Leonardo Sakamoto
Fonte: UOL
Data original da publicação: 26/12/2018
Seja qual rumo a Reforma da Previdência tomar em 2019, há categorias de trabalhadores que deveriam ser protegidos a qualquer custo: os mais pobres e vulneráveis. A própria família Bolsonaro já afirmou que as mudanças não podem afetar os trabalhadores braçais da mesma forma que aqueles que atuam em escritórios.
Para tanto, o projeto teria que tomar alguns cuidados. O primeiro seria em relação à aposentadoria especial de trabalhadores rurais da economia familiar. Transformar 15 anos de comprovação de atividade, como é hoje, em 15 anos de contribuição, como defendem algumas propostas, é jogá-los para fora do sistema.
Pequenos produtores familiares, coletoras de babaçu, pescadores artesanais, entre outros, teriam que passar a pagar individualmente 180 mensais de um carnê com contribuição. Hoje, recolhem imposto no momento da venda de sua produção. E todos os adultos da família que trabalham juntos podem pleitear sua aposentadoria se comprovarem os 15 anos no campo. Além do mais, homens se aposentam aos 60 anos e mulheres, 55, mas há quem queria subir a idade mínima para 65 anos, esquecendo que começam a trabalhar com 14 – ou, infelizmente, menos que isso.
Após pressões e muitas reuniões com representantes de trabalhadores, o governo Temer e aliados recuaram na mudança de idade mínima e de exigência de contribuição mensal. O mesmo cuidado deve ser tomado com a proposta do novo governo.
Incluindo, alguns detalhes que parecem bobagem, mas não são. Hoje, nem sempre essa alíquota na venda da produção pode ser recolhida, não por sonegação deliberada, mas devido a problemas burocráticos (falta de fiscalização do repasse em nome do trabalhador da alíquota descontada pela pessoa jurídica compradora, por exemplo) e pela própria natureza da atividade (quando perde-se a safra por seca ou geada ou quando ela não gera excedente para comercialização e não há contribuição em um ano). Se a proposta do governo Bolsonaro passar a exigir comprovação – seja mensal, por safra ou anual – da arrecadação do imposto como item obrigatório, muitos terão dificuldade para reunir tempo a fim de se aposentar.
Para melhorar a conta neste setor, o governo deveria aprimorar o processo de arrecadação através do Cadastro Nacional de Informações Sociais para a área rural. Isso permitiria identificar quem são os segurados na área rural e demandar que eles informem sistematicamente os dados de venda de seus produtos, quando elas acontecerem. Dessa forma, evita-se fraude (como o recebimento do benefício por pessoas que não são do campo) e a sonegação (na contribuição) de grandes empresas no campo que compram a produção familiar.
Lembrando que enquanto bradam a necessidade de uma Reforma da Previdência, Bolsonaro e a bancada ruralista no Congresso Nacional defendem uma anistia à proprietários rurais e agroindústrias devedores do Funrural (Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural) – exatamente a contribuição previdenciária, que incide sobre a receita bruta proveniente da comercialização. Segundo a Receita Federal, o prejuízo será de R$ 17 bilhões aos cofres públicos.
A aposentadoria especial rural, concedida no valor de apenas um salário mínimo, seguiria bem deficitária, claro, se considerada apenas a arrecadação da Previdência Social e não da Seguridade Social como um todo. Mas a aposentadoria rural especial é o maior programa brasileiro de distribuição de renda ao lado do Bolsa Família. Ou seja, é um preço pequeno a pagar diante da possibilidade de evitar mais êxodo rural, mais inchaço das grandes cidades e garantir soberania alimentar – uma vez que a agricultura familiar fornece boa parte dos alimentos que consumimos.
Outro cuidado a ser tomado é manter a idade mínima para solicitar o Benefício de Prestação Continuada para idosos pobres em 65 anos e não desvinculá-lo do salário mínimo vigente nacionalmente, como defendem algumas propostas. O BPC, vale lembrar, não é uma aposentadoria, mas um benefício assistencial. Portanto, não demanda contribuição anterior.
A expectativa de vida no Brasil aumentou e tende continuar aumentando, bem como os índices de sobrevida após os 65 anos. Mas segue difícil para os mais pobres com 65 anos ou mais conseguirem um emprego ou mesmo um bico decente.
Considerando que uma massa de trabalhadores mais pobres, que atuam na informalidade, terá mais dificuldades para se aposentar por conta das mudanças nas regras de aposentadoria, o governo Temer propôs inicialmente o aumento da idade mínima para que idosos pobres possam pleitear o benefício de um salário mínimo mensal de 65 para 70 anos. Depois, o relator da Reforma da Previdência, após pressão de parlamentares, baixou para 68 – com um regra de transição que aumenta a idade nos próximos anos. E, enfim, novas propostas apontaram para a manutenção dos 65.
Como o acesso ao BPC é para famílias com renda per capita inferior a 25% do salário mínimo, nem todos os idosos pobres têm acesso a ele. Só aqueles que são considerados matematicamente pobres ou extremamente pobres por padrões internacionais – como ter renda per capita inferior a 30% do salário mínimo fosse miséria diferente. Os outros, que não entrarem no corte, tem que escolher entre rebaixar sua remuneração familiar para poder receber o benefício ou continuar trabalhando, provavelmente com bicos e subempregos, até conseguirem se aposentar por um valor maior.
Uma proposta de Reforma da Previdência coordenada pelo economista Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central, prevê a criação de um “benefício universal” mínimo para todos os brasileiros maiores de 65 anos, tendo sido contribuintes ou não, no valor de 70% do salário mínimo. Ele substituiria as pensões garantidas aos idosos pobres através do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e a aposentadoria rural especial. Seriam reduzidos os benefícios dessas categorias que são as que mais demandam suporte por parte do Estado brasileiro.
Se contássemos com um sistema de saúde, assistência social, transporte, cultura, lazer gratuitos de qualidade, a ideia seria ótima, uma espécie de renda mínima universal para idosos. Mas em um país em que os serviços públicos são precários ou inexistentes, reduzir a pensão é rebaixar a qualidade de vida dos idosos pobres – e, acredite, qualquer real conta. Imagine, então, se for aprovada agora ou no futuro a desvinculação do reajuste do benefício do salário mínimo vigente, como propõem alguns? Em uma década, o achatamento desse “benefício universal” o colocaria em padrões de esmola.
Por fim, o governo federal e o Congresso Nacional deveriam analisar a possibilidade de que as mudanças para os trabalhadores mais pobres (não os miseráveis do BPC), tanto do campo (assalariados, não confundir com a aposentadoria rural especial supracitada) quanto da cidade, fossem mais amenas do que para aqueles que ganham mais. Manter a necessidade de um mínimo de 15 anos de contribuição – 180 parcelas mensais – para quem se aposentar com 1,5 mínimo e não subir para 25 anos, por exemplo. Ou considerar os períodos de recebimento de seguro-desemprego no tempo de contribuição e facilitar o recolhimento de contribuição autônoma de quem for informal. Quem é Microempreendedor Individual (MEI) já tem isso garantido, mas nem todo mundo trabalha por conta própria.
Isso beneficiaria os assalariados pobres da cidade e do campo – operários da construção civil e cortadores de cana, que contribuem e não entram no caso do BPC, mas também trabalhadores da economia informal. Como os ministros do Supremo Tribunal Federal já votaram de forma contrária ao entendimento de que um aposentado volte a contribuir para pleitear um aumento no valor de sua pensão, isso afastaria os trabalhadores da classe média que seguiriam contribuindo para ter uma pensão maior.
Exigir 25 anos de contribuição ininterrupta para trabalhadores assalariados urbanos e rurais pobres como o mínimo de tempo de contribuição para alguém poder se aposentar é ignorar a realidade de informalidade de um grande naco dos brasileiros. Dados da Previdência Social mostram que 79% dos trabalhadores que se aposentaram por idade no ano de 2015 não conseguiram atingir 25 anos. Enquanto isso, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) afirma que, em 2014, a média de contribuição foi de 9,1 meses a cada ano. Os motivos são a alta rotatividade do mercado de trabalho e a grande informalidade. Ou seja, considerando 25 anos de mínimo, o tempo de contribuição efetivo terá que ser de 33 anos.
A Reforma da Previdência precisa de um debate mais aberto, franco e sem pressa para podermos redesenhar, de forma democrática, como será a política de aposentadoria que um Brasil mais velho deverá ter. O futuro governo não pode simplesmente dizer que isso não afeta os pobres, como fez a atual administração, e esperar que não haja contraproposta.
Tudo isso tem um custo, claro. Mas o cálculo tem que ser feito considerando a qualidade de vida da população mais vulnerável. E não transformar a dignidade em mais um digito em uma planilha.
Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e o desrespeito aos direitos humanos no Brasil. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão.