaram no meio ambiente formam uma equação de difícil solução. Desde a década de 80, as praias do Recife se tornaram alvo de sucessivos incidentes com tubarões. Suape sozinho não pode ser apontado como culpado, mas é um fator que contribuiu para o desequilíbrio ambiental, segundo o professor Coelho. “Os ataques de tubarões são reflexo de uma equação de alguns fatores: a ocupação da praia de Boa Viagem, maior tráfego de navios na região, falta de saneamento básico – que tornou os rios praticamente mortos – e a construção de Suape”, diz. “Quando Suape foi instalado, houve mudanças significativas nas dinâmicas costeiras, nas correntes, nas marés, aumentou a quantidade de lixo jogado pelo navios. Por isso, Suape é uma variável, que pode até ser a de maior peso, mas não está sozinha”.

Fonte: El País Brasil
Texto: Marina Rossi
Data original da publicação: 09/01/2019

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