Livro analisa como a indústria das finanças passou a dominar a sociedade, afastando o sistema do mundo real. A propriedade torna-se líquida; e a dívida, a manufatura.
Ladislau Dowbor
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 20/10/2023
Em Wealth Supremacy – How the Extractive Economy and the Biased Rules of Capitalism Drive Today’s Crises (2023), Marjorie Kelly vai direto ao ponto: “Um modo de vida no nosso planeta está acabando. Se conseguiremos encontrar um caminho para sair do caos para uma mudança positiva de sistema, ainda está para ser visto.” (página 189) Kelly se refere aos impactos da nossa perda de governança, com os dramas ambientais, da desigualdade, dos conflitos, mas coloca a financeirização no centro: “Essas batalhas separadas poderiam se tornar uma só, se compartilhássemos a compreensão do sistema profundo que as alimenta todas – o agigantado e financeirizado sistema econômico, com os seus processos insidiosos de extração de riqueza, que constituem as forças frequentemente invisíveis que geram muitas crises.” (191)
Não se trata de um defeito no sistema, e sim do próprio sistema: ”Temos de expor o fato que um terço do PIB está sendo extraído pela indústria da finança, e tornar visível o fato que ativos financeiros são cinco ou mais vezes o tamanho do PIB, e ainda determinados a crescer eternamente e sem limites. Temos de reforçar que essa riqueza com demasiada frequência é o resultado de se tirar (taking) do resto da sociedade.”(192) Essa realidade desenha a tarefa que temos pela frente, “a tarefa de transferir riqueza e poder das mãos dos poucos para o controle dos muitos, a tarefa de criar um sistema desenhado não para maximizar a riqueza financeira mas para manter uma vida florescente.”(193)
O objetivo não é complexo, trata-se de reaproximar a economia e as necessidades humanas. Uma economia democrática “é uma economia que, no seu desenho fundamental, visa responder às necessidades essenciais de todos nós, equilibrar o consumo humano com a capacidade regenerativa da terra, responder às vozes e preocupações de pessoas correntes, e compartilhar a prosperidade sem diferenças de raça, gênero, origem nacional, ou riqueza. No núcleo de uma economia democrática está o bem comum, no quadro dos objetivos fundamentais da democracia política.”(154)
É colocar o desafio alto demais? Kelly lembra com força que todas as grandes transformações, a abolição da escravidão, os direitos das mulheres, a onda de decolonização e outras transformações estruturais, como o fim dos reis de direito divino, se deram em contextos em que se dizia que eram sonhos impossíveis. Mas a mudança das mentalidades é poderosa: “Os sonhos são importantes. As visões são importantes. Para o bem ou para o mal, a mente humana coletiva é uma força capaz de modelar o mundo.”(154)
Marjorie Kelly não é nova na área. Em 2001, o seu livro The Divine Right of Capital: Dethroning the Corporate Aristocracy teve um impacto internacional profundo, ao demonstrar que entre o fluxo de dinheiro de pessoas que compram ações, e que com isso se veem como investidores, financiadores de atividades produtivas, e o fluxo de dinheiro que sai das empresas, o sinal tinha se invertido: os gestores de aplicações financeiras drenam mais do que aportam, travando o desenvolvimento. Em termos claros, uma empresa que gera um superávit pode aumentar os salários dos trabalhadores, expandir investimentos na própria empresa, ou aumentar a remuneração dos acionistas. Esta última opção se tornou radicalmente dominante. É o poder dos proprietários ausentes (absentee owners, shareholders).
Com o gigantismo e poder das empresas gestoras de ativos (asset management), as empresas produtivas passaram a canalizar cada vez mais recursos sob forma de dividendos para acionistas, mesmo travando a remuneração dos trabalhadores e o reinvestimento nas empresas. Por sua vez, a remuneração dos executivos nas empresas passou a acompanhar o enriquecimento dos acionistas, gerando interesses comuns entre os dois grupos. Gerou-se uma classe de capitalistas extrativos. Thomas Piketty detalhou os mecanismos no Capitalismo no Século XXI, de 2013, demonstrando claramente que o capitalismo se deslocou: rende mais fazer aplicações financeiras do que criar uma empresa. Hoje temos um manancial de pesquisas detalhadas sobre este capitalismo, com pesquisas que entre outros sistematizei no livro A Era do Capital Improdutivo (2018), e em particular nos trabalhos de Brett Christophers, como o Rentier Capitalism. A análise econômica se deslocou.
Marjorie Kelly continua nesse eixo de pesquisa: “O mundo hoje está inundado pelo capital financeiro, a versão líquida contemporânea da propriedade. Nesse regime de propriedade, isso significa que o centro de gravidade do sistema se deslocou (shifted away) da economia real de habitações, pequenas empresas e empregos, e se moveu para a esfera da finança. O poder deste mundo, o mundo da riqueza e dos ricos, aumentou. A extração relativamente ao resto cresceu dramaticamente.” (82) Demasiada finança (Too Much Finance) é o título inclusive de uma análise do FMI. (Ver nota 4, p. 210).
Kelly detalha o mecanismo: “A financeirização consiste no desvio dos fluxos financeiros da produção e do consumo para os mercados de ativos (asset markets). Isso significa que o sistema agora consiste menos em manufaturas e mais em manufaturar dívidas. As finanças já estiveram a serviço das comunidades, com empregos, casas, empresas familiares – fazendo empréstimos para pequenas empresas, ajudando as pessoas a comprar casas, e assim por diante. Agora estão a serviço da finança. Em vez de termos uma economia desenhada para produzir mais valor no mundo real, para pessoas comuns, a máquina econômica foi reajustada para produzir valorizações financeiras mais elevadas.”(83)
O resultado é que as finanças passaram a dominar a sociedade: “As finanças desviam a função do sistema da sua utilidade no mundo real – da inovação, do aumento de produtividade e da renda compartilhada. Em vez disso, como Bezemer e seus colegas o colocam, os ativos financeiros tornam-se a base do sistema econômico. Os rendiments que resultam beneficiam os poucos. Essa minoria – os ricos e a indústria financeira que os serve – passou a dominar a sociedade. Nesse estado das coisas, a extração se expande. As relações no sistema se desequilibram, a maioria de nós ficam endividada, enquanto uns poucos se apropriam do resultado. Muito da riqueza do 1 por cento constitui dívida as famílias e os governos devem.”(83)
Kelly converge com as pesquisas de Thomas Piketty: “Se o crescimento econômico é, digamos, de 2 ou 3 por centos, enquanto o capital busca crescer no ritmo de 5 ou 7 por centos, os ricos aumentam a sua renda ao extrair dos outros, com métodos como redução da renda dos trabalhadores. Se a minha fatia do bolo está crescendo muito mais rápido do que o crescimento do bolo inteiro, então a sua fatia está ficando menor. Piketty mostrou isso ser verdadeiro no capitalismo num período de duzentos anos… As 10 pessoas mais ricas hoje possuem mais riqueza que os 40 por centos de toda a humanidade.”(84)
A autora traz com força a importância de entendermos esse mecanismo, mais obscuro para as pessoas. A exploração com baixos salários numa empresa é clara, os trabalhadores podem se organizar e buscar equilíbrios. Os novos mecanismos de apropriação do produto social, através de mecanismos financeiros cada vez mais obscuros, são pouco compreendidos. “As práticas do capitalismo financeirizado operam numa aparente narrativa de matemática tecnocrática, que confere à ganância autoridade e persistência. Tornando a sua brutalidade casual invisível.”(50)
Particularmente enganadora é a narrativa dos mecanismos de livre mercado: “Na essência, o conceito de livre mercado é uma folha de figa. É uma cobertura ideológica, destinada a proteger a ação real, que é mais profunda, no poder da riqueza, livre e segura no seu império invisível, onde continua infinitamente com sede de mais. O neoliberalismo é o engodo da máquina de extração. A extração de riqueza é o verdadeiro jogo.”(118)
O processo decisório das empresas é essencial. Decisões sobre o uso dos recursos das corporações, e em particular a nomeação dos executivos, dependem do voto dos acionistas. Os acionistas não estão na empresa, são grandes grupos de gestão de dinheiro, com os seus algoritmos. O resultado é que proprietários ausentes (absentee owners) tomam as decisões estratégicas, enquanto os trabalhadores que estão na empresa, que realizam as atividades, não têm nenhum voto, a não ser em situações excepcionais como na Alemanha, onde são representados no conselho de administração. Ou seja, rompe-se a convergência entre os interesses dos trabalhadores, e as políticas empresariais. Uma Samarco não investiu nem nas infraestruturas para proteger as barragens, nem nos trabalhadores, privilegiou o rendimento dos acionistas, gerando o desastre de Mariana.
A compreensão desta mudança no sistema é fundamental. Não se trata mais do capitalista que tem uma empresa no bairro, numa cidade concreta, conhecido dos vizinhos, respondendo a mudanças culturais, preocupado com a imagem. Trata-se de uma máquina supraterritorial, distante, que dita os termos, enquanto recomenda aos seus departamentos de relações públicas e de relações governamentais (política institucionalizada) que proclamem a sua fidelidade ao ESG (Environment, Sustainability, Governance).
A riqueza do aporte de Marjorie Kelly, neste livro de 2023, Wealth Supremacy, consiste numa sistematização magistral de como o sistema hoje funciona. Ela domina suficientemente a área, para não precisar entrar em complexidades: um livro pequeno, de leitura simples e sobretudo agradável, com linguagem direta, torna os mecanismos transparentes, não para economistas em particular, mas para toda pessoa de bom senso. Isso é indispensável, pois o capitalismo atual ainda navega na legitimidade da sua fase industrial e produtiva, hoje travada pela financeirização. Estamos falando de um terço da capacidade produtiva apropriada por intermediários financeiros improdutivos. Não à toa o mundo está discutindo um novo pacto global sustentável, um novo Bretton Woods, uma nova arquitetura financeira mundial.
Ladislau Dowbor é Economista e professor titular de pós-graduação da PUC-SP. Foi consultor de diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios, além de várias organizações do sistema“S”.