No Brasil, o debate sobre a renda básica universal que, diga-se de passagem, é uma política liberal, está quase totalmente interditado nos circuitos governamentais, mas também sociais. Há a tendência de discutir de maneira muito rasa a viabilidade de um programa deste tipo, como se isso pudesse representar algum tipo de acomodamento social, quando, na verdade, trata-se da possibilidade de sobrevivência de um contingente da ordem da metade da população nacional.
“A renda mínima seria garantia básica de sobrevivência. Se é uma garantia básica de sobrevivência, isso significa que ela estaria conduzindo a pessoa a uma condição nem sempre de bem-estar social. Esse é um conceito que muitos economistas brasileiros utilizam porque eles estão pensando o mercado como um todo e não exatamente conceitos de dignidade, os quais eles definem como morais e subjetivos”, avalia Rudá Ricci, durante a sua conferência O Auxílio Brasil representa proteção social?, agora reproduzida como entrevista. O evento integrou a programação do Ciclo de debates Renda e proteção social na Região Metropolitana de Porto Alegre.
A situação apresenta contornos ainda mais dramáticos quando consideramos a atual conjuntura brasileira, de profundo retrocesso social e civilizatório. “Isso significa que não adianta somente uma renda mínima. É preciso acessar essas famílias com serviço e atendimento domiciliar integrado. Não dá para ter um programa de atendimento de saúde e depois o do Centro de Referência da Assistência Social – CRAS. Tem que ter técnico, um articulador comunitário do Estado que faça este ir até a família”, ressalta Ricci.
O que poderia ser uma solução, o Auxílio Brasil, tornou-se uma política pública que é ineficiente sob diversos aspectos, o que acaba não garantindo o acesso ao programa e, com isso, a vulnerabilidade de mais famílias. “O Auxílio Brasil tem um primeiro problema. Agora que ele está regulamentado e oficializado, vai passar por revisões cadastrais e uma parte [da população] já não será atingida. Há várias denúncias nesse sentido, mas muitas famílias poderão perder o benefício em função da revisão cadastral, que são as informações econômicas e da condição de inelegibilidade, se aquela família entra mesmo dentro do programa de pagamento do benefício. Podemos ter, nos próximos meses, um desastre nas políticas sociais”, ressalta.
Rudá Ricci é graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e doutor em Ciências Sociais pela mesma instituição. É presidente do Instituto Cultiva, cujo programa que criou, Comunidades Educadoras, acaba de receber distinção da Unesco como programa educacional mais exitoso do Brasil, figurando entre 16 experiências exitosas do mundo. É autor de Terra de Ninguém (Ed. Unicamp, 1999), Dicionário da Gestão Democrática (Ed. Autêntica, 2007), Lulismo (Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto, 2010), coautor de A Participação em São Paulo (Ed. Unesp, 2004) e Conservadorismo político em Minas Gerais: os oito anos de governo Aécio Neves (Editora Letramento, 2017), entre outros.
Confira a entrevista.
IHU – Como avalia a discussão sobre políticas públicas no país? O que precisa ser esclarecido nesse debate?
Rudá Ricci -Destaco quatro grandes conceitos usados para tratar de políticas sociais, principalmente políticas inclusivas ou de superação da desigualdade social. O objetivo de uma política pública não é manter um sistema de reprodução social marcado pela desigualdade, mas superá-lo. Então, a primeira grande questão que eu gostaria de levantar é que, embora tratemos de política social desde 2002 e 2003 no Brasil, não estamos fazendo uma discussão profunda sobre isso.
Política focalizada versus política universal
A adoção de uma política focalizada, como o nome já diz, atende àquele segmento que apresenta maior urgência na inclusão social ou na sobrevivência. A adoção de políticas universais, de outro lado, trabalha com a noção de direito. É importante ter clareza sobre essa diferença porque a noção de direito é sempre universal. Política focalizada não diz respeito a direitos, embora possa avançar para uma noção de justiça equitativa. Esse é um debate importante sobre políticas sociais, mas o mais fundamental é definir qual é o patamar de dignidade humana que nós consideramos como básico para pensar a vida das pessoas que se encontram em vulnerabilidade como parte da espécie. O que seria? Um patamar de bem-estar social? O que seria isso?
Em 2002, a carta ao povo brasileiro foi orientada pela “agenda perdida” – aquela elaborada por vários professores de economia, principalmente da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro e da PUC-Rio, com a participação de economistas de São Paulo, como Samuel Pessoa, cujo documento está disponível no site da Universidade de Columbia. A carta anunciada [pelo ex-presidente Lula] era um documento eleitoral, mas o documento que orientou as políticas sociais daquele período foi a “agenda perdida”. No texto, os economistas diziam claramente – e havia uma fundamentação liberal nessa visão – que era fundamental escolher populações e segmentos mais excluídos para desenvolver políticas focais que pudessem fazer com que, em suas vidas, essas pessoas atingissem um patamar básico de sobrevivência e consumo.
A visão focalizada [de política pública] quase sempre é instruída por uma visão social liberal que sugere que as políticas sociais são muito importantes desde que subordinadas à dinâmica do mercado. A ideia é que a política de transferência – isso está nos cânones dos autores neoliberais, como em Milton Friedman, com o imposto negativo – sirva como base, como uma plataforma para conseguir criar um mercado consumidor de massa. Mesmo que ele não tenha uma renda média muito alta, ele alavanca o mercado interno. Esse é o parâmetro rooseveltiano que foi instalado nos EUA e suportou, com o New Deal, a crise de 1929. Essa é a visão focalizada.
Política social universal, de outro lado, propõe um patamar de dignidade humana, ou seja, a partir desse patamar a pessoa pode ser compreendida como parte da espécie humana. Obviamente que é um patamar dinâmico, histórico: na medida em que se desenvolvem novas tecnologias, novos bens sociais, se alarga a compreensão do que é exatamente esse patamar de bem-estar social do ponto de vista de dignidade humana.
O Brasil não entra nesse debate. O país sempre trabalha com as emergências e nunca com a superação das condições que levam às condições de emergência.
IHU – Por quê?
Rudá Ricci – Porque nós mergulhamos o país em uma cultura estamental. Não estou falando que temos uma sociedade estamental, mas uma cultura de casta, ou seja, nunca imaginamos que algum “intocável” possa realmente ter condições de emergir a essa condição de dignidade humana. Prevalece a ideia de que uma pessoa nasceu [e permaneceu assim] porque não tem aspirações maiores, não tem inteligência, não batalha pela mudança e, então, a sua situação de marginalidade, nessa visão ultraliberal, se deve a sua opção de vida. Logo, a responsabilidade pela condição de vida é da pessoa.
Há pouco tempo, o Ministro da Economia disse que as empregadas domésticas viajavam muito para a Disney. Trata-se de uma visão pré-capitalista, que determina e exemplifica a cultura estamental. Ou seja, ele fala do lugar de uma casta superior que não consegue entender como uma pessoa da classe inferior pode acessar pacotes de viagem que a leve a outro país para se divertir. Essa é uma visão que dialoga nitidamente com a nossa história escravagista.
Renda mínima
O segundo conceito, a renda mínima, nos questiona: do que estamos falando quando nos referimos à renda mínima? O que seria esse mínimo? Gostaria de pensar em três possibilidades, que podem se articular.
A primeira possibilidade é que a renda mínima seria garantia básica de sobrevivência. Se é uma garantia básica de sobrevivência, isso significa que ela estaria conduzindo a pessoa a uma condição nem sempre de bem-estar social. Esse é um conceito que muitos economistas brasileiros utilizam porque eles estão pensando o mercado como um todo e não exatamente conceitos de dignidade, os quais eles definem como morais e subjetivos.
A segunda possibilidade é que a renda mínima seria um momento de passagem de um patamar de exasperação, de precariedade de vida de um sujeito ou de uma família para um caminho que garantisse a sobrevivência deles, mas de maneira subordinada. É uma renda que cria condições apenas para a reprodução humana e da classe. Podemos pensar a noção de renda mínima vinculada à noção de bem-estar social do século XX como um momento de passagem da situação de penúria para a situação de integração social do indivíduo ou da família. Nesse caso, a renda mínima é uma etapa de uma política social e não se basta. Se for uma etapa, então precisamos dar mais um passo para aprofundar esse conceito e, nesse caso, apenas a transferência de renda não é suficiente.
Os liberais acham que se o Estado der recursos para que a pessoa consiga sobreviver e se ela for uma pessoa esforçada e dedicada, ela, sozinha, conseguirá aumentar sua renda e as oportunidades de trabalho e, com isso, não precisará de nenhum recurso público para ter acesso à saúde de qualidade e bens culturais. A ideia liberal é a de que se a própria renda e a economia familiar estiverem equilibradas e seus membros forem esforçados, conseguirão superar a condição de penúria e marginalidade.
Mas se a política for pensada como um momento de passagem para a integração social, a renda mínima não pode ficar isolada: ela tem que compor um conjunto de políticas sociais integradas envolvendo, pelo menos, saúde, educação e assistência social. Mais do que isso: ela precisa estar baseada em uma política de escuta e diálogo com os beneficiados porque é preciso ajustar a integração dos programas para alargar as condições de inserção destes. Não basta dar o recurso; é preciso entender como é a dinâmica familiar dos beneficiados.
Processo de regressão social
Neste momento de pandemia, estamos percebendo que um percentual significativo de famílias de alunos da rede pública – estamos fazendo pesquisas em várias redes públicas municipais de ensino básico –, cerca de 30% das famílias dos grandes centros urbano, perderam renda. A maioria delas é monoparental e se declara de cor parda. Essas pessoas não tinham carteira assinada e, portanto, não tiveram acesso a nenhum tipo de política ou bem que lhes dessem sustentação. Elas vivem de aposentadorias, pensões ou algum benefício social, como era o Bolsa Família. Além disso, essas famílias têm um tempo de convívio familiar muito grande por causa dessa situação: as pessoas ficam mais de cinco horas por dia em casa, mas estão se dessocializando.
As pessoas estão ficando fechadas em casa, assistindo à televisão o dia inteiro, e não dialogam entre si. Trata-se [da vivência] de uma profunda solidão em meio a várias pessoas da família. Estamos em um processo de regressão social e do processo civilizatório. Isso significa que não adianta somente uma renda mínima. É preciso acessar essas famílias com serviço e atendimento domiciliar integrado. Não dá para ter um programa de atendimento de saúde e depois o do Centro de Referência da Assistência Social – CRAS. Tem que ter técnico, um articulador comunitário do Estado que faça o este ir até a família. Estamos percebendo, nessa situação de dessocialização, problemas gravíssimos de saúde mental. Essa situação está se proliferando. As pessoas estão sozinhas, sem expectativa, sem esperança. Evidentemente, em uma situação dessas, o Estado precisa integrar políticas e reconstruir processos de socialização de crença na sociedade e de perspectiva futura.
Renda mínima como ideia de superação da desigualdade
Mais do que isso, podemos pensar o conceito de renda mínima a partir da ideia de superação da desigualdade social. O Brasil é o sétimo país, segundo a Organização das Nações Unidas – ONU, em desigualdade social do planeta. Ao mesmo tempo, é a 13ª economia mundial. Todos os países que estão à frente do Brasil em índices de desigualdade social não estão nem próximos do pelotão em que o Brasil se encontra em relação ao PIB. O Brasil está no pelotão dos 15 países mais ricos do mundo. Na América, ele disputa com o Canadá e o México. Uma coisa é ter desigualdades em um país pobre; outra coisa é ter desigualdades em um país muito rico como o Brasil. A única opção política que muitas pessoas têm para sobreviver é acreditar em um futuro mágico que pode surgir com o esforço delas – então, Deus, vendo o esforço sobrenatural daquela família, daquele pai ou mãe, de repente, dá a graça e a pessoa passa a ter um sucesso que a maioria não tem – ou a idolatria, ou seja, a pessoa acredita fervorosamente que algum salvador de bom coração aparecerá na vida dos desvalidos brasileiros e vai conduzi-los para a Terra Prometida.
A ideia de renda mínima pode ter uma ênfase mais progressista, mais estrutural e mais aguda se focar na superação da desigualdade social. Aí ela compõe um cenário de políticas que não fica só na ideia de um pecúlio estatal que se dá para uma pessoa em situação de grande marginalidade.
Desenho da política pública
O terceiro conceito tem a ver com o desenho da política pública. Ao longo do século XX, tivemos uma primeira visão que foi muito forte até a década de 1970, a qual se estabeleceu nos anos 1930 do século passado e se consolidou depois da Segunda Guerra Mundial. Era um desenho de políticas sociais orientado pela eficácia e pela eficiência. Isso quer dizer que o Estado definia as metas a serem atingidas e as pessoas começavam a perseguir as metas. A questão que sempre gerou um debate grande acerca desse modelo foi: e se as metas foram definidas equivocadamente? Não estaríamos avaliando ou monitorando o resultado de algo que já tem um vício de origem? Eficácia e eficiência significam, nesse desenho, como se atingir as metas com menor recurso financeiro e tempo possível. Esse desenho sempre gerou a seguinte dúvida: essa visão não é autocentrada e não desconsidera os beneficiários das políticas enquanto cidadãos? Eles não são vistos como objetos de uma ação de socialização a partir da idealização do que é uma sociedade civilizada?
Ou seja, é o Estado falando para si mesmo e pensando os beneficiários como objeto de seu interesse e de seu desejo, com uma política pública que seja pública de fato e que o principal personagem dela é o cidadão, não só como beneficiário, mas como orientador. Em função disso, desse debate que floresce principalmente na década de 1960 do século passado, surge um outro conceito, que é o de efetividade. Esse conceito vai se desenvolvendo da primeira para a segunda metade do século XX, fermentando uma discussão que, mais tarde, na Eco-92, vai ficar mundialmente conhecida como a ideia de “desenvolvimento sustentável”. A questão era como estabelecemos condições para que uma política pública tenha a garantia ou as condições de estabilidade daquelas ações para que não haja um recuo daquele patamar atingido. A ideia “efetividade” passa a ser sobre as ações e os componentes que uma política social deve ter para que ela não seja casuística, para que não responda a um problema meramente conjuntural ou de intensão política eleitoral. Como criar raízes para que um programa como o Auxílio Brasil consiga construir laços de governabilidade e de construção de saberes, que fazem com que não somente os governos, mas as instituições territoriais e os beneficiários do território dessas políticas consigam criar condições permanente de sua execução e continuidade na medida em que alterar um outro governo.
Esse debate vai retomar uma discussão teórica da década de 1960 que vai ser canalizada para a educação e que é muito forte, também, na antropologia e nas ciências humanas, que é a ideia de que uma política pública não pode entender o beneficiário como objeto. Ele é sujeito, sujeito de uma história, é um cidadão, um contribuinte, o dono dos funcionários públicos que são pagos com o seu salário e os governantes que foram eleitos com seu voto. Então, a questão passa a ser, além da eficácia e da eficiência, como construir uma política social que tenha relevância para aquela comunidade que eu vou atender e para os laços que organizam a dinâmica daquele território. As disputas, as organizações, as crenças, os valores, os sonhos são todas coisas importantes. Então, como pensar um desenho em que, antes de oferecer uma política, eu ouço os beneficiários para saber quais são os valores que eu devo inserir no meu programa.
Vou tentar exemplificar, com uma ideia um pouco pueril, mas que fica clara. Há um caso que eu acompanhei de um município que havia uma demanda muito forte e histórica pela mudança de uma ponte que estava degrada. A população queria uma travessia mais segura e moderna. O governo que é eleito faz gestões para conseguir recursos para construir essa ponte. Ao término, se faz uma inauguração – o que é comum no Brasil como ritual político – e a travessia, dali por diante, é pouquíssimo usada, e a ponte, antes criticada, acaba tendo o mesmo fluxo de sempre. O prefeito chama as lideranças daquele bairro e pergunta o que aconteceu, afinal, pensava ele, havia atendido a demanda. As lideranças respondem que o problema da nova travessia é que ele não tinha ouvido os moradores locais, que disseram que a nova ponte terminava no lugar onde eles haviam encontrado uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, e que a população se recusou a pisar no lugar onde a santa foi encontrada. A crença da população não entrou no projeto de elaboração da obra dos engenheiros, do prefeito, dos técnicos etc. É isso que significa relevância cultural.
IHU – O que é governança social?
Rudá Ricci – A governança social é a organização que eu crio para refletir e planejar aquele programa, monitorar e avaliar os resultados e fazer as adequações. O que quase sempre temos no Brasil, na visão autoritária de gestão pública, é que todas essas frentes de trabalho e de gestão das políticas públicas – elaboração, execução e monitoramento de resultados – são feitas por uma casta, um grupo, um estafe técnico muito diminuto dos órgãos públicos.
O que os órgãos internacionais vêm discutindo há anos é que a boa política envolve o máximo de atores políticos e de lideranças daquele território onde vai ser executada aquela ação ou política ou programa. Um exemplo do que eu acompanhei em Recife. Prestávamos consultoria para a secretaria de planejamento e já era noite, estava chovendo e me falaram: “Rudá, você quer me acompanhar, pois vou assinar uma ordem de serviço para asfaltar uma rua. A gente vai conversando no carro.” Eu achei um pouco estranho, nem imaginava que na verdade queriam que eu visse in loco o que era o programa de governança social. A gente ia conversando no carro e, quando chegamos no final de uma rua de terra e areia, com chuva – vocês podem imaginar –, com uma iluminação relativamente precária e mais adiante, ao lado de umas árvores, havia uma grande quantidade de guarda-chuvas abertos e uma tendinha, com um aparelho de som mequetrefe com uma pessoa falando. Nisso, chega o secretário. As pessoas passam a palavra para ele, que fala assim: “Essa obra que vocês estão vendo, a placa nasceu do orçamento participativo do Recife, nós estamos colocando um tanto de dinheiro aqui e a obra vai começar amanhã e temos que executar até tal dia. Quem nós contratamos é essa empresa que vocês podem ver aqui, e o representante da empresa vai falar daqui a pouco. Nós criamos um sistema de controle e monitoramento e aqui está o presidente da associação de bairro. Eu vou passar a palavra a vocês, mas antes vou assinar a ordem de serviço…” Vocês viram? Ele assina a ordem de serviço junto à população beneficiada e fala os valores. O engenheiro que ia falar pela empresa tremia, e não era de frio, porque ele nunca tinha falado para a população; ele sempre falava era com o secretário e o prefeito. Depois ainda falou o presidente da associação de bairro, e o que ele diz? “Olha secretário, o senhor sabe que eu sou oposição ao seu prefeito, mas temos que admitir que raramente vemos uma promessa ser cumprida como vocês estão fazendo. Muito menos assinar a ordem de serviço na nossa frente.” O que eu quero dizer com essa história é que isso é uma das ações avançadas que constroem um modelo de governança social.
IHU – O que é Democracia monitória?
Rudá Ricci – Esse é um conceito desenvolvido por John Keane em livro de mais de 700 páginas nos quais ele vai dizer que a democracia monitória significa uma democracia em que o cidadão, além de votar, cria mecanismos, metodologias e até organismos fora do Estado, às vezes de forma híbrida – meio governo, meio sociedade civil – para controle ou construção de políticas públicas para a sociedade civil. Ele cita o orçamento participativo como uma dessas características, que ele chama de “monitória” (do verbo monitorar). Há aqui uma certa desconfiança do cidadão em relação ao eleito, por isso depois da eleição ele continua atento para oferecer ações ou respostas da sociedade para o governo. Os orçamentos participativos seriam isso; os comitês para gerações futuras, no País de Gales, seriam isso; as “sentinelas das pontes”, na Coreia do Sul, seriam isso; as Comissões da verdade, na África do Sul etc.
IHU – Diante desses conceitos, como podemos pensar a conjuntura brasileira?
Rudá Ricci – Antes de falar do Auxílio Brasil, precisamos deixar claro sobre quem estamos falando. A quem o Auxílio Brasil ou uma conjunção de políticas deveria atender, que é algo como 117 milhões de brasileiros, a metade da população brasileira, que ou passam fome (20 milhões declaram passar mais de 24 horas sem comer), ou não têm certeza se vão se alimentar todos os dias da semana (mais 24,5 milhões), além de 74 milhões de brasileiros que dizem que, apesar de se alimentarem, estão absolutamente inseguros em relação ao futuro devido à inflação, dificuldade de arranjar emprego ou uma situação melhor de vida. Temos a metade da população brasileira em uma situação de indignidade social. O Brasil deveria estar falando e se reportando a essa população.
IHU – O que é o Auxílio Brasil?
Rudá Ricci – O Auxílio Brasil tem um primeiro problema. Agora que ele está regulamentado e oficializado, vai passar por revisões cadastrais e uma parte já não será atingida. Há várias denúncias nesse sentido, mas muitas famílias poderão perder o benefício em função da revisão cadastral, que são as informações econômicas e da condição de inelegibilidade, se aquela família entra mesmo dentro do programa de pagamento do benefício. Podemos ter, nos próximos meses, essa brincadeira de substituir o Bolsa Família pelo Auxílio Brasil, com essa lógica, um desastre nas políticas sociais.
O Congresso aprovou recentemente a chamada PEC dos precatórios, que viabiliza o pagamento do Auxílio Emergencial de R$ 400, que vai atingir 17 milhões de famílias até dezembro de 2022. O que foi decidido em relação a essa ajuda emergencial não é a totalidade do dinheiro que estão falando que será canalizada para o pagamento desse pecúnio. Além disso, há uma acusação de parte dos senadores de que o que foi promulgado rompeu com o acordo que garantia o uso dos recursos prioritariamente pelas famílias marginalizadas. Estão abrindo uma brecha para o gasto livre dos recursos por parte do governo.
Temos uma situação de instabilidade manifesta no desenho e na execução de um programa desta importância para o Brasil, que vem o tempo inteiro sendo conspurcada por um jogo casuístico de negociações, entre parte do Centrão, o Senado, que tenta resistir ao avanço do Centrão como demiurgo da política nacional, os interesses do governo Bolsonaro, que passam por essa negociação dos recursos de cunho eleitoreiro. Há uma insegurança total em relação ao Auxílio Brasil.
Nós temos uma visão completamente limitada, atrasada, da primeira metade do século XX, em relação ao Auxílio Brasil, que não conseguiu superar uma engenharia de construção de política social daquela magnitude, de conseguir fazer ações tópicas. Esta, totalmente imersa numa disputa política muito importante que tem no seu horizonte as eleições presidenciais e do Congresso nacional em outubro de 2022.
Fonte: IHU
Texto: Ricardo Machado e Patricia Fachin
Data original da publicação: 15/12/2021
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