Bolsonarismo jurídico trabalhista

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Ilustração: Partido dos Trabalhadores

Os direitos trabalhistas, sociais e tributários representam a contrapartida mínima para que a exploração do trabalho não faça do Brasil terra arrasada.

Jorge Luiz Souto Maior

Fonte: A Terra é Redonda
Data original da publicação: 21/01/2024

Toda expectativa sobre a última sessão do Supremo Tribunal Federal, ocorrida em 8 de fevereiro, girava em torno do posicionamento que a Corte firmaria a respeito da configuração da relação de emprego no trabalho prestado a empresas proprietárias de plataformas digitais, no julgamento da Reclamação Constitucional n. 64.018 proposta pela empresa Brasil Intermediação de Negócios Ltda.

No entanto, dado o adiantado da hora, o processo em questão acabou não sendo julgado. De todo modo, a classe trabalhadora, o Direito do Trabalho, a Justiça do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho não saíram ilesos.

A preocupação com os interesses de grandes empresas e instituições financeiras

Em outro processo da pauta, RE 688.267, no qual se discutia a necessidade de motivação para a cessação de vínculos de emprego nas empresas públicas, alguns ministros do STF deixaram nítida, em seus votos, a compreensão de que os entendimentos jurídicos consolidados não devem desagradar o sistema econômico, como se pode ver, de forma explícita, na fala do ministro Dias Toffoli, ao relacionar o resultado de uma compreensão de ordem jurídica ao valor da empresa na Bolsa de Valores, no que, mais adiante, acabou sendo acompanhado pelo ministro Gilmar Mendes, que, inclusive, fez questão de explicitar o quanto o atendimento dos reclamos econômicos dos bancos diz respeito também aos interesses, por exemplo, do agronegócio e de pessoas que ficam ricas entesourando os seus ganhos em instituições financeiras.

Em suas palavras: “Agora, nós não podemos também esquecer outros efeitos reflexos. Na medida em que possamos estar agravando o custo direto ou indireto dessas empresas, o seu valor na bolsa também cai. E nós estamos falando, por exemplo, de uma das maiores instituições bancárias do Brasil, com uma importância enorme. Em algumas atividades ela inclusive é a maior: no agronegócio…”.

O ministro Luís Roberto Barroso também não se afastou da mesma lógica, batendo, mais uma vez, na já surrada tecla do tal “custo Brasil” gerado, segundo sua interpretação, pela litigiosidade trabalhista excessiva. A respeito, dialogando com o Ministro Toffoli, Barroso consignou que vai constituir um Grupo de Trabalho no CNJ para entender “quais são as circunstâncias que levam” à situação de que, no Brasil, segundo seu argumento, se tenha uma litigiosidade trabalhista “superior em muito ao padrão mundial”, o que seria causa de um “custo Brasil elevado”.

Disse, expressamente, o Ministro: “eu até vou constituir um grupo de trabalho no CNJ… A litigiosidade trabalhista no Brasil é superior em muito ao padrão mundial e isso tem um custo Brasil elevado e, portanto, é preciso entender quais são as circunstâncias que levam a essa litigiosidade para nós podermos enfrentá-la, porque eu acho que ela prejudica o país, prejudica a segurança jurídica e prejudica a atratividade do país para fins de investimento. Você só sabe o custo de uma relação do trabalho no Brasil depois que ela termina. E, portanto, isso é muito problemático do ponto de vista, inclusive da empregabilidade. E, portanto, sem nenhum diagnóstico prévio, eu acho que nós temos que entender duas litigiosidades, Ministro Gilmar, imensas que há no Brasil: a trabalhista e contra o Poder Público”.

O ponto fundamental, no entanto, que precisaria ser entendido pelos Srs. Ministros – e talvez até seja, vez que não se parecem com “inocentes úteis” – é que uma ordem jurídica forjada para atender interesses de grandes empresas e bancos não constitui base sólida para um projeto mínimo de sociedade, na qual os valores humanos sejam postos em primeiro plano. Uma tal postura, aliás, não difere em nada da adotada pelo governo bolsonarista, como explicitamente assumido pelo então Ministro Paulo Guedes, na fatídica reunião ministerial de 22 de abril de 2020, quando afirmou, com todas as letras: “Nós vamos botar dinheiro, e vai dar certo e nós vamos ganhar dinheiro. Nós vamos ganhar dinheiro usando recursos públicos pra salvar grandes companhias. Agora, nós vamos perder dinheiro salvando empresas pequenininhas”.

Bem se sabe que o capital não tem sentimento e não se move pela solidariedade ou senso distributivo. Sua lógica, como explícito na própria fala dos Ministros do STF, é a concorrência e o seu objetivo final, ou, sua “atividade-fim”, é a lucratividade. Então, quando a ordem jurídica lhe dá brechas para buscar esse efeito por meio do descumprimento dos direitos alheios, não será um preceito moral – como sugerido em algumas falas proferidas na referida sessão – que o irá impedir de agir nesta direção.

A “alta” litigiosidade trabalhista

A primeira constatação empírica que se tem a respeito da litigiosidade trabalhista no Brasil e que todos que habitam o cotidiano das audiências trabalhistas e que estudam as relações de trabalho no Brasil conhecem muito bem: o descumprimento reiterado e calculado da legislação do trabalho.

E qual é o cálculo feito? O cálculo óbvio de que é muito mais barato não cumprir a legislação do que a cumprir, seja porque, na realidade do desemprego estrutural e ainda pesando sobre os ombros dos trabalhadores e trabalhadoras os efeitos das conhecidas “listas sujas”, sobretudo em regiões rurais, onde as possibilidades de trabalho são sazonais e monopolizadas por poucas empresas, a enorme maioria dos trabalhadores e trabalhadoras não vai buscar os seus direitos na Justiça.

Na verdade, mais do que uma alta litigiosidade, o que se tem na realidade brasileira é uma “litigiosidade contida”, na feliz expressão de Mauro Cappelletti, cunhada nos círculos de discussão do Projeto Florença, desenvolvido nas décadas de 1960 e 1970, para possibilitar o acesso à justiça, ou, mais propriamente, o acesso à ordem jurídica justa, sobretudo, para os pobres, titulares dos novos direitos (sociais).

Assim, uma preocupação realmente séria relacionada à busca da efetivação de justiça em nosso país deve começar pela superação das barreiras que se estabelece para que os trabalhadores e trabalhadoras tenham, de fato, acesso à justiça e aos seus direitos sociais.

Lembre-se, a propósito, da situação de milhares de brasileiros e brasileiras, na maioria crianças, que ainda são submetidos ao trabalho em condições análogas à escravidão, que não têm qualquer tipo de acesso a Direitos Humanos e que, aliás, são conduzidos a esta exploração de forma reiterada, vez que além de não terem acesso à justiça, também não possuem alternativas de sobrevivência. Essas pessoas, inclusive, só encontram um pouco de cidadania pela reação local com o apoio de personalidades e pastorais e, em nível estatal, pela atuação do Ministério do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho.

Ocorre que também a atuação do MPT foi criticada pelo Ministro Gilmar Mendes, acusando-a de motivador da litigiosidade excessiva. Para o Sr. Gilmar Mendes, a submissão de uma pessoa ao trabalho em condições análogas à escravidão não é um problema a ser resolvido. O que se precisa resolver é o dilema do Dr. Trabuco, presidente do Banco Bradesco, como veremos adiante.

A litigiosidade provocada pelas empresas pode ser atestada no dado estatístico, trazido no anuário do TST de 2022, de que o maior percentual das reclamações trabalhistas diz respeito a direitos rescisórios não pagos.

Não pagar estas parcelas, aliás, integra antiga estratégia de muitas empresas que, valendo-se da demora até a realização da audiência, contam com o estado de necessidade do(a) trabalhador(a) e certa complacência da Justiça do Trabalho (neste aspecto, mais preocupada em melhorar seus dados estatísticos de solução de processos do que com o resgate da autoridade de direitos de ordem pública), para alcançarem, no processo, um acordo no qual se comprometem com o pagamento reduzido e parcelado das verbas respectivas, recebendo o “bônus” da “quitação do extinto contrato de trabalho”. E, não raro, o acordo em questão sequer é cumprido, levando o trabalhador ou a trabalhadora às raias da fase de execução, que na maioria das vezes não dá em nada, por razões mais abaixo identificadas.

A vitimização dos empregadores e a vida dos(as) trabalhadores(as) no processo como ela é

É importante perceber que ingressar com uma reclamação trabalhista, mesmo enfrentando e superando todos os percalços, não constitui, em si, fator de satisfação do interesse jurídico-econômico do trabalhador e da trabalhadora. Além do aspecto mencionado, da conciliação, que, em 2022, acabou atingindo – com efeito redutor – 44% das reclamações, as demais, boa parte é julgada inteiramente improcedente, uma pequena parte é julgada totalmente procedente e a maior parte, apenas procedente parcialmente.

Mas ter o julgamento da procedência da pretensão, o que, no mesmo ano, levava, em média, 9 meses e 7 dias, também não gera este efeito da satisfação do direito de forma imediata, até porque, em 42% desses processos as reclamadas interpuseram recurso para o Tribunal Regional, onde o tempo médio de julgamento foi de 4 meses e 20 dias.

Somente depois disso é que o processo está apto a retornar à Vara do Trabalho, para se buscar a efetividade do direito. Isto se a empresa não tentar levar o processo ao TST, pois se o fizer, mesmo que não consiga efetivamente, ou seja, que sua pretensão seja barrada no agravo de instrumento, serão transcorridos mais alguns meses de tramitação (8 meses e 28 dias, para definição do Agravo de Instrumento em Recurso de Revista; e 1 ano, 7 meses e 8 dias, para o julgamento do Recurso de Revista).

Uma vez na Vara do Trabalho, inicia-se a fase de liquidação que, em 2022, demorou, em média, 7 meses e 7 dias. Com todos esses percursos concluídos, inicia-se, enfim, a fase de execução, cuja duração média, em se tratando de entidades privadas como executadas, foi, em 2022, 3 anos, 10 meses, 11 dias; e, no que tange a entes públicos, 2 anos, 6 meses, 4 dias – dados extraídos do anuário da Justiça do Trabalho – vide aqui. E não é só uma questão de tempo. Ao final, o processo pode ser extinto sem que se tenha, concretamente, efetivado o direito.

Vejamos, com efeito, esses números. No início de 2022, havia na Justiça do Trabalho 2.740.529 processos na fase de execução. Durante todo o ano se somaram a estes, outros 624.320, totalizando 3.364.849 processos. Desse total, apenas 23% foram extintos, sem que se saiba, inclusive, se a extinção pela efetivação ou constatação da impossibilidade de se efetivar. Fato é que, ao final de 2022, remanesciam 2.622.106 processos em fase de execução.

E lembre-se que a “reforma” trabalhista, pondo a culpa no trabalhador e na trabalhadora pela “alta litigiosidade”, como se o processo trabalhista fosse uma situação agradável e benéfica a estes (e os dados demonstram que não é, efetivamente), ainda tentou dificultar o acesso à justiça, impondo custos aos reclamantes e às reclamantes, notadamente o da sucumbência, o que, em certa medida, inclusive, acabou sendo corroborado pelo Supremo – ADI 5766, notadamente nos recuos verificados nas decisões proferidas em sede de embargos declaratórios.

Mesmo não se alcançando o acordo com a tal quitação geral, a empresa, quando condenada, só terá que desembolsar o dito “custo Brasil” depois de anos e, ainda assim, com os “descontos” conferidos pelo próprio Supremo, quando minimizou os efeitos dos juros e da correção monetária pela inadimplência – ADCs 58 e 59.

Ou seja, não se tem uma efetiva punição pelo descumprimento da lei trabalhista e até mesmo os juros e a correção monetária praticados são economicamente benéficos aos empregadores.

A naturalização da delinquência patronal

Todos esses elementos estão a serviço daquilo que Wilson Ramos Filho, o Xixo, já denominou de “delinquência patronal”, que tem gerado, conforme apontamentos de Valdete Souto Severo, Ranúlio Moreira e Jorge Luiz Souto Maior, a prática econômica do “dumping social” (SEVERO, Valdete Souto; MOREIRA, Ranúlio; SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Dumping social nas relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2012).

Fato é que convivemos, há muito, com o generalizado – e não ameaçado – desrespeito à legislação trabalhista e é este o principal fator de litigiosidade, que melhor se traduz como a única alternativa para que muitos trabalhadores e trabalhadoras no Brasil consigam fazer valer parte dos seus direitos e que são, cumpre lembrar, cada vez menores.

Importante também perceber que o empregador que se utiliza da estratégia de não pagar verbas rescisórias e que acaba obtendo efetivo proveito no acordo judicialmente formulado não se preocupa em pagar horas extras; adicional de insalubridade; supressão do intervalo etc., fazendo com que a lógica do desrespeito à legislação se reforce. A ausência de cartões de ponto – ou cartões de ponto fraudados, o que é ainda pior – e pagamento de salário “por fora” são práticas comuns de boa parte das empresas no Brasil, sem que se tenha a respeito qualquer sensação mínima de delinquência.

Adicione-se a isto a situação dos muitos “empreendedores” que resolvem dobrar a aposta e simplesmente resolvem não efetivar a anotação da Carteira de Trabalho de seus empregados, indo ao ponto, inclusive, da utilização de subterfúgios jurídicos para afastar fraudulentamente a relação de emprego, como, por exemplo, a transformação do trabalhador ou da trabalhadora em PJ, com o objetivo assumido de passar por cima das obrigações trabalhistas na sua totalidade.

Esta ilegalidade é naturalizada, sobretudo, em certos nichos de mercado, onde as oportunidades de trabalho estão nas mãos de poucas empresas, como nos setores dos empreendimentos jornalísticos, da mercantilização da saúde, da advocacia empresarial e da comercialização de imóveis, pois o trabalhador ou a trabalhadora que buscar os seus direitos se vê facilmente integrado a uma lista suja – real, ou imaginária – que impede a sua reinserção em trabalhos naqueles setores.

O discurso falseado do empreendedorismo

Também há que se recordar da grande campanha em torno do discurso do empreendedorismo, que tenta fazer acreditar a pessoas que não detêm quaisquer meios de produção e que apenas empenham a sua força de trabalho no contexto de empreendimento alheio que elas são “empreendedoras de si mesmas”.

Este discurso valoriza a “liberdade”, a “autonomia” e, por consequência, cria um rebaixamento moral para o emprego e quanto mais se aproxima das ditas “profissões liberais”, historicamente destinadas a pessoas provenientes dos segmentos mais abastados e “tradicionais” da sociedade, mais este sentimento anti-emprego, ou de trabalhador(a) senhor(a) de si mesmo(a), se reforça, ainda que, em concreto, tais profissionais já tenham, há muito, se proletarizado. Não são poucos(as) os(as) médicos(as) e os(as) advogados(as), para ficar nestes dois exemplos, que vendem, em condições bastante precárias e com baixa remuneração, seu trabalho para grandes escritórios, hospitais e planos de saúde.

O curioso é que o sentimento anti-emprego, que leva a certo orgulho do ato de “não bater cartão”, não é dissociado da defesa de direitos. Muitos adeptos dessa convicção ideologicamente induzida não querem ser considerados(as) empregados(as), mas não abrem mão de salários, férias, descansos e tudo o mais que puderem ter.

Até mesmo os políticos, que, na sua maior parte, provêm inclusive da classe empresarial e que, por consequência, pronunciam-se, veementemente, contra os direitos trabalhistas, quando se colocam na condição de “trabalhadores” não abrem mão de seus salários (alguns até pegam um pouco daqueles que integram o seu gabinete), de aposentadoria (após dois mandatos), de feriados, de recessos etc.

Aliás, pode-se perceber o reflexo dessa contradição também na postura e nas falas de Ministros do STF. A Ministra Cármen Lúcia, que, inclusive, denuncia que pouco sabia a respeito do tema que se estava julgando quando afirmou que no setor privado as dispensas de trabalhadores dependem da comprovação de justa causa, buscou um argumento para naturalizar a perda da condição de trabalhadores(as) estáveis dos(as) empregados(as) do Banco do Brasil S/A ao dizer que “ninguém mais tem estabilidade hoje em dia”, só que ela própria possui a estabilidade (até mais, pois possui vitaliciedade) e jamais, se indagada a respeito, diria que abriria mão dessa condição jurídica e menos ainda da sua aposentadoria com vencimentos integrais. Ou seja: como revela o ditado popular, “pimenta nos olhos dos outros é refresco”.

Fato é que se mostram bastante repugnantes as naturalizações do sofrimento da classe trabalhadora e da precarização das condições de trabalho vindas de gente historicamente privilegiada, economicamente abastada e repleta de direitos.

Subcapitalização e precarização – a realidade empresarial brasileira

Também é preciso acrescentar que o capitalismo nacional não é bem um primor no quesito distribuição da riqueza. De fato, 1% da população detém 63% da riqueza nacional.

Neste contexto de acumulação, muitos daqueles que, atraídos pelo discurso dominante, se colocam na condição de empresários e se valem da contratação de pessoas para a realização dos serviços necessários ao empreendimento, são completamente desprovidos de capital e se integram, na verdade, há um processo de endividamento progressivo. Mais de 30% do custo mensal das pequenas empresas é destinado ao pagamento de dívidas. E boa parte sequer consegue adimplir os compromissos assumidos.

Em números mais precisos, em agosto de 2023 eram 5,8 milhões de micro e pequenas empresas endividadas. E estas entidades, segundo o SEBRAE, constituem 99% do número total de empresas no Brasil.

Com isto, o que se tem por efeito é uma notória subcapitalização do capitalismo nacional, gerando uma generalizada precarização em vários setores da atividade econômica brasileira e, por consequência óbvia, também das relações de trabalho, pois os dados apontam que de cada 10 empregos, sete são “criados” – conforme o linguajar economicista – por micro e pequenas empresas.

Precarização generalizada – a realidade dos empregos no Brasil

Se 7 a cada 10 empregos no Brasil são formalizados por micro e pequenas empresas e se, segundo o IBGE, 80% dessas empresas fecham antes de 1 ano de vida, é possível apontar para uma reduzida capitalização e um vida efêmera da maior parte dos empregadores brasileiros. E se esta é uma realidade dos empregadores, imagine-se, então, o que se dá com os trabalhadores e as trabalhadoras que, para sobreviver, dependem da venda de sua força de trabalho para estes empregadores.

Não é um acaso, portanto, o fato de que os empregos no Brasil não duram, em média, mais do que dois anos.

E não é por acaso, também, que a taxa de rotatividade da mão de obra no Brasil é uma das maiores, se não a maior, do mundo, girando em torno de 50%. Só para se ter um ideia, em 2023, 23.157.812 pessoas foram integradas a uma relação de emprego, mas, no mesmo período 21.774.214 pessoas foram demitidas, ou pediram demissão.

Alie-se a isto a situação de que a maior parte da classe trabalhadora, inserida na População Economicamente Ativa” integrada à “Força de Trabalho” considerada “Ocupada”, 96.653 milhões, não está propriamente inserida em uma relação de emprego, formal e regularmente estabelecida. Segundo dados do IBGE, até agosto de 2023, havia, no Brasil, 38.933 milhões de trabalhadores atuando na informalidade, além de 13.263 milhões, considerados trabalhadores sem carteira assinada, enquanto que, com carteira assinada, no mesmo mês, no setor privado, eram apenas 37.361 milhões.

Some-se a estes trabalhadores e trabalhadoras em condições de trabalho precárias, mais 5.814 milhões de trabalhadoras domésticas, cuja atividade é historicamente marcada pela supressão de direitos, tanto que deste total apenas 1.435 milhões trabalham com carteira assinada – o que não é garantia alguma de respeito à totalidade de direitos –, resultando na monta de 4.379 milhões de trabalhadoras domésticas que atuam sem carteira assinada.

Deve-se considerar, também, que, como já dito, o registro em carteira não é sinônimo de garantia de direitos, até porque do total de trabalhadores e trabalhadoras nesta condição cerca de 1/4 estão vinculados a uma relação de emprego terceirizada, valendo o registro de que cerca de 80% das empresas possuem algum tipo de relação de trabalho terceirizado. E, como se sabe, a terceirização potencializa o estado de sujeição do trabalhador e da trabalhadora, favorecendo as práticas de supressão de direitos.

Adicione-se a todos estes, os trabalhadores e trabalhadoras engajados por uma contratação temporária – em 2023 foram 2,4 milhões de contratações neste setor. O único dado positivo de todo este relato para a classe trabalhadora é que ainda assim, em 2022, somavam-se 9,1 milhões de trabalhadores e trabalhadoras associados a algum sindicato, o que não é pouco se considerarmos unicamente o universo de trabalhadores e trabalhadoras com registo (49.578 milhões, sendo 37.361 milhões, no setor privado, e 12.217 milhões, no setor público), mesmo que a grande mídia crie sempre um artifício para falar que é baixa a taxa de sindicalização no Brasil.

As condições precárias e o sofrimento no trabalho

A precarização não pode ser vista apenas desse ponto de vista da fragilização potencial da efetividade dos direitos. A precarização, aliada a esta sensação de fragilização da classe trabalhadora e da majoração do poder dos empregadores, gera muitos outros efeitos extremante graves para os trabalhadores e as trabalhadoras e até mesmo para a economia em geral.

O resultado de tudo isso e que também está relacionado à “reforma” trabalhista concluída em 2017, que dificultou sobremaneira a atuação dos sindicatos, obstou o acesso à justiça, implementou medidas de retração de direitos, foi o de que os empregos se tornaram cada vez mais juridicamente inseguros e constituídos por um ambiente opressor e moralmente tóxico para trabalhadoras e trabalhadores.

Desse modo se chegou, ao final de 2023, a um recorde de denúncias de assédio moral no trabalho, que tem como causas principais o desemprego estrutural e a insegurança no emprego, que geram a impossibilidade concreta de reagir a desmandos e a exigências de maior produtividade estimulada por uma lógica de concorrência interna, dado o medo de colocar em risco o próprio emprego.

Com isto, o que resta muitas vezes à trabalhadora e ao trabalhador é a “opção” de suportar a violência, até ficar doente. Daí a razão pela qual os afastamentos por doença no trabalho só têm aumentado nos últimos anos, o que, também, gera alarde no setor empresarial, mas novamente apenas no aspecto dos impactos na produtividade, obviamente. Buscam atacar o efeito, mas nunca se enxergam como a causa do problema.

E não é só isto. Também, como resultado da mesma equação, o que se tem constatado é o aumento das mortes decorrentes de acidentes do trabalho, considerando unicamente os trabalhadores e trabalhadoras com carteira assinada. Noticia-se que, em 2020, 1.866 pessoas morreram nessas condições e que, em 2021, foram 2.538 mortes, um aumento de 36% e que pode ser representado com a contagem de 7 mortes por dia.

É bom saber que esses dados todos consideram apenas as relações jurídicas de trabalho formalmente regularizadas e partem das informações que chegam aos órgãos institucionalizados. Há, mesmo nestas relações, uma realidade marcada pela subnotificação, ou seja, a prática generalizada de não assumir a doença ou o sinistro como um acidente do trabalho.

E cumpre consignar também que, de um jeito ou de outro, integrando ou não a configuração jurídica de um acidente do trabalho, os afastamentos provocados pela precarização – e não por situações de privilégio, como querem argumentar os adeptos da privatização da Previdência – gera custo para a Seguridade Social – e abalo na economia do país. Em 2023, o número da concessão de benefícios cresceu 12%, em comparação com 2022. Em acidentes do trabalho especificamente, foram gastos 120 bilhões em uma década, até 202). E isto está longe de representar uma proteção adequada e devida da classe trabalhadora, pois, para segurar os gastos, a Previdência Social tem se esmerado na prática de negação dos benefícios, forçando os beneficiários à judicialização.

São estes empregos sufocantes, com baixa remuneração e sem garantia de direitos (e baixa expectativa de buscá-los judicialmente), que, aliás, explicam em parte o fato de que, em 2022, metade das cessações das relações de emprego tenha se dado por pedido de demissão, o que gera alarde também entre economistas, pesando sobre o aspecto da produtividade das empresas, obviamente (Brasil bate recorde de pedidos de demissão em 12 meses, aponta pesquisa (infomoney.com.brBrasil registra mais de 4,6 MILHÕES de demissões voluntárias em 2022 – Brasil123).

A situação da classe trabalhadora no Brasil está longe de apresentar, portanto, como privilegiada, conforme sugerem as falas de alguns Ministros do STF. Muito ao contrário, o que se tem é uma situação de precarização generalizada, de sofrimento e, por consequência, de uma quase total supressão dos já cada vez menos abrangentes direitos.

E, contrariamente, ao pressuposto adotado no julgamento do RE 688.267, a dispensa sem necessidade de motivação, ou, como gostam de dizer alguns juristas trabalhistas, o “poder potestativo de resilição contratual do empregador” e a terceirização (também acolhida e até ampliada pelo STF na ADPF 324 – Tema 725), apenas potencializam a conflituosidade, vez que são causas da fragilização da efetividade dos direitos.

A baixa conflituosidade ou conflituosidade contida

Considerando isto e tendo em conta os dados já devidamente integralizados, do ano de 2022, a constatação inevitável é a de que, muito ao contrário do que uma alta conflituosidade, o que se tem na realidade brasileira é uma conflituosidade bastante restrita, ainda mais se considerada a já mencionada prática reiterada (fruto de estratégia empresarial, ou de descapitalização ou preconceito cultural mesmo, reflexo ainda do escravismo) de descumprimento da legislação do trabalho.

Os números revelam que, em 2022, no Brasil, a partir de cálculo extremamente conservador, eram cerca de 55.450 milhões de trabalhadores e trabalhadoras em situação explícita de precarização:

(i) 18 milhões de terceirizados (cerca de metade dos 36 milhões com carteira assinada); (ii) 19.550 millhões, entre os 39 milhões na informalidade, que foram submetidos a algum tipo de fraude para rechaço da relação de emprego e, por consequência, dos direitos trabalhistas. Segundo o IBGE, do total de “informais”, eram: 13.236 milhões sem carteira assinada; 4.342 milhões de domésticas sem carteira assinada; e 2.972 milhões atuando no setor público sem carteira assinada.
(iii) 18 milhões com carteira assinada, que também devem ser considerados em vulnerabilidade, por conta de todos os aspectos acima enunciados. A respeito, importa considerar, também, que, em 2022, foram realizadas 22,64 milhões de novas contratações e 20,61 milhões de demissões.

Então, potencialmente, havia pelo menos 55 milhões de trabalhadoras e trabalhadores com boas razões para defender os seus direitos pela via da judicialização. No entanto, foram interpostas naquele anos apenas 1.636.707 reclamações trabalhistas. Ou seja, somente 2,97% dos trabalhadores e trabalhadoras em situação de precarização buscaram seus direitos na Justiça, o que está longe de se configurar, portanto, como uma alta conflituosidade.

A situação concreta, inclusive, contrasta com o pressuposto estabelecido pelo Min. Barroso de que, no Brasil, só se sabe o custo de uma relação de emprego depois de terminado o processo. Se o que sugere o Ministro Barroso, sem qualquer apoio em fatos extraídos da realidade nacional, fosse real, teriam sido, no mínimo, 20,61 milhões de novas reclamações trabalhistas, em 2022. No entanto, repita-se, foram meramente 1.636.707.

Visualizar este número de reclamações, para o efeito de dizer se é um número elevado, quando tomado em conta os dados verificáveis em outros países, não é parâmetro para qualquer análise minimamente séria, pois a comparação com outras realidades sociais e econômicas exige um estudo por demais complexo e que exigiria anos para ser concluído e não me ocorre que já tenha sido feito.

O que se sabe, concretamente, é que o generalizado e reiterado descumprimento da legislação trabalhista e social é uma realidade nacional e isto tanto mais se comprova quando se constata o processo histórico de acumulação de riquezas existente no país que também está baseado na desconsideração do custo social. O desrespeito estratégico da legislação social faz com que enorme parcela da riqueza (ou reprodução do capital) realizada no processo de produção deixe de ser direcionada à classe trabalhadora ou transferida para os projetos de Seguridade Social, ficando, por conseguinte – já que não tem como simplesmente sumir – nas mãos dos próprios capitalistas.

Há muito se deveria saber que os direitos trabalhistas e sociais, além de uma ferramenta necessária para a preservação da integridade de quem vive da venda da força de trabalho, constituem, igualmente, fator relevante de distribuição da riqueza socialmente produzida.

O benefício das grandes empresas com a generalização da precarização

O resultado desse cenário de desconstrução quase total da proteção jurídica trabalhista e do projeto constitucional de Estado Social, promovido, sobretudo, de 2017 em diante, tem sido não apenas a generalização da precarização das condições trabalho, como demonstrado, mas, sobretudo, o aumento vertiginoso do lucro das empresas e o empobrecimento da classe trabalhadora. Vide aqui, a propósito, o gráfico da evolução da participação da renda dos trabalhadores e trabalhadoras e do lucro das empresas no PIB nacional, de 2017 a 2022 (Fonte: Salários perdem espaço na economia e caem para menos de 40% do PIB, menor nível em 19 anos (globo.com)).

Poder-se-ia avaliar haver alguma contradição entre o pressuposto estabelecido na compreensão do processo, que tem sido, no caso brasileiro, progressivo, de acumulação e a informação antes apresentada de que 70% dos empregos são oferecidos por micro e pequenas empresas. A partir desse último dado, o generalizado desrespeito da legislação não seria fator de acumulação, vez que, como se sabe, os lucros efetivos se produzem nas grandes empresas, restando às micro e pequenas empresas, que, de fato, empregam, uma constância de prejuízos.

Ocorre que as atividades realizadas por micro e pequenas empresas estão, na sua grande maioria, ligadas ao processo produtivo (industrial ou de circulação de mercadorias) das grandes empreendimentos e, no geral, submetidas a procedimentos concorrenciais, são obrigadas a seguir, os padrões de custo impostos pelas grandes empresas, para a realização de suas atividades, o que, inclusive, constitui novo fator de descumprimento da legislação social, pois o preço pago pelos serviços prestados ou atividade realizada é insuficiente para arcar com o custo total dessa legislação. Em 25 anos de atuação como juiz de primeiro grau, foi possível verificar que uma das maiores dificuldades financeiras de micro e pequenas empresas era o baixo valor que as grandes empresas lhes pagavam pelo serviço executado.

As grandes empresas pulverizaram suas fábricas e também trouxeram, para dentro delas, pequenas empresas, tidas por “parceiras”, que se responsabilizaram por parte do processo produtivo, desde que, por óbvio, não afeito à transferência de tecnologia.

Certo é que o mais-valor produzido no âmbito das micro e pequenas empresas só se realiza, efetivamente, quando integrado à conclusão do produto final e de sua comercialização. O menor custo dessa autêntica “terceirização para fora”, como denominado pelo professor Márcio Túlio Viana, baseada na redução dos salários e no subsequente rebaixamento das repercussões sociais incidentes sobre os salários, favorece o processo de acumulação e de desrespeito da rede de proteção jurídica do trabalho (Uber e Audi usaram créditos de carbono de área com trabalho escravo (reporterbrasil.org.br).

Com a pulverização as grandes empresas, inclusive, conseguem se desviar do cumprimento das conquistas históricas específicas, consignadas em normas coletivas e até em regulamentos internos, auferidas por categorias de trabalhadores que contavam com a força do elevado número de integrantes.

As falácias do discurso do “custo Brasil” e as opressões que visa encobrir

Esta reestruturação produtiva, que, portanto, não tem nada de natural, ou seja, que não se trata de um efeito inevitável da evolução tecnológica e sim de uma estratégia de redução de custos e de fragilização da organização sindical da classe trabalhadora, está na base do processo de acumulação e do desrespeito generalizado dos direitos trabalhistas e sociais, sobretudo, nas regiões do capitalismo periférico, ou, como há muito já dizia, Ruy Mauro Marini, “capitalismo dependente”, vez que, no processo mundial de exploração do trabalho engendrado pelas grandes empresas – valendo lembrar que não são muitas as empresas (e instituições financeiras) que dominam a economia mundial – estabelecem condicionantes para a integração dos países “em desenvolvimento” ao cenário produtivo mundial, dentre elas um padrão de relações de trabalho na qual a exploração do trabalho se dê com custo abaixo da linha do valor necessário à sobrevivência e reprodução da própria força do trabalho.

A origem política dessa estruturação econômica – que contraria a tese da inexorabilidade determinada pela evolução tecnológica – pode ser constatada nos debates realizados e nos documentos elaborados no Consenso de Washington, de 1989, dos quais resultaram explícitas essas condicionantes, que constituem, inclusive, a base do modelo produtivo que se convencionou chamar de neoliberalismo.

Assim, quando uma legislação trabalhista e social, com sede constitucional, inclusive, pautada pela dignidade humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e pela melhoria da condição social dos trabalhadores e trabalhadoras, construída por conquistas da classe trabalhadora que se fizeram possíveis em contextos históricos específicos, destacando-se o pacto social firmado no processo de democratização do qual se originou a Constituição Federal cidadão de 1988, fixa um padrão de relação de trabalho em que o valor da exploração está acima dessa expectativa das grandes empresas que dominam a economia mundial, inicia-se um processo de desconstrução deste aparato jurídico, o que se tem feito, no caso brasileiro, por diversas formas.

Primeiro, pela fórmula já clássica, que tem base nas raízes escravocratas e coloniais que estruturaram e ainda estruturam a sociedade brasileira, da simples desconsideração da legislação trabalhista e social. Neste aspecto, é interessante perceber que o desrespeito à legislação do trabalho sequer se apresenta, em nosso meio social, como o cometimento de uma ilegalidade, que deve resultar em punição do agente, para o resgate da autoridade da ordem jurídica.

A nossa tradição toma a legislação como um entrave e, não raro, como “privilégio” indevido, fazendo com que o seu não cumprimento seja visto como uma autodefesa natural e até necessária.

O empregador que não cumpre a legislação não é tido como quem pratica uma ilegalidade ou como um delinquente, mesmo que assim aja de forma deliberada e reiterada.

Há uma espécie de naturalização do descumprimento da legislação porque quem são, afinal, os corpos a que tais normas jurídicas se destinam? Na maioria, pessoas negras que, segundo se instaurou no imaginário nacional, já auferiram muito ao deixarem de ser tidas juridicamente como escravizadas, constituindo, por consequência, um passo além do aceitável, que sejam também sujeitos de direitos sociais, com custos que impactem nas expectativas de lucro de quem se vale do seu trabalho para “empreender”.

Fato é que o escravismo e o machismo estruturantes da sociedade brasileira facilitam, sobremaneira, a tarefa de rebaixamento do custo social do trabalho na periferia do capital. Cabe verificar que a questão racial – e de gênero, atingindo, sobretudo, mulheres negras – está na base da maior precarização a que são submetidas as ditas profissões periféricas, tais como: domésticas; coletores de lixo; e terceirizadasentregadores. As pessoas negras são, também, a enorme maioria das pessoas submetidas a trabalho em condições ainda mais análogas à escravidão.

Importantíssimo lembrar que foram as pessoas negras as que mais morreram na pandemia e isto se deu, certamente, em razão das condições precarizadas de suas atividades profissionais. Estas pessoas, inclusive, constituem a maioria daquelas que exercem as atividades de enfermagem e que, com seu trabalho, salvaram vidas, tendo sido, ao mesmo tempo, as que mais se viram vítimas do contágio.

É inaceitável, pois, que Ministros do STF, para justificar ainda mais retração de direitos trabalhistas, se refiram a um suposto “custo Brasil”, neste país no qual a realidade da precarização do trabalho matou centenas de milhares de pessoas na pandemia e que, durante todo percurso histórico, tem matado e mutilado trabalhadores e trabalhadoras.

Pacificação e eliminação do conflito trabalhista por meio da naturalização da ilegalidade

A naturalização da ilegalidade trabalhista pode ser constatada também na postura das empresas em reclamações trabalhistas. Mesmo acusado de ter cometido atos ilegais, o empregador se apresenta na audiência com a indignação de quem é vítima de uma extorsão, o que não altera mesmo quando, após toda instrução processual, se confirmam as alegações do reclamante. Para o grosso do empresariado brasileiro, o descumprimento da legislação é culpa da própria lei, que foi longe demais, e a reclamação trabalhista movida não passa de uma ingratidão do trabalhador ou da trabalhadora. Neste contexto, cumpre ao juiz do trabalho nada além do que reconhecer suas dificuldades e atuar para convencer o reclamante ou a reclamante a receber o que está disposto a pagar – novamente, dentro da lógica de um favor. Não cabe ao Judiciário trabalhista, na sua visão, condená-lo por ato de ilegalidade e, menos ainda, impor-lhe algum tipo de penalidade. Afinal, segundo se apreendeu historicamente, as estruturas do Estado devem funcionar para atender os interesses da classe dominante e, assim, assumir o importante papel de reforçar a opressão.

É dessa maneira que causa repulsa aos setores ligados ao poder econômico todo ato institucional, provindo da Justiça do Trabalho, do Ministério Público do Trabalho ou do Ministério do Trabalho e Emprego, que busque fazer valer, em concreto, a letra fria da lei.

Nas relações de trabalho no Brasil, a aplicação da lei causa estranheza e repúdio veemente do setor empresarial. As condenações judiciais, sobretudo quando impõem repercussões ligadas à reparação de danos à pessoa do(a) trabalhador(a) ou ao projeto de Seguridade Social, são tomadas como um desvio de poder e consideradas uma verdadeira ofensa, sendo certo que para a formulação dessa desmoralização dos agentes públicos que agem fora do “script”, o meio empresarial conta com o empenho das grandes empresas de jornalismo.

É assim que, toda vez que, no Brasil, decisões judiciais trabalhistas vislumbram a aplicação dos efeitos jurídicos pertinentes para coerção da ilegalidade, muito rapidamente a grande mídia renova seus históricos ataques à Justiça do Trabalho e à legislação do trabalho.

Isto ficou muito nítido por ocasião da “reforma” trabalhista, quando, pela abertura da janela histórica proporcionada pelo golpe político de 2016, se promoveu uma imensa alteração na legislação ordinária , para se alcançar a tão almejada, pelo setor empresarial, retração de direitos trabalhistas e a grande mídia se colocou em vigília para assediar juízes e juízas do trabalho, de modo a exigir que estes e estas profissionais aplicassem a dita “lei” sem qualquer interação com quaisquer outros dispositivos normativos e mesmo de forma contrária à Constituição Federal. De forma abrupta o meio empresarial passou a exigir uma postura legalista dos juízes, mas desde que a lei aplicada fosse a quem foi por eles encomendada em 2017.

Neste período, todas as decisões que, acolhendo os termos da dita lei, validavam situações de redução de direitos, sobretudo, por meio da premissa da prevalência do “negociado sobre o legislado”, ou impunham custos aos trabalhadores e trabalhadoras para (ou pelo) o acesso à justiça, eram, de imediato, noticiadas e naturalizadas, ao passo em que, outras que rejeitavam esses efeitos, expondo o quanto as normas editada no bojo da “reforma” contrariavam preceitos e princípios jurídicos, além de previsões explícitas da Constituição Federal, eram expostas a críticas severas, retroalimentando os ataques à Justiça do Trabalho.

Aliás, tudo que tenta sair do roteiro do ideal de uma exploração do trabalho pacificada, como se deu desde os primeiros atos da escravização europeia dos indígenas que habitavam na região territorial que, por imposição dos invasores, veio a se denominar Brasil, é imediatamente atacado. É assim, por exemplo, que a grande mídia e mesmo as instituições da República, incluindo o Judiciário Trabalhista, a Justiça Comum, o Ministério Público Estadual e as Polícias, se apresentam para coibir moral e juridicamente as greves, chegando às punições, inclusive com violência explícita (física), dos “grevistas”, tidos sempre, como baderneiros, arruaceiros e “comunistas” (neste último aspecto, novamente, a semelhança com o bolsonarismo não é mera coincidência).

O que os diversos argumentos pela pacificação social no plano trabalhista, estimulada também nas campanhas do “Conciliar é Legal”, visam consagrar é uma realidade em que a exploração do trabalho não seja percebida. Não à toa se traz, no discurso empresarial, a expressão “colaborador”, para se referir ao empregado e “parceria”, para denominar a relação de emprego.

O sonho dourado do empresariado, reproduzido nas apreensões do Ministro Barroso, é uma exploração do trabalho que se promova sem qualquer conflito, ou seja, uma exploração pacificada, na qual o trabalhador ou a trabalhadora que presta seus serviços sem a contrapartida de uma Carteira de Trabalho devidamente assinada, com baixa remuneração, sem o recebimento das horas extras habitualmente prestadas, sob assédio moral,  fora de todos os parâmetros ambientais de proteção de sua vida e de sua saúde e com o constante medo de ser “mandado embora”, ainda se veja como um ser privilegiado e se mostre grato ao bondoso e glorioso patrão.

Pacificação e eliminação do conflito por meio da extinção dos direitos

Quando o Ministro Barroso alude a uma “alta conflitualidade trabalhista” na realidade brasileira e ainda diz que isto se dá por conta do excesso da rede de proteção social, só se pode concluir que o que está em seu horizonte, como realidade ideal, é a do trabalhador e da trabalhadora sem qualquer direito trabalhista e que ainda se mostra grato ao patrão e também não dá trabalho às pessoas que atuam nas instituições estatais.

Se pensarmos bem, do ponto de vista matemático, a pretensão do Ministro tem algum sentido, pois quem não tem direito não tem o que reclamar na Justiça. Com esta estratégia da ausência total de direitos, os problemas estruturais do Judiciário estariam resolvidos.

Por época dos debates em Florença, no movimento pelo Acesso à Justiça organizado por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, o professor chileno, Brãnes, vislumbrando as reformas neoliberais promovidas em seu país, disse que as questões pertinentes ao acesso à justiça em seu país já estariam todas resolvida, vez que a maior parte da população, os pobres, simplesmente não tinha o que reivindicar perante à Justiça (Mauro Cappelletti, “O acesso à justiça e a função do jurista em nossa época”, Revista de Processo no. 61, p. 121).

Esta, ademais, é a realidade de diversas categorias de trabalhadores e trabalhadoras no Brasil que atuam em situação de total anomia trabalhista, como as diaristas, as vendedoras ambulantes, os estagiários, os entregadores e motoristas de aplicativos, e que, por consequência, não participam, ou participam de forma bastante reduzida, da totalidade de reclamantes perante a Justiça do Trabalho.

De novo a retórica do “excesso de proteção social”: o bolsonarismo jurídico trabalhista do STF

A falácia da retórica do excesso de proteção trabalhista só aumenta quando, mesmo depois de ter alcançado todas as alterações legislativas que pretendia, o setor econômico, não satisfeito com os altos lucros obtidos, continua falando em “custo Brasil” e em “velhice” da legislação trabalhista no Brasil.

A fala do Ministro Barroso sobre a “alta” conflitualidade trabalhista no Brasil, proferida na última sessão do Supremo, em 08 de fevereiro de 2024, é exatamente a mesma que expressou em maio de 2017, sendo que na ocasião, inclusive, já concluía que a causa seria o “excesso” de proteção social (veja aqui).

Com esteio em afirmações como esta, a “reforma” se fez, atendendo todas as reivindicações do setor empresarial. Assim, a precarização das relações de trabalho se configurou como uma realidade ainda mais ampliada, e, como se nada disso tivesse ocorrido, o Ministro repete o argumento!

É assustador, para dizer o mínimo, ver como a argumentação retórica, desvinculada de qualquer compromisso com o conhecimento, busca construir uma dimensão invertida da realidade. O interessante é que, neste aspecto, não diferem em nada as premissas bolsonaristas daquelas difundidas pelos ditos arautos da defesa da ciência e da democracia burguesas.

Tomando em conta o conteúdo das decisões e das manifestações proferidas, se está autorizado a dizer que os Ministros do STF, à exceção do Ministro Fachin, têm concebido uma espécie de “bolsonarismo jurídico trabalhista”, afinal, nenhum bolsonarista raiz, com mínimo de compreensão da realidade, exporá críticas às decisões do STF tomadas no plano da legislação do trabalho. Aliás, é bem isto o que se verifica, em concreto.

Repare-se, ademais, que as diversas decisões monocráticas proferidas no âmbito do STF, em Reclamações Constitucionais, afastando o reconhecimento da relação de emprego legitimamente pronunciado por juízes trabalhistas e indo até o ponto de declarar a Justiça Comum como a competente, inclusive, para dizer se relação de trabalho submetida à análise fático-jurídica é, ou não, uma relação de emprego, não são decisões baseadas em preceitos jurídicos. Na mesma linha vociferante da atuação bolsonarista, a sua única racionalidade é uma explícita manifestação de ódio à classe trabalhadora, à Justiça do Trabalho, ao Ministério Público do Trabalho e aos direitos trabalhistas.

A desconstrução articulada da rede de proteção jurídica trabalhista: a realidade

É bem verdade que, como já manifestado em outro texto, esta culpa não é apenas do Supremo, pois o desmonte da Constituição Federal de 1988, no aspecto da rede de proteção trabalhista e social, já vinha se pronunciando, desde a década de 90, pela atuação de diversas mãos e mentes ligadas à própria Justiça do Trabalho e à doutrina trabalhista.

Como dito no texto referido: “Incontáveis foram as teses jurídicas desenvolvidas na década de 90, sob influência neoliberal, preconizando a “flexibilização” do Direito do Trabalho, o que, em concreto, representava ler o texto constitucional reduzindo o seu projeto de melhoria da condição social dos trabalhadores e trabalhadoras, de modo a colocar os interesses econômicos imediatos das grandes empresas em primeiro plano. A jurisprudência trabalhista, por sua vez, acolheu muitas dessas teses, como, por exemplo, a do apagamento da proteção contra a dispensa arbitrária, a da ampliação da jornada reduzida em turnos ininterruptos de revezamento; a do negociado sobre o legislado em diversas matérias; a da abertura para a intermediação de mão de obra, resultando, em 1993, na Súmula 331 do TST; e, principalmente, a da limitação do direito de greve.” (Veja aqui).

No meio jurídico trabalhista nacional é usual não fazer referência ao instituto do ilícito trabalhista, preferindo-se falar em “inadimplemento contratual”, que, por certo, ameniza sobremaneira a postura de descumprir a legislação do trabalho, o que, como visto, se efetiva, não raro, de forma assumida, calculada e reiterada.

A obra jurídica anti-trabalhista produzida no campo do Direito do Trabalho, apoiada em supostas razões econômicas, não é um acaso. O sucesso dessas abordagens, desenvolvidas por personagens que Antonio Gramisci bem definiria como “intelectuais orgânicos da classe empresarial”, provém do empenho do poder econômico em incentivá-las e premiá-las com posições, financiamentos diversos e divulgação midiática.

Lembre-se que o esforço na construção das ideais que compõem o pensamento neoliberal dominante – que o vaidoso pretenso acadêmico, um autêntico escriba, pensa que é uma criação autônoma e inovadora – é resultado do compromisso, em torno de ações articuladas neste sentido, firmado por grandes empresas e governos dos Estados dominantes. Neste aspecto, não se pode olvidar o domínio que as grandes empresas possuem no cenário político mundial, vez que muitas delas detêm, inclusive, poder econômico superior ao de países da periferia do capital e o aspecto de que confluem no mesmo sentido os interesses das grandes empresas e dos Estados dominantes, onde, efetivamente, as grandes empresas se situam.

Esta comunhão de interesses, da qual resulta a fragilização do sistema de proteção social nos países periféricos, pode ser facilmente verificada no teor do Documento Técnico n. 319, do Banco Mundial: “O Setor Judiciário na América Latina e no Caribe – Elementos para Reforma”, no qual se preconizava, explicitamente, que: “A economia de mercado demanda um sistema jurídico eficaz para governos e o setor privado, visando solver os conflitos e organizar as relações sociais. Ao passo que os mercados se tornam mais abertos e abrangentes, e as transações mais complexas as instituições jurídicas formais e imparciais são de fundamental importância. Sem estas instituições, o desenvolvimento no setor privado e a modernização do setor público não será completo. Similarmente, estas instituições contribuem com a eficiência econômica e promovem o crescimento econômico, que por sua vez diminui a pobreza. A reforma do judiciário deve especialmente ser considerada em conjunto quando contemplada qualquer reforma legal, uma vez que sem um judiciário funcional, as leis não podem ser garantidas de forma eficaz. Como resultado, uma reforma racional do Judiciário pode ter um tremendo impacto no processo de modernização do Estado dando uma importante contribuição ao desenvolvimento global.”

O papel assumido pelo STF

Não admira, pois, que Ministros do STF, atendendo as diretrizes traçadas pelo Banco Mundial (das quais resultaram, inclusive, a criação do CNJ e a fixação de Metas de Gestão no Judiciário, juntamente com a implementação do PJe e mais, recentemente, a abertura para os julgamentos por Inteligência Artificial, já abertamente defendida pelo Ministro Barroso, por ser uma ferramenta de maior controle das decisões judiciais, já que substitui o falível e ideológico ser humano e porque permite a quem controla o procedimento de criação do conteúdo, sem assumir que o faz, se eximir pessoalmente de responsabilidade  e também não querendo se identificar com os “rejeitados” juristas trabalhistas, para que não se tornem alvos do ataque midiático e pressionados pelas forças do grande capital internacional, assumam, explicitamente, as dores do empresariado, como fundamento de decidir.

Ainda assim, não deixa de ser uma situação extremamente deprimente ver e ouvir a Suprema Corte nacional repercutindo toda a gama de valores ligados aos interesses restritos do capital, na sua ânsia de se reproduzir por meio da exploração do trabalho, valendo-se, para tanto, de uma tradição escravista e colonialista.

O Ministro Gilmar Mendes, por exemplo, deixa suas preocupações neste sentido muito explícitas quando, para demonstrar de onde extrai seu convencimento, relata o seu “vasto conhecimento” sobre as mudanças no processo de produção a partir do que pode observar em uma visita a uma fábrica em Sorocaba-SP. Além disso, menciona as conversas que teve com o proprietário do Banco Bradesco; o prefeito da cidade de Santos-SP e o governador do Estado do Espírito Santo.

A falácia da reestruturação produtiva

Com base nessa experiência visual e nestas conversas com pessoas diretamente ligadas aos interesses dominantes, O Ministro Gilmar Mendes se vê autorizado a dizer que o mundo do trabalho mudou e que não existe mais, como nunca existiu, qualquer diferença entre atividade-meio e atividade-fim, concluindo que o Direito do Trabalho, por isso, também precisa de mudanças, como se, em algum momento da sua formação histórica o Direito do Trabalho estivesse relacionado a um modelo de produção específico.

Só para se ter uma ideia, o fordismo é uma realidade produtiva do início do século XX e no século XIX ou até mesmo desde o final do século XVIII, no início da Revolução Industrial, as bases materiais do Direito do Trabalho já vinham sendo forjadas. Além disso, as primeiras normas estatais trabalhistas visavam, de modo direto, impedir que a intermediação de mão de obra (eufemisticamente, hoje, chamada de “terceirização”) representasse fator de irresponsabilidade do capital frente às formas precárias de exploração do trabalho.

Os direitos trabalhistas não estão, por conseguinte, atrelados ao fordismo, como sugere Gilmar Mendes, e, de fato, o Toyotismo, apelido dado ao processo de restruturação produtiva no qual se promoveu a pulverização das fábricas e o distanciamento artificializado do capital das diversas formas de exploração do trabalho, apenas reforçou a lógica da existência de normas protetivas da dignidade humana e da melhoria da condição social e econômica dos trabalhadores e trabalhadoras.

O que se aponta como causa de retração de direitos trabalhistas constitui, na verdade, apenas uma estratégia do capital para que uma versão falseada da realidade, como a que expôs o Ministro, seja disseminada e quanto melhor se o for por alguém ligados às estruturas do poder estatal.

Quanto à ofensa pessoal desferida contra os juízes do trabalho, aos quais, de forma jocosa, chamou de “juízes filósofos”, mais apropriado não dizer muito, pois a ofensa diz mais sobre o acusador do que sobre os acusados. De todo modo, utilizando-se da mesma “licença poética”, faz-se necessário dizer que é bem melhor ser “juiz filósofo” do que se apresentar, explicitamente, como “juiz economicista”…

A falácia da evolução tecnológica

E o que foi dito a respeito da fala do presidente do Banco Bradesco, de duas, uma: ou o presidente mentiu para o Ministro; ou o Ministro não repercutiu de forma completamente fidedigna o que lhe foi dito pelo tal Dr. Trabuco de que, em função da “evolução tecnológica, hoje, o banco possui mais “funcionários na área de segurança” do que “na atividade propriamente fim do banco”.

Ora, os serviços de vigilância dos bancos, como se sabe, em razão do lobby político destas entidades para restringirem a categoria dos bancários e, por consequência, o número de empregados com jornada reduzida de 06 horas, já foram, desde a década de 80, terceirizados. Então, os bancos não possuem empregados atuando neste setor, a não que tais empresas de vigilância, como se supunha, sejam de propriedade dos próprios bancos.

De todo modo, se os bancos têm bem menos bancários, em virtude da automação, isto não significa que os bancários que subsistem tenham que ter piores condições de trabalho e, menos ainda, que isto se imponha aos que, no processo de terceirização, prestam serviços aos bancos.

Se a evolução tecnológica diminui empregos, disto não se conclui que quem está empregado tenha que se submeter a piores condições de trabalho. E este debate tem ainda menos sentido, quando se sabe que, malgrado a evolução tecnológica e, até mesmo, por conta dela, as jornadas de trabalho só têm aumentado e causado ainda maiores transtornos no trabalho, sobretudo quando realizado em casa. Além disso, a jornada de trabalho no Brasil é a 10ª maior do mundo, isto sem considerar a prática das horas extras – quase sempre não remuneradas, tanto que o pleito de recebimento desse trabalho foi o campeão na Justiça do Trabalho, no 1º semestre de 2023.

Não bastasse tudo isso, é fundamental recordar – porque, afinal, não passou tanto tempo assim – que a essencialidade do trabalho foi atestada e amplamente reconhecida durante a pandemia, dada à depressão econômica provocada pelo isolamento social. Como expresso no texto publicado em 21 de abril de 2020: “O isolamento social implementado mundialmente como modo de contenção do contágio da doença COVID-19 permitiu que se percebesse: (a) a centralidade do trabalho: sem o trabalho a economia não subsiste. Não há tino para os negócios, não há competência gerencial, não há inteligência empreendedora e não há astúcia em investimentos e comércio que, de forma generalizada, façam a economia girar sem envolver o trabalho;

(b) que o trabalho é uma atividade humana: por mais que tantos, durante muito tempo, tenham tentado, como forma de desvalorização da força de trabalho, dizer que o trabalho acabou ou que o trabalho humano foi suprimido pelas novas tecnologias, resta, agora, evidente que o trabalho continua central na economia capitalista e que o trabalho é uma atividade dos seres humanos, dos trabalhadores e das trabalhadoras; (c) que a riqueza advém essencial e estruturalmente do trabalho: o empobrecimento generalizado pela supressão do trabalho é a demonstração cabal de que a riqueza social provém do trabalho;” (Veja aqui).

Desse modo, agora, poucos anos depois do período mais trágico da pandemia, no qual milhares de vidas foram perdidas, constitui um caso sério de perda de memória recente ou de memória seletiva, continuar dizendo que o trabalho acabou e que o que importa mesmo é favorecer os interesses das empresas que dominam o conhecimento tecnológico.

O mínimo que se podia esperar daqueles e daquelas que se pronunciam a favor e em nome do conhecimento, da ciência, contra o negacionismo e pela defesa da ordem democrática é que se mantivessem agindo na direção da concretização do agradecimento que, por ocasião da pandemia, se fez publicamente às trabalhadoras e trabalhadores que, pelo fato de suas profissões estarem atreladas a atividades essenciais à preservação da vida, continuaram trabalhando, pondo em risco a própria vida (e a de seus familiares), para preservar a de milhões de brasileiros e brasileiras, estando entre eles: enfermeiras(os); médicas(os); entregadoras(es) em geral, sobretudo por intermédio de aplicativos; frentistas; porteiras(os) de edifícios; atendentes em farmácias, hospitais, padarias e supermercados; jornalistas; faxineiras(os); motoristas; carregadoras(es); coletoras(es) de lixo; trabalhadoras(es) rurais; cuidadoras(es) etc.

É inconcebível – ainda mais se lembrarmos que neste período também se fez loas ao conhecimento e à ciência – que se mantenham ainda hoje os argumentos economicistas contrários à vida e à melhoria da condição social econômica da classe trabalhadora expressos antes da pandemia, mesmo depois do duro aprendizado obtido durante aquele período – que, de fato, ainda nem acabou, real e oficialmente.

A razão disso talvez seja o fato de que o maior percentual das vidas e dos sofrimentos correlatos se verificou entre as pessoas da classe trabalhadora residentes das periferias das cidades e, sobretudo, negras. Daí porque a classe dominante parece mesmo não ter mesmo muitos motivos para alterar suas convicções, até porque, em certo sentido, o processo de acumulação mantido naquele período tem favorecido os seus empreendimentos neste momento posterior à pandemia.

Já as avaliações do prefeito da cidade de Santos acerca da eventual concessão de privilégios tributários a empresas que atuam na área portuária, no fundo, nem reforçam o argumento do Ministro, muito pelo contrário, vez que apontam a necessidade de uma regulação da produção que vislumbre o interesse da coletividade.

O acolhimento do desrespeito à condição humana do(a) trabalhador(a) como fator essencial da eficiência produtiva

E quanto aos reclamos do governador do Espírito Santo, também o relato é um amontoado de inconsistências, além do aspecto mais grave da consideração das “dores” do governador como um fundamento para justificar a retração de uma garantia jurídica trabalhista. Segundo a lógica estabelecida na manifestação, a fala do governador foi uma oportunidade para expressar um ataque à atuação do Ministério Público do Trabalho e do TRT17, que teriam fixado uma jurisprudência na região acerca de uma estabilidade no emprego e, por isso, “quem vai querer se instalar no Espírito Santo”?

Primeiro, não consta das Súmulas do referido Tribunal qualquer enunciado que se refira à garantia ou estabilidade no emprego e eventual decisão de uma Turma, em dada composição, fixando o direito à reintegração do empregado, em caso de dispensa arbitrária ou discriminatória, não representa um entendimento do Tribunal.

Segundo, as decisões judiciais dos Tribunais estão submetidas à revisão pelo TST, de modo que não há, tecnicamente, um Direito do Trabalho estadual na República Federativa do Brasil. E, terceiro, se assim fosse, ou seja, se houvesse esta compreensão do TRT17 de que as dispensas arbitrárias estariam vedadas, isto apenas representaria uma demonstração de apreço e respeito aos  termos expressos do inciso I, do art. 7º da Constituição Federal e, assim, não mereceria crítica pública do Ministro, ainda mais para o agrado de um governador, e sim elogio, já que o Supremo é o guardião da Constituição Federal.

Mas há algo ainda mais grave embutido no argumento: a suposição de que a eficiência econômica depende da possibilidade de o empregador dispensar, a seu bel prazer, os empregados. Pelo menos, no Brasil, na proposição do governador acolhida pelo Ministro, nenhum empregador se instaura em localidade onde não possa exercer este poder de conduzir um trabalhador ou uma trabalhadora ao desemprego.

E o interessante é que esta possibilidade foi, durante todo o julgamento, relacionada à alta conflitualidade da Justiça do Trabalho. Ora, é exatamente a alta rotatividade da mão de obra, fruto da denúncia vazia para a cessação da relação de emprego, que, como visto, tem se constituído, ao mesmo tempo, fator de inefetividade da legislação e, por consequência, causa essencial da propositura de reclamações trabalhistas. Em um regime de estabilidade no emprego, ainda que mitigado, a tendência é uma maior defesa do respeito aos direitos, ou seja, menor conflituosidade, com repercussão, inclusive, na produtividade e na eficiência. A precarização só interessa dentro de uma lógica de exploração predatória, típica do extrativismo. E foi isto afinal, um capitalismo predatório e depreciativo da condição humana, que se estabeleceu como o parâmetro ideal nas manifestações dos Ministros.

Neste aspecto, aliás, o Ministro Gilmar foi interrompido pelo Ministro Alexandre de Moraes, para reforçar o argumento, expressando a sua “grande preocupação”, que, evidente, é com os interesses do capital. Disse o Ministro:

“a minha grande preocupação”, além do disposto no art. 173 da CF, é que “não haverá uma demissão não judicializada, todas serão judicializadas, alegando, exatamente, desvio de finalidade. Ora, o que motivou vai se alegar desvio, mesmo que não haja e vai ocorrer como ocorreu no presente caso: o juiz manda voltar. Daí volta e fica um ano. Daí o Tribunal manda sair. O administrador, o gestor, que pretender de forma absolutamente lícita reestruturar determinado setor da sua empresa, ele não vai conseguir mais”.

O curioso é que o caso concreto dizia respeito às empresas públicas, mas o Ministro falou do gestor e “sua empresa”, estendendo, pois, suas preocupações, às empresas do setor privado.

O apagamento dos trabalhadores e das trabalhadoras

Em nenhuma das falas manifestadas na sessão do Supremo no julgamento em comento a perspectiva dos trabalhadores e trabalhadoras foi considerada. Foi como se não existissem. No caso concreto, inclusive, prevaleceu o argumento de que o Banco do Brasil não poderia ter efetuado a dispensa do reclamante de forma discricionária, mas o que esta dispensa, considerada ilegal pelo próprio Supremo, representou na vida daquela pessoa, cujo nome não foi pronunciado em nenhum momento, não importou em nada.

E, de fato, nem era apenas um reclamante. Eram o João Erivan Nogueira de Aquino e outros  04 (quatro), cujos nomes não foi possível localizar. Essas pessoas, que ingressaram no Banco do Brasil, após aprovação em concurso público, foram dispensadas por “cartas”, em 1997. Propuseram uma reclamação trabalhista, em 1998 (processo n. 0508434-91.1998.5.07.5555), e, 16 anos depois, obtiveram a confirmação judicial de que o ato do banco foi ilegal, mas não poderão reverter a injustiça sofrida e todos os eventuais danos que experimentaram nesses anos porque os Ministros do Supremo não tiveram olhos para as suas existências reais e, assim, por um duplo carpado, tornaram lícita a ilegalidade, dizendo que apenas daquele dia (08/02/24) em diante é que a discricionariedade para as dispensas de empregados de empresas públicas seria banida, tudo sob o argumento de que não queriam “estimular” conflitos, ou seja, que não queriam que outros trabalhadores e trabalhadoras, vítimas da mesma ilegalidade, buscassem os seus direitos.

Afinal, o que os Ministros querem é baixar os números dos processos em curso, mesmo que, para isto, se estabeleça uma realidade em que os trabalhadores e trabalhadoras não tenham direitos para reclamar ou possibilidades concretas de fazê-lo.

E vale reparar que mesmo declarando que a dispensa do empregado concursado de empresa pública não pode ser realizada de forma arbitrária, os Ministros fizeram questão de deixar consignado que não estavam criando uma garantia de emprego para os trabalhadores, mas tão somente um mecanismo para impedir atos de impessoalidade do gestor. A importância da preservação do emprego e a visualização das aflições de quem perde um emprego passaram longe das preocupações dos Ministros. Barroso, inclusive, fez questão de dizer que bastaria uma “fundamentação singela” para que a dispensa fosse concluída. Na verdade, quase que pediram desculpas pelo fato de estarem fixando este limitador e reforçando sempre que esta condição não se aplicaria ao setor privado, ainda que, como dito, o inciso I do art. 7º da Constituição Federal diga exatamente o inverso, na linha, inclusive, da Convenção 158 da OIT, ratificada por diversos países mundo afora, sobretudo no capitalismo central.

O vale-tudo pelo interesse econômico

Para rejeitar a necessidade de se estabelecer um procedimento administrativo para a devida apuração das razões da cessação do vínculo de emprego, conforme proposto no voto solitário do Ministro Fachin, o Ministro Barroso chegou a dizer que não seria necessário estabelecer esta condição porque muitas empresas públicas, “pelo menos as sérias”, já possuem previsão neste sentido em seus Regulamentos Internos.

O procedimento administrativo foi reconhecido como um fator de seriedade, mas o Supremo, de forma convicta, optou por corroborar os atos e interesses das empresas não sérias.

Como isto é possível? Simples. É que, como se extrai do conteúdo apresentado ao longo do presente texto, o sonho Supremo, em termos de relações de trabalho, é a realidade de uma ordem jurídica que corrobore os interesses das empresas, sem a possibilidade de que sejam incomodadas com demandas relacionadas a Direitos Humanos, Direitos Sociais e Direitos Trabalhistas.

Uma realidade de: entregadores, sem direitos, que não reclamam; trabalhadores em condições análogas à escravidão, que não reclamam; trabalhadoras domésticas, na precariedade total, que não reclamam; trabalhadores rurais que trabalham até a exaustão e não reclamam; trabalhadoras(es) no setor terciário precário, sem direitos, que não reclamam; e atingir dados estatísticos no Judiciário de dar enveja ao “primeiro mundo”!

Outro ponto fixado como premissa da solução da desnecessidade de se exigir um procedimento administrativo prévio foi o do respeito à concorrência. Segundo os Ministros, tal exigência poderia gerar ineficiência empresarial e, assim, constituir fator que interviesse na concorrência das empresas públicas com o setor privado. Assim, em vez de se pensar na equiparação da atividade dos dois setores a partir do patamar da fixação de garantias mínimas de preservação da dignidade dos empregados e das empregadas em geral, o Supremo achou por bem fixar uma “isonomia” abaixo da linha mínima de proteção do emprego e de direitos fundamentais.

A Ministra Carmén Lúcia, inclusive, deixou escapar que seu fundamento contra a discricionariedade seria a figura jurídica do abuso de direito. Segundo explicitou, não se pode encerrar uma relação jurídica de forma abrupta, sem motivação, porque isto representa o cometimento de um abuso de direito.

Se lembrarmos que a noção de abuso do direito encerra o princípio de que o exercício de um direito subjetivo será considerado um ato ilícito quando não tiver objetivo outro que não o de causar prejuízo a outrem (LARENZ, Karl. Derecho Civil – parte general), a manifestação da Ministra está juridicamente correta. E nesta linha de raciocínio é preciso também trazer à tona o princípio da boa fé, pelo qual se extrai a lição de: “sempre que exista entre pessoas determinadas um nexo jurídico, estas estão obrigadas a não fraudar a confiança natural do outro” (LARENZ, Karl. Derecho Civil – parte general).

Essas figuras do abuso e da boa fé, inclusive, estão expressamente nos termos do atual Código Civil, art. 187, que deixa explícito que comete ato ilícito aquele que, independentemente de culpa, titular de um direito, “ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

Os fundamentos da decisão da Ministra Carmén Lúcia, para justificar a exigência de motivação para a cessação do vínculo de emprego no caso concreto, são, portanto, irretocáveis, mas são incompletos porque não foram ao ponto de se exigir, para a efetividade plena desses preceitos, a instauração de um procedimento prévio específico, com as garantias do contraditório e ampla defesa.

De todo modo, a argumentação resta como precedente importante para que se aplique, até por questão de isonomia concorrencial, às cessações de vínculo de emprego no setor privado, pois não se pode negar aos trabalhadores e trabalhadoras no setor privado a aplicação de preceitos de Direitos Fundamentais.

A concorrência, ademais, não pode ser fator de legitimação do rebaixamento da dignidade humana. Lembre-se que todo o aparato internacional de Direitos Humanos e de Direitos Sociais em geral foi implantado exatamente para impedir que a concorrência entre as empresas – e de seus respectivos países – conduzissem a humanidade à bancarrota. E a fixação desse patamar, inclusive, foi o resultado de todas as compreensões formuladas sobre as causas das duas guerras mundiais (1914-1919; 1939-1945).

É inconcebível, pois, que a Corte Suprema de um país promova uma autêntica ode à concorrência, como fator justificador da supressão de Direitos Humanos e Sociais!

Conclusão: bolsonarismo e terra arrasada

Compete, por fim, retomar o ponto da “excessiva conflituosidade” trabalhista referida pelos Ministros, porque há ainda pontos sensíveis a explicitar. Com efeito, o Ministro Gilmar Mendes, não satisfeito em ofender a honra dos juízes do trabalho, ainda acusou uma instituição da República, o Ministério Público do Trabalho, que possui uma enorme lista de serviços prestados à sociedade brasileira, de promover uma “judicialização excessiva”, em nome da “proteção de direitos difusos e coletivos”.

As ações do Ministério Público do Trabalho são, todas, precedidas de procedimentos de apuração e se voltam a situações de repercussão social relevante, como, por exemplo, agressões reiteradas e coletivas de direitos trabalhistas, fraudes trabalhistas e condições degradantes de trabalho. Refletem, na quase totalidade, graves agressões a direitos, nas quais, os trabalhadores e trabalhadoras não teriam condições materiais efetivas para buscar os seus direitos, como, por exemplo, as inúmeras situações em que se verifica o trabalho em condições análogas à escravidão. Assim, é amplamente irresponsável efetuar, em plena sessão do Supremo, esta tentativa de desacreditar o Ministério Público do Trabalho, sobretudo porque esta postura, representa um apoio e um autêntico estímulo aos agressores contumazes da legislação do trabalho. Trata-se, pois, de uma explícita aliança com todos aqueles que se valem do trabalho infantil, que submetem trabalhadoras e trabalhadores a condições degradantes, que cometem atos antissindicais, que fraudam a relação de emprego etc.

Na sequência, o Ministro Gilmar Mendes, desconsiderando, expressamente, o conteúdo do art. 170, inciso VIII, da Constituição Federal assumiu que não é possível atingir o pleno emprego e, mais, que a busca do emprego impede a evolução tecnológica: “Essa ideia do pleno emprego ou desse tipo de tutela infelizmente leva a isso”.

Então, para Gilmar Mendes, primeiro a Constituição pode ser solenemente ignorada porque, afinal, o preceito em questão seria coisa de país comunista; e, segundo, o que importa é atender os reclamos das empresas de tecnologia, mesmo que, para isto, se proceda um rebaixamento do patamar de civilização buscado pelos Direitos Sociais.

Só não lhe ocorreu que as empresas que operam com alta tecnologia são grandes empresas estrangeiras que não promovem a transferência de conhecimento e empregam muito poucas pessoas no Brasil. Então, usar a expertise dessas empresas para justificar o abandono do projeto social de integração pelo trabalho, sem colocar nada no lugar, equivale a vender o país, cuja inserção mundial está estritamente ligada à força de trabalho e ao patrimônio ambiental, a preço de banana, falando, ao mesmo tempo, em evolução tecnológica.

Os direitos trabalhistas, sociais e tributários, como diria até mesmo o prefeito de Santos, citado pelo Ministro, representam a contrapartida mínima para que a exploração do trabalho não faça do Brasil terra arrasada.

O pior é que, considerando o direcionamento que o Supremo resolveu dar às relações de trabalho no Brasil, estamos caminhando a passos largos nesta direção.

Mas, para muitas pessoas, com as quais os Ministros estão explicitamente dialogando quando realizam suas manifestações sobre questões trabalhistas em sessões do Supremo, não há muito com o que se preocupar, pois são, todos e todas, pessoas que não se incomodam muito com a destruição de uma região ou mesmo de um país, se os arranjos da destruição estiverem sendo benéficos para o processo de acumulação de riquezas que lhes permitam ir viver em outra parte do Globo quando bem quiserem. Muitas, inclusive, já não se preocupam nem mesmo com o futuro do planeta Terra, já que estão comprando terrenos na lua ou vislumbrando viagens interestelares.

É essa “gente rica”, expressamente referida pelo Ministro Gilmar e que enriquece com as ilegalidades cometidas pelos bancos, que não pode ser incomodada. Como disse: “Há muita gente rica hoje porque é acionista do Banco do Brasil, sócio, portanto, deste modelo e assim por diante. É preciso compreender um pouco as consequências desse modelo”.

E o Ministro Barroso, mesmo acolhendo a tese da fixação de certo limite para a cessão do vínculo nas relações de emprego com empresas públicas, tratou logo de tranquilizar o mercado: “a maneira como nós estamos votando majoritariamente tem as cautelas necessárias para prevenir os efeitos negativos”.

Jorge Luiz Souto Maior é professor de direito trabalhista na Faculdade de Direito da USP.

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