Bolsonaro faz cafuné em militares e mantém cacetada em pobres e rurais

Leonardo Sakamoto

Fonte: UOL
Data original da publicação: 20/03/2019

Se o projeto de Reforma da Previdência dos militares, apresentado pelo presidente Jair Bolsonaro ao Congresso Nacional, nesta quarta (20), não for profundamente alterado, o governo pode dar adeus a suas propostas que dificultam a vida dos trabalhadores mais pobres – como as alterações no acesso ao BPC, o endurecimento da aposentadoria rural, o corte nas pensões para viúvas e órfãos e mesmo o aumento de 15 para 20 anos de carência para o regime geral.

Ao proteger uma categoria de trabalhadores que não apenas ocupa oito dos 22 ministérios como detém larga influência sobre a Presidência da República, o governo Bolsonaro perde o argumento de que todos devem dar sua cota de sacrifício em nome do ajuste fiscal e de que sua administração não aceitaria pressões de parte alguma sobre esse tema. Pelo contrário, mostrou mais uma vez que com ele é assim: quem tem o porrete maior, leva o que quer – de Donald Trump às Forças Armadas.

De acordo com o projeto, o governo deve poupar R$ 97,3 bilhões, nos próximos dez anos, com as novas regras para os militares. Mas como contrapartida para que aceitassem as mudanças, uma reestruturação em suas carreiras foi embutida no pacote e custará R$ 86,85 bilhões no mesmo período. Ou seja, a economia real será de apenas R$ 10,46 bilhões, bem menos do que o inicialmente previsto.

Pela proposta, as alíquotas cobradas dos militares para a Previdência devem aumentar e o tempo mínimo de atividade passará de 30 para 35 anos. A idade mínima, que hoje vai de 44 a 66 anos, iria de 50 a 70, dependendo da patente. Por outro lado, eles receberiam, na ativa, um adicional de disponibilidade permanente, de 5% a 32% do soldo. As maiores patentes ficariam com os percentuais maiores. Meritocracia, dizem.

Enquanto isso, grupos sociais mais vulneráveis, armados apenas com pá e enxada, que deveriam ser os primeiros a entrarem nos botes salva-vidas e a ganharam coletes quando o navio faz água, vão receber uma pancada com a mudanças nas regras da assistência social e das aposentadorias que, proporcionalmente, será muito mais sentida do que qualquer outra categoria.

As medidas sobre o BPC e os trabalhadores rurais, antes, tinham um perfil de “bode na sala” para ser retirado durante a negociação. Com esse novo pacote, o bode morreu.

O governo Bolsonaro propôs que a idade mínima para que idosos em condição de miserabilidade possam pleitear o salário mínimo mensal do Benefício de Prestação Continuada (BPC) passe de 65 para 70 anos. Em contrapartida, quer desembolsar uma fração desse total – R$ 400,00 – dos 60 aos 69 anos. O problema é que é mais fácil a um trabalhador pobre conseguir bicos e suportar um serviço dos 60 aos 65, para complementar um benefício de R$ 400,00, do que dos 65 aos 70, abrindo mão de um salário mínimo integral.

Quanto aos trabalhadores rurais, a Reforma da Previdência demanda uma contribuição anual mínima de R$ 600,00 por família durante 20 anos, ao invés de apenas comprovar o trabalho no campo por 15 anos, como é hoje. Não leva em consideração que há safras que nem se pagam, fazendo com que a sobrevivência dependa do Bolsa Família. Também eleva de 15 a 20 anos a contribuição mínima de assalariados rurais, que deve ser feita mensalmente.

Se já era difícil completar os 180 meses antes, vai se tornar quase impossível para um grande naco desse pessoal se aposentar com 240 meses de contribuição. Primeiro, pela informalidade. Dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) sobre números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) Contínua do IBGE, de 2016, mostram que cerca de 56% dos 3,4 milhões de empregados rurais trabalhavam sem carteira assinada.

Em outras palavras: 15 anos de contribuição podem ser alcançados com 30 de trabalho, caso ele, na média, esteja formalmente contratado durante metade do ano. Ou 40 anos, se a proposta de Bolsonaro for aprovada. O mesmo drama dos 240 meses de contribuição anos vive os trabalhadores pobres urbanos. Para eles, duas décadas significará três, quatro ou cinco, na prática. O tempo que for até chegar ao BPC, pois irá contribuir com o sistema, mas não conseguirá atingir a carência.

O governo pode fazer a egípcia, fingir que nada aconteceu, manter a porrada nos miseráveis e o cafuné nos militares e jogar a bomba para os deputados e senadores. A conta da contradição lançada nesta quarta vai cair prioritariamente no colo do Congresso Nacional, que terá que lidar com outras categorias de servidores públicos que devem demandar querer o mesmo tratamento.

O governo talvez imagine que, com a cessão de cargos e emendas, o negócio ande. E que o mercado e parte da mídia também vão pressionar pela aprovação na hora certa. Esquece que todo esse bafafá já está rolando antes que sociedade civil e sindicatos entrem no jogo. A Reforma, como um todo, não subiu no telhado. Mas parece que o Palácio do Planalto se esforça nesse sentido.

O governo Bolsonaro continua sendo a maior oposição a ele mesmo. E nem chegamos na Páscoa ainda.

Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e o desrespeito aos direitos humanos no Brasil. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão.

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