Leonardo Sakamoto
Fonte: UOL
Data original da publicação: 22/04/2019
Apostando que o cidadão brasileiro está mais preocupado com vídeo de golden shower tuitado pelo presidente da República no Carnaval do que com o futuro de sua aposentadoria, o governo federal se negou a fornecer os estudos e pareceres técnicos que embasaram sua proposta de Reforma da Previdência. O pedido rejeitado foi feito pela Folha de S.Paulo através da Lei de Acesso à Informação.
Em outras palavras, os números que sustentam sua tese de que, para não naufragarmos como país, é necessário cortar na carne de idosos em situação de miséria, trabalhadores rurais pobres, viúvas e órfãos pensionistas, trabalhadores da classe média baixa (que terão mais dificuldade de se aposentar com o tempo mínimo de contribuição subindo de 15 para 20 anos), aposentados que recebem FGTS, trabalhadores com salário entre um e dois mínimos com direito ao abono, entre outros, não estão disponíveis.
E isso inclui também os números que embasam as propostas socialmente justas apresentadas pelo governo, como a alíquota de contribuição progressiva, cobrando bem mais de quem ganha mais e menos de quem ganha menos.
A explicação dada à Folha: “os expedientes foram classificados com nível de acesso restrito por se tratarem de documentos preparatórios”. Lembrando que a proposta já tramita na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.
O problema não é apenas (mais) uma lacuna democrática desse governo. Basicamente, Bolsonaro está pedindo à população que aceite que ele e sua equipe apresentem um outro projeto de país – pois é isso o que significa a Reforma da Previdência – sem mostrar as justificativas númericas usadas para abandonar a situação anterior e, ao mesmo tempo, apertar o cinto de parcelas vulneráveis da população.
Quem ganha altos salários no funcionalismo público não precisará contar moedas no final do mês quando se aposentar, mesmo com as mudanças propostas. Mas há milhões de brasileiros entre as classes média e baixa que serão afetados e mereceriam saber ao menos a razão de terem sido atropelados por um caminhão em fúria.
O Congresso Nacional já anunciou que deve derrubar as mudanças propostas no Benefício de Prestação Continuada (BPC), a assistência paga a idosos abaixo da linha da pobreza, mas este exemplo vale para entendermos o tamanho da encrenca da falta de transparência.
De acordo com Luciana Jaccoud, doutora em sociologia pela Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, que estuda, há anos, os impactos do BPC, a população idosa que recebe esse benefício tem um histórico de inserção precária no mercado de trabalho. “Muitos desses beneficiados contribuíram para a Previdência Social em certos períodos de sua vida laboral, mas permaneceram excluídos do benefício da aposentadoria, pois não conseguiram alcançar os 15 anos de contribuição”, explica.
O governo federal afirma, repetidas vezes, que os beneficiários do BPC não contribuíram para a Previdência Social. Isso não procede, contudo. Muitos deles pagaram ao sistema, apenas não chegaram aos 15 anos necessários.
Qual o valor arrecadado ao INSS pelo pessoal que recebe hoje o BPC quando trabalhavam com carteira assinada e por seus empregadores? Isso é importante para que saibamos o tamanho real desse “rombo”. Como o governo chegou a esse número de arrecadação insuficiente e como ele foi usado para que fosse estruturada sua proposta de mudar o BPC? Foi a somatória de cálculos individualizados ou uma estimativa da massa dos beneficiários? Essas são dúvidas apenas de um ponto específico e há tantos outros na escuridão.
Ao tentar empurrar a proposta goela abaixo sem mostrar dados e números, o governo Bolsonaro quer um cheque em branco do Congresso Nacional e da sociedade, um grande “confie em mim, a garantia sou eu”. E, pior, fazendo chantagens explícitas, insinuando que, se essa reforma não passar com o tal R$ 1 trilhão de economia em dez anos, o inverno chegará e White Walkers caminharão sobre as ruínas de nossas cidades.
Garantir transparência não é um favor, mas uma obrigação. Se a Reforma da Previdência trazida ao Congresso pelo governo está tão redonda como defendem seus representantes, então a publicização dos dados apenas ajudará a convencer parlamentares e trabalhadores. Ao escondê-los, ele mostra que não se importa com democracia ou não sente segurança naquilo que tem nas mãos.
Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e o desrespeito aos direitos humanos no Brasil. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão.