Morador da cidade de Santa Cruz do Sul (RS) há 30 anos, o juiz do trabalho Celso Fernando Karsburg renunciou ao recebimento de auxílio-moradia concedido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a todos os 16.429 magistrados do país. E, por isso, foi duramente criticado pelos colegas de toga.
“Me perguntei por que receberia um auxílio como este se eu moro na comarca e tenho residência própria. Não há uma justificativa plausível”, diz. “Um reajuste deve ocorrer dentro da lei, não da forma espúria como foi concedido, com um canetaço.”
A decisão do STF criou um efeito cascata e mobilizou outros setores do funcionalismo público. Com o argumento de que é necessário cumprir o princípio da “simetria constitucional” entre as carreiras, o Conselho Nacional do Ministério Público e a Defensoria Pública da União também regulamentaram o benefício em outubro.
O ministro Luiz Fux, do STF, que concedeu a liminar, se baseou no artigo 65 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, que prevê ajuda de custo para moradia “nas localidades em que não houver residência oficial à disposição do magistrado”, mas o benefício foi estendido a todos os juízes do país.
Juízes, defensores, procuradores e promotores têm o direito de receber até 4.377,73 reais por mês em auxílio-moradia, o mesmo valor pago aos ministros do STF. Em alguns estados, membros dos tribunais de contas já recebiam o benefício. O impacto estimado nos cofres públicos é de 1,5 bilhão de reais, de acordo com o governo federal.
O conselheiro do Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul, Estilac Xavier, avalia a decisão como monocrática. “A natureza do auxílio sempre foi a transferência para outra localidade. Agora, a interpretação é de que o benefício pode ser pago sempre que o tribunal não oferecer um imóvel funcional – como ocorre no Congresso –, e mesmo que o funcionário tenha residência no local”, diz.
“É como se o barco estivesse afundando, e todo mundo tentando se salvar como pode”, critica o jurista Luiz Flávio Gomes. “Esses gastos vão aprofundar o desequilíbrio fiscal do Estado. É como se estivessem recebendo o aluguel da própria casa.”
Perdas salariais
O juiz do trabalho Celso Karsburg considera que o auxílio-moradia foi concedido fora do contexto. “Quero deixar claro que faço parte de uma classe de juízes federais que não tem o subsídio reajustado como está previsto na Constituição. Mas isso não me tira a licença de discordar do recebimento desse benefício”, argumenta.
O pedido da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e de outras entidades de classe teve o objetivo de recompor perdas salariais geradas pelo aumento da inflação. Os subsídios criados para a magistratura em 2005 ainda não foram pagos de forma integral, e a defasagem, segundo a AMB, é de cerca de 30%.
“O auxílio-moradia se apresenta como uma alternativa ao descumprimento desse preceito constitucional. A compensação das perdas aparece na forma desses auxílios. A forma como estabelecemos os benefícios é legítima e está dentro da lei”, afirma João Ricardo Costa, presidente da AMB. A entidade também tenta estender o auxílio a juízes aposentados para garantir “paridade” entre juízes ativos e inativos.
Contrária à concessão do benefício, a Advocacia-Geral da União (AGU) move ações para que a Corte reconsidere a decisão. Em entrevista à DW Brasil, o ministro da AGU Luís Inácio Adams afirmou que o pagamento do auxílio a juízes e promotores é ilegal e precisa passar por uma regulamentação no Congresso Nacional.
Para Gomes, apelar ao auxílio-moradia no caso de juízes e promotores que tenham residência na comarca em que trabalham é uma “imoralidade”. Ele foi juiz durante 15 anos e afirma que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) adotam uma “postura corporativista”.
“Do ponto de vista legal, tudo foi feito dentro da formalidade, mas a questão agora é ética. Cada organização quer tirar proveito do erário público”, diz.
Xavier diz que a decisão é precária. “O pagamento mascara o aumento do subsídio, que não fica sujeito nem à lei, nem ao Congresso Nacional, nem ao imposto de renda”, avalia. “Se querem corrigir os subsídios, devem levar isso à sociedade e legitimar essa pretensão por meio de leis aprovadas pelo Congresso Nacional e pelas assembleias legislativas. Isso tira o prestígio das instituições. E é pouco crível imaginar que um magistrado não possa custear sua própria moradia.”
Já para o jurista Dalmo Dallari, professor de Direito da USP, não há por que excluir a magistratura, já que o auxílio-moradia é concedido a muitos outros setores do serviço público.
“Há posicionamentos injustos, que apresentam o juiz como magnata, como se fosse um parasita da administração”, critica. “O montante destinado ao pagamento do benefício não é excepcional nem exagerado.”
Ele pondera, no entanto, que não cabe conceder o benefício a magistrados que tenham residência na área da comarca em que trabalham. “É preciso regulamentar o tratamento diferenciado para que isso não fique sujeito a decisões arbitrárias”, analisa.
Contas desequilibradas
Apenas dez países da Europa oferecem a juízes e promotores algum tipo de ajuda de custo para moradia, entre eles Turquia, Rússia e Portugal. França e Inglaterra estão fora da lista. Na Alemanha, os juízes e promotores têm benefícios relacionados à aposentadoria e ao seguro-saúde, mas não recebem nenhuma espécie de auxílio-moradia.
As informações estão no último relatório da Comissão Europeia para a Eficiência da Justiça, que analisa o desempenho dos sistemas judiciários de 46 países do continente. Os salários dos juízes brasileiros, por exemplo, ultrapassam a média europeia, que é de 8 mil reais para a carreira inicial e de 16 mil reais para a final. No Brasil, juízes federais em início de carreira, por exemplo, recebem cerca de 20 mil reais.
Já na Escócia, os magistrados iniciam a carreira recebendo 40 mil reais por mês. Na Alemanha, os juízes terminam a carreira com rendimentos mensais equivalentes a 36 mil reais.
Além de os salários de magistrados e promotores no Brasil estarem entre os maiores do mundo, Gil Castello Branco, diretor da Associação Contas Abertas, avalia que a concessão do auxílio-moradia aumenta as distorções de cargos e salários entre os três Poderes.
“O benefício surge num momento em que o Judiciário reclama dos salários, diante da dificuldade orçamentária do Executivo, que não consegue compensar as perdas salariais”, afirma. “Com essa decisão, o Judiciário quebra o equilíbrio da equiparação dos rendimentos.”
Para o presidente da AMB, a questão da remuneração dos subsídios dos magistrados deve ser amplamente discutida. “O governo se recusa a fazer esse debate, prefere fugir do diálogo. Estamos lutando por uma política remuneratória estável para a magistratura. Várias outras carreiras são mais bem remuneradas”, afirma.
Costa alerta para a aprovação da Medida Provisória 651, que desonera a folha de pagamento de vários setores da economia. A presidente Dilma Rousseff tem até esta quinta-feira (06/11) para decidir sobre a sanção da matéria.
“Isso irá representar um rombo muito maior nas finanças do país. Esse pacote de bondades desonera algumas empresas privadas, que, coincidentemente, bancaram algumas campanhas políticas”, afirma. “Enquanto a sociedade fica focada nas despesas, descuida das receitas, que são renunciadas pelo Estado. E isso, infelizmente, não está no debate público.”
Fonte: Deutsche Welle
Texto: Karina Gomes
Data original da publicação: 06/11/2014