O AE deveria ser tratado como uma medida primeira de sustentação da renda informal para o objetivo principal de garantir a quarentena. Esta deveria ser a questão subordinadora das outras.
Tereza Campello e André Calixtre
Fonte: GGN
Data original da publicação: 21/02/2021
Estamos no segundo ano da Pandemia em pior situação do que entramos em 2020. Além dos 250 mil mortos e das milhões de famílias brasileiras desesperadas pela perda de entes queridos, pela insensibilidade e desumanidade do Governo Bolsonaro nas ações de combate ao vírus e pelo desaparecimento do mercado de trabalho popular, os brasileiros adentraram o ano de 2021 com a perspectiva real de enfrentarem a fome e a miséria provocadas pela desorganização da economia, incapaz de retomar suas atividades normais devido ao agravamento da crise sanitária. No meio de um processo ainda incerto de vacinação em massa da população, dificultada pela incompetência e negacionismo governamentais, o argumento da urgência em se manter a Calamidade Pública e o Orçamento de Guerra perdeu força para o retorno do discurso da austeridade fiscal, do teto de gastos e das reformas ultra-neoliberais que retiram ainda mais a presença do Estado da população que agoniza na crise.
Pressionados pela iminente ruptura do tecido social brasileiro, o Governo e sua maioria no parlamento recomeçaram o debate sobre o Auxílio Emergencial (AE) fazendo duas perguntas fora de lugar: quanto custa o AE e de onde viriam os recursos para sustentar este gasto? Perguntas que se feitas para abrir a discussão já criam um viés que interdita o debate de mérito (qual o diagnostico, qual o desenho, quais os critérios). O AE deveria ser tratado como uma medida primeira de sustentação da renda informal para o objetivo principal de garantir a quarentena. Esta deveria ser a questão subordinadora das outras (custos e financiamento), mas infelizmente não é de hoje que o debate econômico nacional se encontra sequestrado pela falsa tecnocracia fiscalista. Ademais, a urgência em o Estado agir deveria impor-se: como está claro que o AE continua necessário, em razão da permanência e agravamento da Pandemia, quais as consequências se este não for mantido ou se for reeditado em valores baixos e para um público muito menor?
Parece que se desenha uma ampla maioria que reconhece que o AE é necessário, afinal a situação do Brasil hoje é ainda mais grave do que a que vivíamos quando o AE foi criado em abril do ano passado por iniciativa da sociedade civil, das oposições e aprovada pelo parlamento.
O desemprego aumentou de 12 milhões, na ocasião, para 14 milhões de brasileiros. Outros 24 milhões de adultos fora do mercado de trabalho gostariam de trabalhar mas não o fazem por conta da pandemia ou algum motivo relacionado. Com isso, a taxa de desemprego potencial é inédita, algo entre 20% e 30%, considerando desemprego aberto e oculto. Mais de 700 mil empresas fecharam as portas como resultado da procrastinação de medidas do governo no início da pandemia, dado ainda subestimado. A massa salarial habitual recuou abruptamente e a pouca recuperação do final do ano de 2020 não foi capaz de compensar as perdas brutais já realizadas. Os postos informais de trabalho, em especial o setor de serviços, que dependem de contato físico para existirem, dificilmente retornarão antes da vacinação completa da população brasileira. Ou seja, não adianta mandar as pessoas procurarem emprego. Eles não existem na iniciativa privada, e o Governo Federal, que poderia ter criado um programa emergencial de emprego foi negligente e omisso permitindo a completa desestruturação no mercado de trabalho brasileiro.
O AE é necessário e urgente. Ao ser interrompido deixou 30 milhões de famílias (domicílios) em desproteção total, insegurança alimentar e ainda mais sujeitas à pandemia. Foi uma irresponsabilidade do governo com o povo e com a própria economia ter deixado o AE ser extinto em dezembro (lembremos que bastava tê-lo prorrogado juntamente com a calamidade pública e o orçamento de guerra). A sua reativação exigirá novo conjunto de normas constitucionais, resultando no povo sem renda por 3 meses e no efeito recessivo sobre o PIB de, no mínimo, mais um trimestre.
Pelo que se sabe até agora, o governo propõe um Auxílio Emergencial de R$200 ou R$250. Lembremos que esta era a proposta de Paulo Guedes em 2019, antes da pandemia. Foi a proposta do governo em marco de 2020, quando não imaginávamos o tamanho da tragédia que nos assolaria. Estamos de volta a mesma situação de um ano atrás, com 250 mil mortos. E pior, Guedes quer excluir mais da metade dos lares que fizeram jus ao benefício em 2020. Qual o critério? Quantos serão excluídos? Se depender do anunciado pela equipe econômica, perto de 40 milhões de brasileiros ficariam sem qualquer proteção. Nada disso está sendo discutido. O debate continua sendo quanto custa e o que cabe nas regras draconianas que eles mesmos inventaram.
O que farão os 40 milhões de brasileiros que estão sendo descartados do AE?
Para se ter uma ideia do absurdo dessa proposta, olhemos para 2014, ano em que o Brasil saiu do Mapa da Fome. Para garantir hoje o poder de compra do Bolsa Família pago naquele ano, seria necessário um benefício médio de R$300. Ou seja, se não houvesse pandemia, e com uma taxa de desemprego de menos de 5% (5 vezes menor que o atual cenário), o Bolsa Família teria que ser no mínimo R$300. Lembremos que o Bolsa Família é um complemento da renda do trabalho, enquanto o AE, ao contrário, é um seguro para que as famílias que tiveram queda abrupta da renda resultante da pandemia possam sobreviver, e de preferência fiquem em casa, preservando sua família e ajudando a aplacar o contágio. Neste sentido, o AE cumpre um papel de substituir a renda. Portanto, o restabelecimento do valor original de R$ 600,00 é crucial para o correto funcionamento dessa política pública de tempos pandêmicos.
Mas nunca é pouco reafirmar o que vem amplamente sendo comprovado em diferentes estudos: O AE não salvou somente vidas, ele salvou a economia em 2020. Como mostra o estudo do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades, da USP, o efeito multiplicador do auxílio é similar ao do Bolsa Família, portanto bastante alto, logo, sua ausência poderia ter levado a recessão de 2020, projetada em -4,3%, para patamares entre -9,1% a -14,7% do PIB. Em outras palavras, o Auxílio Emergencial impediu que a crise econômica de 2020 fosse duas vezes pior do que ela está sendo para os brasileiros, especialmente para a população pobre. A piora dos indicadores econômicos no último trimestre de 2020 já é efeito direto da redução do auxílio para R$ 300,00, impactando diretamente o consumo das famílias pela depressão da renda disponível. A interrupção abrupta do auxílio em 2021, sem cessar os efeitos causais da Pandemia, combinada com o retorno do terraplanismos fiscal, está levando o país para uma crise sem precedentes da história.
Por isso o Partido dos Trabalhadores vem defendendo que o AE se mantenha nos R$600 e apresentou uma PEC garantindo sua manutenção por 6 meses prorrogáveis por mais 6, já que o cenário da pandemia no Brasil continua incerto e a garantia da renda de milhões de trabalhadores informais é condição necessária para a contenção da segunda onda de contaminações até que a vacinação em massa esteja efetivamente equacionada. Esse é o critério fundador dado pela urgência de uma Pandemia, para que o Brasil atravesse a maior crise de sua geração democrática sem traumas irreversíveis em nossa solidariedade social e compromisso com o futuro.
Tereza Campello é economista, doutora por Notório Saber em Saúde Pública pela FIOCRUZ e ex-Ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2011- 16).
André Calixtre é mestre em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp e doutorando em Economia pela UnB.