Brasil, ou indústria ou capitalismo dependente

Cumpre frisar que nenhum país no mundo, em qualquer tempo, desenvolveu-se apoiado em capitais externos.

Roberto Bitencourt da Silva

Fonte: GGN
Data original da publicação: 14/01/2021

O encerramento das atividades da Ford em suas plantas fabris é mais um capítulo do agonizante processo de desindustrialização da economia brasileira.

Como oportunamente chamou a atenção Luis Nassif, em artigo publicado nesta quarta-feira, a Globo ofereceu um diagnóstico das causas da saída da Ford com avaliações e teses liberais, sobejamente conhecidas e infrutíferas. Uma ladainha muito distante da dura realidade. São defendidas pretensas “reformas” que, de maneira silenciosa, só podem levar à legalização do trabalho escravo no Brasil. É o sórdido não dito da narrativa dos Marinho.

Por sua vez, Bolsonaro demonstrou certa hesitação (é primário demais para tecer considerações sobre o assunto), ainda que ele não tenha disfarçado indiferença com o caso. Isso porque o presidente não dá importância ao fenômeno da desindustrialização. O seu projeto de governo, na esteira da agenda golpista alinhavada pela “Ponte para o futuro”, visa remodelar a economia brasileira para patamares inferiores, rudimentares, dotados de uma dependência ainda mais pronunciada. O “agro é pop. O agro é tech. O agro é tudo”.

Paulo Guedes aproveitou a repercussão do assunto e acenou uma vez mais com o seu desejo de aprofundamento das medidas draconianas contra os servidores públicos. O ministro alega a necessidade de habilitar legalmente o Estado a promover cortes salariais e redução de jornada de trabalho, almejando assegurar um suposto “ambiente favorável” ao investimento estrangeiro. De fato, a única coisa que pode alcançar, com isso, é contribuir mais um pouco para a destruição do mercado consumidor do país. Em todo caso, essa é exatamente uma decisiva faceta do projeto em curso, antinacional, subserviente aos EUA e ao imperialismo, conforme destacamos outro dia.

Entre frações das esquerdas partidárias, as manifestações não surpreenderam, revelando confluência com traços de uma mentalidade colonizada. A lamúria de faixas das esquerdas com o encerramento das atividades da Ford no Brasil é um sintoma importante da incompreensão do tempo presente. Também sinal de como a ditadura lesa pátria de 1964 foi extremamente exitosa em seus objetivos. Disciplinar e limitar o capital estrangeiro, promover uma indústria nacional portadora de tecnologia autóctone, eram o eixo do programa nacionalista abortado com o golpe. Recalcar no debate público essas metas patrocinadas pelo governo João Goulart é iniciativa até hoje praticada pelo poder.

Assim, Lula (PT), Ciro (PDT) e Freixo (Psol), expressaram convergência com a fantasiosa ideia de que o desenvolvimento social e econômico é proporcionado, em boa medida, pelo capital estrangeiro. Uma ilusão nutrida pelas direitas e acolhida em contrabando pelas esquerdas. Um filtro colonial para enxergar mal a realidade nacional.

Na seara progressista, o ator político que mais possui autoridade moral para abordar o assunto é o ex-governador gaúcho, Olívio Dutra (PT). Há 20 anos, no governo estadual, não submeteu os interesses públicos aos imperativos da Ford. Ela optou, então, por instalar-se na Bahia. Em artigo publicado em Sul 21, com muita lucidez afirma Olívio: “A sua instalação, em um território ou país no globo, é uma decisão de mercado, avaliada por satélites e importa-se pouco com impactos sociais, econômicos, ambientais e culturais, tanto quando de sua aterrissagem como quando de sua decolagem”. Está certíssimo o Olívio.

Uma burguesia doméstica débil e subordinada ao capital internacional desde 1964 tornou-se capítulo da crônica da submissão do Brasil aos interesses internacionais. O entreguismo só tem sido turbinado, de modo que a desnacionalização econômica foi bastante incrementada nas últimas décadas. Ademais, a desindustrialização também cresceu de maneira dramática, notadamente após os anos 1990. De cerca de 25% do PIB na década de 1980, a participação da indústria na riqueza nacional foi reduzida para 16,9% em 2003, 13,9% em 2011, atingindo a casa de 11,7% em 2016. Em 2018 caiu para 11,3%, segundo números da Fiesp.

Ao capital estrangeiro que atua no país têm interessado muito mais outros setores econômicos: serviços, infraestrutura, recursos naturais e energéticos. A burguesia interna deslocou-se principalmente para o parasitismo da especulação financeira e imobiliária.

Companhias como a Ford contribuem para os crônicos déficits no balanço de pagamentos. São os custos que o país lida por recepcionar o chamado investimento estrangeiro direto. Propriedade intelectual, remessas de lucros, aluguel e reparo de equipamentos etc. Um exemplo do dia a dia: a festinha de aniversário com artigos estampados com personagens da Disney é onerada com a exploração econômica pelos titulares do direito de propriedade intelectual. No caso, a Disney, sobretudo.

Um item importante do balanço de pagamentos é a renda de investimento direto, ou seja, quanto a economia nacional é descapitalizada, com transferência de dividendos e lucros para os acionistas e proprietários das companhias com sede no exterior, que possuem atividades em nosso país. Dados extraídos das estatísticas do Banco Central: em 2010, foi algo em torno de 65 bilhões de dólares de remessas, em 2012 saíram cerca de 46 bilhões de dólares. Em 2018, aproximadamente os mesmos valores de 2012. Uma enorme sangria.

Na esteira do Nafta, o México é um caso recente e exemplar de industrialização desnacionalizada. Cerca de 30% do PIB corresponde à indústria. Mais da metade das exportações é formada por bens manufaturados, registra Gregorio Vidal. Contudo, operações intrafirmas estadunidenses e acentuada dependência tecnológica marcam a economia mexicana. Por óbvio, o balanço de pagamentos é igualmente deficitário. Para usar terminologia de Darcy Ribeiro, trata-se de uma industrialização recolonizadora. Já a conhecemos bem e não nos serve.

O quadro depressivo de tal cenário onde reinam as “maquiladoras” é bem ilustrado pelo filme mexicano “Dias de invierno”, exibido no festival de Gramado de 2020. Sem horizonte na cidade situada ao norte do país, um futuro desalentador conforma o raio de expectativas mesmo para jovens de extração pequeno burguesa.

Não é demasiado lembrar que, quando falamos em capital multinacional estrangeiro, falamos também forçosamente em volumosas perdas de recursos públicos com isenções fiscais. Quanto os cofres públicos brasileiros deixaram de arrecadar com a Ford?

Cumpre frisar que nenhum país no mundo, em qualquer tempo, desenvolveu-se apoiado em capitais externos. Desenvolvimento capitalista, em boa medida, tende a ser alcançado e mantido via protecionismo, investimentos em educação, ciência e tecnologia, formação e ampliação do mercado interno, além da velha projeção imperialista global, também por ações em prol da petrificação dos direitos de propriedade intelectual. O clube é fechado: EUA, Alemanha, Japão, França, Reino Unido e poucos mais.

O mesmo vale, em parte, também para países que perseguem uma rota socialista, construindo aquilo que Samir Amin designa como desenvolvimento autocentrado, assentado no controle dos recursos nacionais, em esforços por capitalização e uso nacional dos excedentes. A China é um exemplo, ainda que esteja longe de esgotar as possibilidades históricas conhecidas. Aí as empresas estatais ocupam uma posição estratégica e o acolhimento de investimentos externos se deu, após abertura dos anos 1970, por meio de exigências de transferência tecnológica, controle financeiro e administrativo, das empresas, compartilhado entre capital estrangeiro e Estado (joint ventures) etc.

Como assinala Elias Jabbour, a diáspora chinesa em países do entorno contribuiu majoritariamente para o fluxo de investimentos estrangeiros na economia chinesa. Uma singularidade que coloca os capitais sediados no Ocidente como minoritários. Enfim, nada que lembre a onerosa e subserviente recepção de capital estrangeiro no Brasil.

O nosso país precisa criar indústria propriamente nacional, para estancar a sangria das remessas de lucros e dos royalties para o exterior, combater o monopólio e a exploração das corporações do imperialismo, desenvolver tecnologia autóctone para acabar com a dependência de máquinas e equipamentos importados, criar empregos mais densos e melhor remunerados, de acordo com os interesses nacionais e as necessidades de ocupação dos trabalhadores. Tudo isso daria novo ânimo e mais sofisticado escopo à educação. Contra o novo capitalismo dependente em formatação, ou a indústria será nacional, estatal e cooperativa ou, simplesmente, não teremos mais indústrias.

Para o Brasil hoje ter indústria se requer, ainda mais do que no passado, a ruptura com as cadeias da dependência. Necessitamos de uma agenda nacionalista, socializante e anti-imperialista. Retirar os favores às multinacionais, mudar os termos de eventual recepção de investimento estrangeiro, estatizar e nacionalizar importantes atividades e setores empresariais e, sobretudo, alterar drasticamente a correlação de forças políticas e sociais. Mudar o panorama da estrutura de poder. É de revolução que se trata. As reações potenciais do imperialismo facilmente podem ser imaginadas como nada menos que asfixiantes.

Sem desconsiderar inúmeras mazelas da industrialização, de ordem ambiental etc., conforme pensava Celso Furtado há uma estreita relação entre a indústria, movida por esforços e engenho nacional criativo próprio, e o estímulo da capacidade imaginativa do povo. Para Álvaro Vieira Pinto, o domínio da tecnologia propiciaria às classes trabalhadoras e aos povos submetidos aos países centrais assumirem a condição de sujeitos, capazes de intervir e construir as suas condições de existência. Nesse sentido, estariam habilitados a abandonar a triste posição de meros objetos de forças alheias, classistas e internacionais. A indústria pode ser uma tremenda ferramenta libertária.

O país precisa de indústria para exercitar a sua soberania política e tecnológica, elevar as forças produtivas de sorte a viabilizar maior conforto e bem-estar à maioria da nossa gente. Para isso, essa indústria precisa ser nacional, moldada às nossas necessidades (de preservação ecológica e controle de excedentes econômicos), garantindo e ampliando direitos trabalhistas e sociais. Dignidade, pois.

Roberto Bitencourt da Silva é historiador e cientista político.

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