Bolsonaro vai se dar mal: trabalhadores preferem a informalidade à CLT precária

Rosana Pinheiro-Machado

Fonte: The Intercept Brasil
Data original da publicação: 20/12/018

Entre as poucas ideias que Jair Bolsonaro apresentou em sua campanha, o bordão “pró-emprego” via facilitação da vida do empregador tem sido uma constante. No Programa Roda Viva, ela já havia dito que “é difícil ser patrão no Brasil”, o que repetiu semana passada, acrescentando um advérbio: “hoje em dia, é muito difícil ser patrão no Brasil”.

A frase logo viralizou entre seus opositores como uma mistura de “eu avisei” ou “bem feito”: o “pobre” que votou no candidato irá se “ferrar” e perder direitos. Desse modo, a esquerda, que defende os direitos dos trabalhadores, denunciava que o futuro presidente estaria do lado dos chefes e dos empresários — e não do povo.

Só que, infelizmente, a ética popular do trabalho não é tão lógica quanto a gente gostaria, já que no Brasil uma grande parte da população sonha ser patrão ou se vê como patrão. Num país em que a maioria da população está na informalidade ou trabalha por conta própria, a esquerda acabou falando para uma parcela restrita que trabalha com carteira assinada. Para toda uma outra multidão, Bolsonaro acertou em cheio, acionando uma linguagem que faz sentido no imaginário popular.

No entanto, apesar disso, Bolsonaro irá se dar mal com o povo. Eu explico o porquê de minha aposta ao final da coluna. Antes, eu gostaria de contar umas histórias sobre patrões.

‘Prefiro ser escravo de mim mesmo’

Em um antigo camelódromo de Porto Alegre, onde fiz pesquisa etnográfica por seis anos, meu amigo Chico era empregado de seu sogro, para quem viajava ao Paraguai com o objetivo de buscar mercadorias. Quando chegava em Ciudad del Este, ele imediatamente contratava um “laranja” — o Maico, de uns 16 anos — que atravessava a fronteira com parte de suas sacolas em troca de US$ 7. Chico dizia-me com orgulho: “aqui eu quem mando” e exigia que o menino o chamasse de “patrão”, sempre passando ordens ríspidas e dizendo que ele era “lerdo” e que não sabia trabalhar. Para minha surpresa, de repente, Maico — que permanecia de cabeça baixa por todo o trajeto — subcontratou um outro laranja, agora de uns 12 anos, a quem deu US$ 2 e a quem também mandava e desmandava.

Quem conhece o cotidiano de muitos mercados informais urbanos sabe que histórias como essas não são exceção. Muitos ambulantes fazem de tudo para ter um empregado, e empregados, por sua vez, fazem de tudo para ter seu próprio ponto — e tudo isso pode ser sintetizado no que uma vez Chico me disse: “Se é para ser escravo, prefiro ser escravo de mim mesmo”.

Existem muitas razões que explicam esse processo que, à primeira vista, remete a um neoliberalismo “cru” (como eu chamei em meu livro) aplicado nos andares de baixo num mercado selvagem de todos contra todos. A racionalidade neoliberal, nos termos de Dardot e Laval, estaria nesses “sujeitos-empresa” que individualizam o sucesso e o fracasso por meio da narrativa meritocrática. O livro A Razão Neoliberal, de Verónica Gago, avança nesse ponto de vista “desde baixo”, mostrando que ambulantes argentinos, mesmo com táticas de resistência, sucumbem à lógica da exploração.

Apesar de eu concordar com essa interpretação, entendo que ela não dá conta de toda a complexidade da história da precariedade, da segregação e da marginalização do Brasil. O neoliberalismo — acredito eu — acirra (mais do que cria) uma lógica pré-existente de resistência à exploração por parte de grupos marginalizados brasileiros, que se recusam a ter patrão.

Na história de Chico, havia uma cadeia hierárquica de exploração de muitos “patrões” na qual ninguém aguentava ser humilhado, e a maneira de lidar com isso era repassando a humilhação (é o que chamamos nas ciências sociais de a natureza reprodutiva da violência). Aí parece-me fundamental entender o papel do autorrespeito que o trabalho por si próprio proporciona, como uma espécie de antídoto contra a humilhação da subordinação. É bom também lembrar o peso de poder simbólico que a palavra “patrão” e “patroa” tem no Brasil.

O antropólogo Roberto DaMatta, no final dos anos 1970, chamava atenção para como o caráter antidemocrático do Brasil produzia um universo de pobres invisíveis, de “ninguéns”, e que se posicionar em uma cadeia hierárquica — como a de Chico — é se tornar “pessoa”: ou seja, existir e ser reconhecido em meio a uma sociedade estratificada em que o Estado de Direito funciona para poucos.

Claudia Fonseca, em seu livro já clássico Família, Fofoca e Honra, escreveu com base em uma etnografia feita em uma comunidade pobre nos anos 1980:

é na área do emprego que o orgulho pessoal [honra] é mais manifesto (…) Por que os empregos assalariados [entre pessoas de baixa renda] são tão desprezados? (…) Autodefesa, já que muitos já foram rechaçados com brutalidade por parte de um patrão (…) Viver de oito a dez horas por dia na evocação constante de sua inferioridade em nada contribui para enaltecer a própria imagem, e o salário, realmente irrisório, não compensa a falta de satisfação pessoal. (…) O sonho de todo homem é ser trabalhador autônomo que ganha pouco, mas sente-se independente. (…) A humilhação sentida por essas pessoas em praticamente todos seus contatos com a classe média não se traduz em uma revolta coletiva. Não se sente compaixão pelos explorados.

Em linhas gerais, ser autônomo e, principalmente, ser patrão são uma forma de reivindicar a existência, quebrar a invisibilidade que impera em empregos degradantes e ter poder em uma sociedade hierárquica.

Mas eu gostaria de findar essa parte do texto com mais um caso, que é o oposto de tudo narrado até agora. É a simples e direta história do Magaiver, que mora em uma das comunidades mais pobres de Porto Alegre, onde absolutamente ninguém é trabalhador assalariado. Depois de três décadas na informalidade, idas e vindas entre “empregos de merda” e bicos de “faz-tudo”, aos 45 anos de idade, ele conseguiu um emprego de carteira assinada como garçom no restaurante do Tribunal Regional da 4ª Região. “As pessoas me chamam pelo nome” — conta ele com a expressão de quem não cabe em si de tanto orgulho. Recebe salário que considera justo, plano de saúde, dentista, férias e décimo terceiro. Ele permanece no emprego já há quatro anos. Ponto final.

‘O trabalhador vai ter que escolher entre mais direitos ou emprego’

Bolsonaro não percebeu, mas o trabalhador já fez a sua escolha — e há tempos: ou mais direitos ou informalidade. O que ele propõe para gerar empregos é flexibilizar ainda mais legislação trabalhista. A proposta pode fazer brilhar os olhos de muitos aspirantes a patrões, como Chico, que votou convicto em Bolsonaro na esperança de um dia reverter seu próprio destino subalterno. O problema é que a fórmula neoliberal de Bolsonaro não se sustenta porque as pessoas aprenderam que “se é para ser escravo, é melhor ser escravos de si próprio”.

Uma das consequências da flexibilização é justamente mais informalidade, como ocorreu com a reforma trabalhista de Michel Temer que, com a promessa de diminuir o problema, jogou 1,7 milhões de pessoas na economia informal em 2017, segundo dados do IBGE.

O Brasil precisa não apenas de mais empregos, mas bons empregos, que sejam capazes de resgatar a dignidade, a identidade e o autovalor dos trabalhadores. Como gerar esses empregos é um debate inesgotável, plural e sempre urgente no campo progressista. Uma parte grande dos setores de centro-esquerda, encarnada em projetos do PT, PDT e PCdoB, defende o fortalecimento do desenvolvimentismo e da indústria nacional.

Mas há também outros importantes debates emergindo, como o encabeçado pela professora Tatiana Roque, que entende que o pleno emprego não existe num horizonte próximo e que, portanto, a ala progressista precisa tomar vantagem dessa massa um tanto “avessa à lógica do capital” e propor novas mecanismos de seguridade aos trabalhadores informais, autônomos e microempreendedores, que hoje são esquecidos — quando não rechaçados — pela narrativa da esquerda.

Apesar de existir um mundo a discutir nesta área, ainda resta uma certeza: a de que Bolsonaro está errado. Querendo ou não, a saída está na história do Magaiver: mais proteção social ou nada.

Rosana Pinheiro-Machado é professora, cientista social e antropóloga. Atualmente é docente da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e coordenadora e co-fundadora da Escola de Governo Comum.

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