Caso emblemático para as discussões dos temas da autogestão e das empresas recuperadas por trabalhadores, a Lip, fábrica de relógios que funcionou por três anos sob o controle dos próprios trabalhadores nos anos 70, na França, teve no último final de semana uma jornada de debates sobre a experiência, e sobre as perspectivas para as empresas recuperadas e as organizações autogestionárias. Participaram do encontro “Lip et l´autogestion”, em Besançon, Charles Piaget, um dos organizadores da luta de 1973 e importante porta-voz do movimento que até hoje rende amplo debate, Monique Pitton, que também participou da ocupação e recuperação da fábrica, além de representantes de empreendimentos autogestionários da França, militantes partidários e de sindicatos e pesquisadores. Em um cenário de crise e recessão – a França, por exemplo, registrou uma retração no seu PIB de 0,1% no terceiro trimestre de 2013 –, e com empresas fechando suas portas ou migrando para outros países, o encontro foi marcado por manifestações a favor da possibilidade de avanço e consolidação desse tipo de empreendimento.
A França tem cerca de 2 mil empresas autogestionárias, segundo a Confederação Geral de Sociedades Cooperativas e Participativas da França (CG SCOP). Desdobrando os números e discutindo a luta pela manutenção desse tipo de organização, os militantes que participaram do encontro em Besançon utilizam o termo “Societés Cooperatifs Ouvrieres de Production” (sociedades cooperativas operárias de produção).
“Societés” como a Fralib, que reúne trabalhadores para a recuperação de uma fábrica de produção de chás em Marselha, cidade na costa sul do país europeu. Há três anos em luta, e estruturado em uma antiga unidade fornecedora da Unilever, o empreendimento coloca em debate, segundo Eloide Groutsche, trabalhadora que representou a Fralib no encontro, a “falta de compromisso das grandes empresas com os trabalhadores e as comunidades”. A planta associada à marca “Elephant” é objeto de disputa judicial pelo nome do chá e para os pagamentos de direitos trabalhistas. “É uma unidade que a empresa não considera mais para seus negócios. Nessa situação o que os trabalhadores pretendem é continuar sua subsistência, mas também refletir sobre a importância de um empreendimento de autogestão”, disse. Eloide fez uma convocação a um “boicote” à Unilever no próximo dia 7 de dezembro: organizado pelos trabalhadores e por outras entidades o ato propõe o boicote a todas as marcas associadas à Unilever nos supermercados.
O movimento também questiona os alicerces do capitalismo: o trabalho alienado, o consumismo e o materialismo irrefletidos, segundo Eloide. “Nossa organização baseada na cooperação e na autogestão busca combater a máxima sobre a qual as pessoas são ‘educadas’ para: é tudo para mim, e nada para os outros”, disse.
Benoît Borrit, jornalista integrante da Association Autogestion, afirmou que o Brasil possui um número expressivo de exemplos de empreendimentos de autogestão e empresas recuperadas pelos trabalhadores, casos que merecem maior evidência e precisam ser debatidos e fortalecidos. Em sua participação em Besançon, ele pontuou a importância da divulgação desses empreendimentos para a sociedade, para além de espaços restritos de discussão. “Sobretudo agora quando o país parece em evidência”, disse.
Charles Piaget
Aos 85 anos, e com um discurso que avança para além do tema das lutas trabalhistas, Charles Piaget pontuou que os desafios do mundo e das organizações de trabalhadores hoje são “muito mais importantes do que na época da Lip”. “Vivemos uma época de desemprego massivo, de corrupção que se generaliza, instabilidade financeira e crimes financeiros”, disse.
Por isso, para o veterano sindicalista – comentando o quadro global em uma mesa que tinha como tema “Autogestão ou barbárie” –, o desafio hoje em dia passa por romper com o individualismo e a passividade e rever a participação política, “para além dos processos eleitorais”, que comumente são associados a lutas por mudanças. “Hoje em dia, em um mundo com governança de multinacionais, há uma necessidade de militância permanente contra o liberalismo econômico”, afirmou. “Existem milhares de coletivos autogestionários funcionando, organizações baseadas em valores humanos, como solidariedade e igualdade.”
Besançon e Lip
Próxima à Suíça, e com clima de acordo com tal condição – com o adjacente vilarejo de Mouthe, cujo apelido entre os moradores é “pequena Sibéria” –, Besançon é uma cidade marcada pelo caso da Lip. Nos ecos do maio de 68, a ocupação da fábrica de relógios encontrou amplo apoio popular. “Foi um consenso na região, de que a iniciativa dos trabalhadores merecia o apoio da cidade, da região e do país. Tivemos muito suporte, inclusive com ajuda material”, disse Charles Piaget.
O caso rendeu acompanhamento de perto pela imprensa francesa, em especial os veículos identificados com a esquerda, como “Le Monde” e “Liberation”. Mobilizou também apoio de comissões de fábricas de toda a França e de outros países, e uma manifestação na televisão do então arcebispo de Besançon, Marc Lallier.
“Havia mais de mil comitês de trabalhadores de outros lugares dispostos a nos ajudar. E em Besançon foi montada uma tenda em que as pessoas dormiam”, disse Chales Piaget. “Os esforços daqueles que nos apoiavam e a popularização do movimento foram fundamentais e marcaram a história do país.”
A Lip foi fundada em 1867, como empreendimento familiar. Empresa com forte presença no mercado, enfrentou dificuldades a partir dos anos 60, e passou ao controle do grupo suíço Ébauches S.A. no início dos anos 70. Em 1973, uma greve mobiliza mais de 800 trabalhadores, dando início ao movimento que culminaria com a ocupação e a recuperação da empresa pelos trabalhadores, sob o lema “os trabalhadores produzem e vendem sem patrão”.
Para saber mais
“Les Lip – Immagination au Pouvoir”, documentário sobre a ocupação da Lip pelos trabalhadores, de Christian Rouaud (2007) – http://www.dailymotion.com/video/x4k0yd_les-lip-l-imagination-au-pouvoir_news
Asso (Association Autogestion) – www.autogestion.asso.fr
Marselha – A sede da Fralib, em Marselha, terá em janeiro o quinto encontro “Economia dos Trabalhadores”, organizado por pesquisadores da UBA (Universidade de Buenos Aires) e outras entidades. A edição deste ano do evento aconteceu em João Pessoa (PB).
Chá Elephant e campanha de boicote à Unilever – https://www.facebook.com/liberezelephant
Fonte: Carta Maior
Texto: Nicolas Tamasauskas
Data original da publicação: 24/11/2013