O presidente Jair Bolsonaro defendeu nesta terça-feira (30) alteração das regras para a tipificação do trabalho escravo e, ao criticar a fiscalização, usou como exemplo uma inspeção no Ceará, em área de extração de carnaúba, que teria aplicado uma “tremenda de uma multa” ao produtor por ausência de banheiro químico. O que o presidente não mencionou é que a carnaúba é a árvore simbolo do estado e representa um dos setores que mais exploram a mão de obra análoga à escravidão.
Entre 2007 e 2017, 62% dos trabalhadores resgatados no estado estavam relacionados à atividades agrícolas, sendo “a maior parcela dos casos ligada ao segmento da carnaúba”, de acordo com estudo do Instituto de Desenvolvimento do Trabalho (IDT) publicado no ano passado. Os números são confirmados pela última ‘lista suja’ do trabalho escravo, divulgada no dia 3 de abril deste ano pelo Ministério da Economia: 62% dos 26 trabalhadores resgatados no Ceará atuavam com extração da carnaúba.
Um dos empregadores que entrou na última ‘lista suja’ é Benedito Monteiro dos Santos Filho, ex-prefeito de Itarema (CE). Ele submeteu três trabalhadores a condições análogas à da escravidão em um carnaubal. Além de ter sido autuado por não disponibilizar banheiro para os trabalhadores, Santos Filho cometeu outras 18 infrações trabalhistas, entre elas ter empregados sem carteira assinada (e portanto sem direitos mínimos como férias, 13º salário ou FGTS).
Bolsonaro tratou com deboche a ausência de banheiro nos carnaubais: “Uma das multas é porque não tinha banheiro químico, ou seja, a 45 ºC, um calorão enorme, o cara sobre lá em cima do coqueiro, pega as folhas de carnaúba e vai procurar um lugar pra fazer ‘pipi’ e tem que ter banheiro químico. Ele não pode fazer pipi no pé da árvore… Uma tremenda de uma multa em cima dele”, discursou o presidente.
Na fazenda de Santos Filho, não havia nem mesmo fossas secas. Tampouco refeitório ou chuveiro. Não havia alojamento: os trabalhadores dormiam dentro do baú de um caminhão velho e dividiam o espaço com a máquina de moagem da palha e com o pó resultante do processo.
Santos Filho, de 80 anos, conhecido pelo apelido político de Binu Monteiro, considera que foi injustiçado. “Não existe trabalho escravo. É apenas um serviço braçal”, argumentou o ex-prefeito de Itarema. “O governo devia se preocupar com outras coisas”, acredita o político.
Eleitor de Bolsonaro, ele diz estar satisfeito com o governo do presidente e acredita que ele está trabalhando bem. “Principalmente o que ele fala sobre desmatamento. Eu gosto do jeito dele”, afirma.
O empregador afirma não saber se foi a história dele que o presidente citou, mas conta que acionou políticos influentes no Estado, como o ex-deputado federal Danilo Forte (PSDB-CE) para pedir ajuda. Forte não foi reeleito em 2018 e é atualmente assessor especial da ministra da Agricultura, Tereza Cristina, para assuntos relativos ao Nordeste. Questionado pela Repórter Brasil, o assessor disse que não contou a história de Benedito para o presidente.
“Nos carnaubais, as fiscalizações costumam encontrar irregularidades graves, não só ausência do banheiro – há também ausência de água potável, de alimentação, de locais para dormir, e especialmente ausência de registro em carteira de trabalho, o que tira do trabalhador direitos fundamentais”, afirma Carlos Henrique Pereira Leite, procurador do Ministério Público do Trabalho do Piauí, outro estado brasileiro que enfrenta problemas na cadeia produtiva da Carnaúba.
Da carnaúba, é extraído um pó que, processado, vira uma cera usada em diversos setores, como na indústria farmacêutica, automobilística e até na aeroespacial. Parte da produção é exportada para os Estados Unidos e Europa. Diante dos altos índices de trabalho escravo e informalidade, Ministério Público do Trabalho (MPT) e o então Ministério do Trabalho (MT) criaram, em 2014, um grupo de trabalho para fiscalizar e formalizar o setor. Os órgãos negociaram com empresas compradoras termos exigindo que comprem o produto apenas de produtores formalizados.
O trabalho escravo na cadeia produtiva da carnaúba repercutiu na Europa. Segundo o MPT, uma multinacional alemã chegou a procurá-los cogitando suspender a compra por conta das violações trabalhistas, mas mudou de ideia quando soube do trabalho dos órgãos fiscalizadores.
Corte na garganta
Outro empregador do Ceará que também foi flagrado explorando mão de obra análoga à de escravos, em uma área de extração da carnaúba, chegou a ameaçar de morte auditores-fiscais do trabalho em maio deste ano. Vale lembrar que a violência contra os fiscais já deixou vítimas. Três auditores fiscais e um motorista foram assassinados em Unaí, no Noroeste de Minas Gerais, durante uma fiscalização rotineira há 15 anos
Após entrar na ‘lista suja’, Miguel Murilo de Castro foi até a sede do Ministério do Público do Trabalho, em Fortaleza, e disse que “cortaria a garganta” dos auditores fiscais. Também chamou os servidores de “vagabundos e bandidos” e afirmou que eles estavam inviabilizando a comercialização do pó de carnaúba que produzia. Ele foi indiciado pela Polícia Federal por crime de ameaça.
Castro é filiado ao PSL, partido do presidente Bolsonaro, e foi autuado por manter seis trabalhadores recebendo valores inferiores ao salário mínimo. Além disso, eles não tinham água potável, banheiro, alimentação decente e equipamentos de proteção individual – um problema do setor, que apresenta altos índices de acidentes e de trabalhadores que ficam cegos ao derrubarem as folhas da carnaúba.
Castro se diz vítima da fiscalização e conta que precisou vender a casa que morava para pagar as dívidas trabalhistas. “Está faltando esse povo (fiscais) andar no interior e ver o sofrimento da gente”, afirma. Ele nega ter ameaçado os fiscais e diz que mencionou a peixeira apenas para chamar a atenção.
Distorção do crime para defender mudança nas regras
No mesmo discurso em que debochou da ausência do banheiro em um carnaubal, o presidente Jair Bolsonaro também disse que a espessura de um colchão, o nível de ventilação de um cômodo e um “copo desbeiçado” podem tipificar o trabalho análogo à escravidão – uma distorção da definição legal desse crime usada como estratégia para defender alterações na legislação.
Ao contrário do que disse, o crime é definido por um conjunto de situações que afrontam à dignidade humana, como jornadas exaustivas, condições degradantes de trabalho, servidão por dívida ou trabalho forçado. Tudo isso está previsto no artigo 149 do Código Penal.
“O mais preocupante é a ausência de conhecimento do presidente da República sobre como a história do combate ao trabalho escravo se construiu no Brasil a várias mãos e com iniciativa de todos os poderes”, afirma o auditor fiscal do trabalho, Alexandre Lyra, que já chefiou a Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae).
“O combate ao trabalho escravo é uma política de Estado, não de governo”, afirma Lyra. O governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) foi quem primeiro reconheceu, diante das Nações Unidas, a persistência de condições análogas às de escravo e deu início ao sistema voltado ao seu combate.
Não é a primeira vez que isso acontece. O ex-presidente Michel Temer, em 2017, afirmou “que se você não tiver a saboneteira no lugar certo significa trabalho escravo”. Ele, contudo, omitiu que a fiscalização autuou o empregador por outras 43 irregularidades, incluindo problemas graves como o não pagamento de salários, alojamentos superlotados e condições inadequadas de higiene, conforme revelou a Repórter Brasil.
Temer falou da saboneteira poucos dias após o Ministério do Trabalho ter publicado portaria que limitava o conceito do crime à restrição de liberdade com uso de vigilância armada. Após críticas de diversos setores, o Supremo Tribunal Federal suspendeu a portaria em decisão liminar (provisória) e o governo Temer voltou atrás.
“Esses exemplos frágeis citados por Temer ou que são agora trazidos por Bolsonaro querem descaracterizar o crime em razão do copo, da rede, da espessura de colchão, mas não é assim. Em todas as nossas autuações por trabalho escravo há um desprezo total da dignidade humana”, afirma Lyra. “Estamos falando da falta de dignidade dos trabalhadores, são jornadas de 20 horas diárias, xixi e cocô no mato, barracos de lona e funcionários bebendo água de um córrego sujo usado pelos animais”, completa.
Outras polêmicas na fala do presidente
Bolsonaro também afirmou, sem citar números, que há uma “minoria insignificante” que explora seus trabalhadores de forma semelhante à escravidão. Ele omitiu, no entanto, que entre 1995 e 2018, foram resgatados cerca de 54 mil trabalhadores em situação análoga à escravidão, sendo 42 mil no campo e 12 mil em áreas urbanas, segundo dados da área responsável pela fiscalização no governo federal. A pecuária é a atividade em que mais trabalhadores em condições análogas à escravidão foram resgatados no Brasil, seguido por extração florestal e os cultivos de café e soja, segundo dados do extinto Ministério do Trabalho.
A maior incidência de trabalho escravo no campo não é uma mera casualidade. “Os mais vulneráveis são sempre atraídos por essa forma primitiva de exploração do trabalho, que tem a ver com a trajetória agrária e de escravidão do Brasil”, analisa um dos diretores da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), o juiz do trabalho Marcus Barberino.
Se por um lado é no campo a maior incidência do crime, é também no campo que pode ser sentido o maior impacto negativo se as regras relativas ao trabalho escravo forem relativizadas ou suavizadas. “Haveria um risco enorme para o país, inclusive nas suas relações internacionais, já que temos acordos para combater o crime”, afirma.
Fonte: Repórter Brasil
Texto: Ana Magalhães e Daniel Camargos
Data original da publicação: 01/08/2019