O Brasil possui um estoque de contencioso administrativo fiscal de R$1,2 trilhão. Está aqui uma alternativa razoável para desarmar a bomba fiscal deixada pelo governo Bolsonaro.
Ricardo Fagundes da Silveira, Márcio Calvet Neves e Wilson Luiz Müller
Fonte: GGN
Data original da publicação: 10/11/2022
Em sua campanha, Lula prometeu isentar do Imposto de Renda dos trabalhadores que ganham até R$ 5 mil, o bolsa família de R$ 600,00 e mais R$150,00 para cada criança abaixo de 6 anos de idade, além de aumentar o salário-mínimo acima da inflação.
Como viabilizar esses compromissos com os limites da proposta orçamentária enviada ao congresso pelo governo que se despede?
A resposta a esse desafio imediato não deve desviar a atenção para questões absolutamente necessárias e justas, como a tributação dos lucros e dividendos distribuídos, a extinção do benefício fiscal dos juros de capital próprio no imposto de renda das pessoas jurídicas, a tributação anual dos lucros de controladas no exterior detidas por pessoas físicas e a tributação da transferência indireta de ativos brasileiros no exterior.
Mas, além destas alternativas, há uma medida de grande relevância que pode produzir resultados imediatos e contribuir para o cumprimento das promessas do presidente eleito.
Trata-se da revisão de uma das maiores “boiadas” promovidas pelo governo Bolsonaro e criar, ao mesmo tempo, a possibilidade de trazer o ingresso de centenas de bilhões aos cofres do governo federal. Basta revogar o artigo 28º da Lei nº 13.988/2020 e abrir editais de negociação (transação tributária) para um contencioso fiscal administrativo que alcançou, em junho/2022, o estoque de R$1 trilhão de reais no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF e outros R$216 bilhões nas Delegacias de Julgamento da Receita Federal.
Poucos se deram conta, mas contrariando pareceres do Ministério Público Federal, do Ministério da Justiça (ocupado por Moro, à época), da Receita Federal e da Procuradoria da Fazenda Nacional, Bolsonaro sancionou o art. 28 da Lei 13.988/2020, fruto de uma emenda “jabuti” inserida na MP 899/2019. Por essa artimanha, já tentada sem êxito em todos os governos anteriores, o presidente contemplou interesses de grandes grupos econômicos e acabou com o Voto de Qualidade no CARF.
E quais os efeitos dessa mudança? O Instituto Justiça Fiscal – IJF estima, numa projeção modesta que, dos R$1,05 trilhão em estoque no CARF, R$ 538 bilhões serão julgados improcedentes no órgão e sequer serão analisados pelo judiciário. Destes, R$247 bilhões resultam diretamente da alteração sancionada por Bolsonaro.
Se essa alteração estivesse em vigor nos anos de 2018 e 2019, o dano ao erário teria alcançado R$ 142,15 bilhões – R$71,62 bilhões e 70,53 bilhões, respectivamente.
A mudança levada a cabo pelo atual chefe do executivo motivou três ADIs, ainda em julgamento no STF. Na prática, consolida um mecanismo perverso que beneficia grandes corporações empresariais em detrimento de pequenas empresas e contribuintes pessoas físicas, além de comprometer políticas públicas que dependem de recursos do Tesouro. Em síntese, transforma os julgamentos de grandes autuações fiscais da revisão administrativa em revisão empresarial.
Além dos problemas mencionados, o fim do voto de qualidade nos julgamentos produz efeitos nefastos no combate à sonegação e arrecadação de tributos. Algumas consequências imediatas já podem ser constatadas, por exemplo: Em maio/2022 a Receita Federal e a Procuradoria da Fazenda Nacional (PGFN) publicaram o edital 09/2022, abrindo a possibilidade de negociação para empresas que haviam sido autuadas por utilização de ágio interno – operação societária dentro de um mesmo grupo econômico que supostamente gera despesas (ágio) com permissão legal para serem deduzidas do lucro tributável, reduzindo o imposto. Apenas autuações sobre esse tema representam aproximadamente R$ 150 bilhões, segundo a Receita Federal.
Neste caso específico, o efeito da medida bolsonarista é explícito. Decisões recentes do CARF, agora sob total controle por parte das grandes corporações, legitimaram o ágio interno. Ora, com jurisprudência favorável em casos tão extremos, nenhuma empresa transacionará débitos fiscais com a União Federal já que a expectativa nas grandes teses tributárias será de vitória por causa do poder dado aos representantes empresariais e da regra de desempate a favor destes.
É urgente, portanto, a revogação do artigo 28 da Lei nº13.988/2020, com vista a aumentar o ingresso de receitas tributárias e restabelecer um mínimo de justiça fiscal e esperança para a sociedade brasileira. Combinada com a instituição de editais de transação tributária essa revogação pode gerar aumento de receita já no próximo ano.
Mais adiante é fundamental que o novo governo promova, mediante amplo debate com a sociedade organizada, uma reforma no Contencioso Administrativo Tributário para torná-lo, efetivamente, uma revisão da Administração Pública, mais célere, transparente e atualizado às necessidades de um projeto nacional. É também necessário adotar medidas para agilizar o ingresso desses recursos nos cofres públicos. Neste sentido, o Instituto Justiça Fiscal elaborou um estudo que reúne diagnóstico e propostas para modernização do contencioso administrativo tributário, que pode ser consultado no endereço eletrônico: https://ijf.org.br/wp-content/uploads/2022/08/estudo_contencioso_17_08.pdf
O Brasil é o único país em que metade dos julgadores do Tribunal Administrativo (CARF) são indicados por confederações empresariais. Rever essa disfuncionalidade é uma medida urgente para as pretensões de um país que deseja avançar econômica e socialmente.
Por fim, como medida salutar e democrática para solução de grandes questões tributárias que envolvem o país, sugerimos a criação de uma Conferência Nacional sobre Tributação que permita um diálogo aberto entre trabalhadores, consumidores, empresários, universidades, economistas, advogados, contadores e sociedade civil.
Ricardo Fagundes da Silveira é Auditor Fiscal da Receita Federal e Membro do Conselho Deliberativo do Instituto Justiça Fiscal.
Márcio Calvet Neves é Advogado Tributarista e Membro do Conselho Deliberativo do Instituto Justiça Fiscal.
Wilson Luiz Müller é Integrante do Coletivo Auditores Fiscais pela Democratização – AFD.