Leonardo Sakamoto
Fonte: UOL
Data original da publicação: 04/07/2019
Jair Bolsonaro defendeu o trabalho infantil, em uma live, na noite de quinta (4). Usou a si mesmo como exemplo, contando que, “com nove, dez anos de idade”, colhia milho em uma fazenda na qual seu pai trabalhava no interior de São Paulo.
“Não fui prejudicado em nada. Quando um moleque de nove, dez anos vai trabalhar em algum lugar tá cheio de gente aí ‘trabalho escravo, não sei o quê, trabalho infantil’. Agora quando tá fumando um paralelepípedo de crack, ninguém fala nada”, afirmou.
É difícil afirmar se o presidente foi prejudicado ou não, uma vez que uma série de fatores influenciam no desenvolvimento de uma criança. Mas a justificativa que ele usa para defender o trabalho infantil é, certamente, a de alguém que não explorou o seu potencial intelectual. Afinal, apenas quem observa o mundo a partir de um maniqueísmo raso não é capaz de compreender que o trabalho não é a única saída para evitar que uma criança seja dependente de drogas.
“Fiquem tranquilos que eu não vou apresentar nenhum projeto aqui para descriminalizar o trabalho infantil porque eu seria massacrado. Mas quero dizer que eu, meu irmão mais velho, uma irmã minha também, um pouco mais nova, com essa idade, oito, nove, dez, doze anos, trabalhava na fazenda. Trabalho duro”, afirmou também o presidente. Não, presidente. O senhor não seria massacrado. Mas seu projeto seria, muito provavelmente, considerado inconstitucional, como tantos decretos que você apresentou.
Ao defender o trabalho infantil, Bolsonaro não apenas cometeu um dos maiores desserviços aos brasileiros desde que chegou à Presidência da República. Também chutou com força o futuro do Brasil – que, com suas declarações, ficou mais longe.
Meu pai também trabalhou na roça quando criança. Homem correto, vida digna. Mas fez todos os sacrifícios, os possíveis e os impossíveis, para que seus dois filhos não tivessem que passar pelas mesmas privações que ele, podendo se dedicarem aos estudos e irem bem mais longe do que ele foi. Creio que esse deveria ser o desejo não apenas de pais e mães, mas também de uma nação: que seus filhos e filhas possam ir mais longe, vivendo mais e melhor, tendo a vida que desejaram, sem precisar passar pelas mesmas dificuldades que as gerações anteriores.
Desconfio que, pelo tom laudatório do vídeo, não seja esse o desejo do presidente.
Trabalho infantil não precisa ser hereditário
“Trabalhei desde criança e isso moldou meu caráter”, “aprendi a dar valor às coisas com o suor do meu trabalho desde muito pequeno”, “criança ou está vagabundeando ou está trabalhando” e “para consertar uma criança delinquente é só por no trabalho pesado”. Discursos como o de Bolsonaro são comuns no país, com o trabalho sendo ministrado como remédio à infância.
Até entendo que muita gente, como o presidente, sinta que sua experiência de superação individual é bonita o suficiente para ser copiada pelos outros. Mas o fato é que o trabalho infantil não precisa ser hereditário.
Por isso, é triste ver parte dos trabalhadores, que foi acostumada a ser explorada, passando a justificar a sua própria exploração e a de seus filhos, repetindo bovinamente um discurso que foi reservado aos mais pobres: só o trabalho liberta.
O artigo 7º da Constituição diz que é ilegal o trabalho noturno, perigoso ou insalubre de crianças e adolescentes com menos de 18 anos de qualquer trabalho a menores de 16, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14. Crianças podem ajudar nas tarefas domésticas e aprender o ofício dos pais, claro, mas desde que sua participação não seja fundamental para a manutenção econômica da família.
Há, contudo, projetos no Congresso Nacional que declaram que o rebaixamento da idade mínima poderia mudar a vida das crianças e adolescentes que são pedintes nas ruas ou aliciadas para o tráfico. Em bom português: já que o Estado e a sociedade foram incompetentes para garantir que crianças dediquem sua infância aos estudos e ao desenvolvimento pessoal, vamos aceitar isso e legalizar nossa incompetência permitindo que trabalhem.
Treze crianças e adolescentes foram encontrados trabalhando em três casas de produção de farinha de mandioca no município de Ipubi, sertão de Pernambuco, pelo grupo móvel de fiscalização do governo federal, em maio deste ano. Entre elas, uma criança de apenas três anos de idade.
“A cena com a criança de três anos raspando mandioca foi bem chocante. Como a mãe não tinha com quem deixá-la por falta de creches ou familiares, começou a levá-la. E, a partir daí, passou a ajudar no trabalho”, explica André Dourado, auditor fiscal do trabalho e coordenador da operação. O procurador do Trabalho Ulisses Dias Carvalho explica que a falta de alternativas econômicas para emprego na região aliada à falta de estrutura de assistência social acabam empurrando crianças e adolescentes para esse tipo de trabalho.”Isso nos assustou profundamente. Em um dos estabelecimentos, oito dos 34 trabalhadores eram menores de idade. Ou seja, quase 25% da mão de obra da casa de farinha era de crianças e de adolescentes, de três a 17 anos, em uma atividade que está na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil”, afirma.
Roubando empregos de adultos
E além de roubar a infância, o trabalho infantil também impacta o empregos dos mais velhos. “Em um mundo onde há 210 milhões de adultos sem emprego, por que 152 milhões de crianças estão envolvidas em trabalho infantil?” A pergunta me foi feita pelo indiano Kailash Satyarthi, que recebeu o Prêmio Nobel da Paz, em 2014, por sua luta contra o trabalho escravo e infantil.
Cada uma das respostas a ela é capaz de provocar mais vergonha que a outra: porque crianças são mais facilmente exploradas, porque paga-se menos a crianças, porque não se garante condições para as famílias pobres.
“O valor do trabalho é importante, mas para adultos. O valor da educação é o que é mais importante para as crianças e para toda a sociedade, pois garante o crescimento econômico futuro. No que diz respeito aos adolescentes de 15 a 18 anos, o governo deve promover treinamento de habilidades e empregabilidade, além de garantir educação gratuita e de qualidade para todas as crianças, sem discriminação”, afirmou ao blog no ano passado.
Em todo o mundo, o número de crianças trabalhando caiu de 260 milhões para 152 milhões nos últimos 20 anos, de acordo com o Nobel da Paz. Há menos de 60 milhões delas fora da escola, em comparação às 130 milhões de antes. Mas a melhora ficou mais lenta agora. Segundo ele, “nós não estamos investindo o suficiente na educação básica”. De acordo com o IBGE, 1,8 milhão de crianças e adolescentes, entre 5 e 17 anos, trabalhavam no Brasil em 2016. O Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, por outro lado, tem afirmado que a conta não inclui o trabalho de subsistência e, portanto, o número deveria ser de 2,5 milhões (leia nota do fórum sobre as declarações do presidente).
Crianças ricas vs crianças pobres
Ao adotarmos como verdade as frases como as de Bolsonaro ou as outras que enumerei acima, simplesmente abrimos mão de refletir sobre a própria exploração. E reproduzimos um modelo imposto, em que os filhos dos mais ricos não precisam trabalhar antes de completar sua pós-graduação enquanto os dos mais pobres abraçam o batente antes de entrar na escola. Ou deixam-na por causa do serviço.
Tempos atrás, o então presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Márcio Pochmann, defendeu o aumento na idade mínima legal para se começar a trabalhar no Brasil. Ele afirmou que filhos de famílias ricas raramente começam a trabalhar efetivamente antes dos 25 anos de idade – e depois de muito investimento e tempo de formação. Enquanto isso, filhos de pais pobres são condenados a começar a trabalhar cedo, não conseguem evoluir em termos de formação e acabam ocupando postos de baixa qualificação e mal remunerados que compõem a base do mercado de trabalho.
Todas os filhos de famílias ricas fumam um paralelepípedo de crack por dia? A diferença entre elas e as de famílias pobres é o caráter ou a falta de oportunidades?
“Hoje em dia é tanto direito, tanta proteção que temos uma juventude aí que tem uma parte considerável que não tá na linha certa. O trabalho dignifica o homem e a mulher, não interessa a idade”, disse também Bolsonaro em sua live.
Ao longo do anos, acompanhei, como jornalista, muitas dessas histórias “dignificantes” que já trouxe aqui.
O governo federal encontrou 30 crianças escravizadas, entre um grupo de adultos, no Pará em área de difícil acesso, às margens da Rodovia Transamazônica. Fazenda de cacau. Uma das crianças ficou cega após acidente de trabalho. Ela estava carregando frutos, quando tropeçou em um tronco e caiu com o olho esquerdo em um toco de madeira. A maioria das crianças estava doente, algumas com leishmaniose visceral e outras com “úlcera de Bauru”.
Um outro grupo de 30 crianças e adolescentes, entre seis e 17 anos, trabalhava na colheita de limão em condições precárias e com atraso de salário em Cabreúva, a cerca de 70 km da capital de São Paulo. A sorte deles só mudou graças a um adolescente resolver sair e denunciar à Polícia Militar que não estava recebendo remuneração pelo serviço. Passavam fome e frio.
Uma fiscalização encontrou mais de 25 crianças e adolescentes em matadouros públicos nos municípios de Nova Cruz, João Câmara e São Paulo do Potengi, no Rio Grande do Norte. Muitos trabalhavam com os pais no descarnamento de bois e curtimento de couro sem nenhum equipamento de proteção, pisando descalços sobre o sangue derramado, com uma faca na cintura. Uma menina, de 15 anos, que retirava esterco das tripas disse que recebia em produtos para levar para casa. “Em alguns casos, o pagamento é em comida que você dá normalmente para o cachorro”, afirmou a coordenadora da ação de fiscalização.
Dentre trabalhadores libertados da escravidão em uma fazenda de gado no Pará, um rapazinho de 14 anos, analfabeto, me contou que morava em uma favela na cidade com a família adotiva e ia ao campo para ganhar dinheiro. Foi dado de presente pela mãe aos três anos de idade e trabalhava desde os 12 para poder comprar suas roupas, calçados, fortificantes e remédios – afinal de contas, já havia pegado uma dengue e cinco malárias. Com o que ganhava no serviço, também comprava sorvetes e lanches para ele e seus amigos. E só. Segundo ele, a adolescência não era tão divertida assim. “Brincadeira lá é muito pouca”, explicou.
Pedro perdeu a conta das vezes que passou frio, ensopado pelas trovoadas amazônicas, debaixo da tenda de lona amarela que servia como casa durante os dias de semana. Nem bem amanhecia, ele engolia café preto engrossado com farinha de mandioca, abraçava a motosserra e começava a transformar a floresta amazônica em cerca para o gado do patrão. Analfabeto, permaneceu apenas dez dias em uma sala de aula por causa da ação de pistoleiros no povoado onde ficava a escola. Depois, nunca mais. Passou fome, experimentou dengue e por dois anos não recebeu um centavo pelo serviço, só comida. “Trabalhar com serra é o jeito. Senão, a gente morre de fome.” Não sabia a data do seu aniversário e nem o que se comemorava no dia 1º de maio, dia em que foi libertado do trabalho escravo pela equipe do então Ministério do Trabalho e Emprego durante fiscalização na fazenda que acompanhei. Tinha apenas 13 anos.
Reforma da Previdência
Passado um primeiro momento de grande arrancada na prevenção e eliminação do trabalho infantil no Brasil, do início dos anos 1990 a meados dos anos 2000, desde 2013, o país enfrenta o desafio para manter o ritmo de queda. Enquanto a primeira fase foi marcada pela retirada de crianças e adolescentes das cadeias formais de trabalho, o novo desafio são as piores formas, que o poder público tem mais dificuldade de alcançar. E isso em meio a uma forte crise econômica na qual, a primeira vítima, é a dignidade de quem não pode reclamar.
Às crianças e adolescentes mais pobres damos três alternativas: morrer de doença, falta de cuidados médicos e como consequência de saneamento básico inexistente; serem assassinadas em meio à violência na periferia das grandes cidades ou nos conflitos no campo; começar a trabalhar desde cedo para ajudar a garantir a sua sobrevivência e à da própria família.
Qual a mensagem que o Brasil passa com isso? Que com menos tempo para se dedicarem a seu crescimento, as crianças serão adultas que saberão o seu lugar na sociedade e trabalharão duro para o crescimento do país, sem refletirem sobre seus direitos, sem criticarem seus chefes e governantes por péssimas condições de vida, dizendo “sim, senhor” e “amém”.
Bolsonaro não falou da Reforma da Previdência na live, mas enquanto defendia o trabalho infantil rural, a comissão especial da Câmara dos Deputados discutia o projeto de mudança nas aposentadorias por ele apresentado. Nele, o presidente inseriu uma proposta que dificultava a vida dos idosos rurais.
Ele, que trabalhou na roça desde criança, sabe que essa categoria começa a trabalhar bem mais cedo que as demais. Mesmo assim, propôs mais sacrifícios aos trabalhadores rurais – que, após muita pressão, ficaram de fora do relatório de Samuel Moreira.
Recomendaria um analista que ajudasse o presidente a fazer as pazes com sua infância. Isso ajudaria muito o país.
Em tempo: Burrice não é a falta de um conhecimento específico. Um camponês de uma comunidade isolada pode não saber navegar na internet. Mas duvido que você saiba produzir alimento a partir da terra como ele. Burrice também não é separar sujeito e predicado por vírgula. Muita gente não entende isso e desvaloriza a opinião dos outros por não compartilhar dos mesmos padrões de fala. Burrice é quem menospreza o conhecimento, chegando a odiar quem o detém ou quem busca aprendizado. Burrice é encarar preconceitos violentos como sabedoria. Essa burrice pode conviver bem no indivíduo, mas é fatal para o futuro da coletividade.
Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e o desrespeito aos direitos humanos no Brasil. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão.