Assalariados

Fotografia: Scanmetal

Vivemos tempos sombrios, e o povo parece que perdeu a capacidade de se enxergar no espelho no meio de tanta escuridão.

José Falero

Fonte: Direito do Trabalho Crítico
Data original da publicação: 28/02/2022

Crônica presente no livro: FALERO, José. Assalariados. In: Mas em que mundo tu vive? Crônicas. 1ª ed. São Paulo: Todavia, 2021, p. 44-46.

Pedra Bonita: condomínio da zona sul de Porto Alegre, onde o apartamento mais barato é um milhão. Ajudante de gesseiro: lá tava eu, ajudando o Michel e o Matheus. Ajudando a fazer um forro, ajudando a levar a vida. Correr atrás do ouro com o mano que tu te criou tem seu valor. Quem sabe, sabe. Nem se compara a entrar numa empresa grande e construir amizade do nada com um bando de colega desconhecido.

Gente de bem: família tradicional, brancos que nem papel, bem-alimentados, pele saudável, mãos macias, donos do mundo, donos da porra toda, donos do forro que a gente tava fazendo. O pai era rato graúdo (alto cargo da Polícia Civil). Até pediu o nosso RG e pesquisou os nossos antecedentes criminais antes de decidir se a gente era digno de entrar no apartamento dele para trabalhar. A esposa conseguia ser ainda mais indigesta. Reclamava da sujeira a cada cinco minutos, e a cada dez reclamava da demora pro serviço ficar pronto. O filho era um bicho-preguiça. Toda vez que eu via aquele guri, parecia que ele tinha recém-acordado. Andava de arrasto. Acho que nunca lavou um copo na vida. E acho que nunca vai lavar.

Uma história absurda: a mulher tava tentando conseguir alguns benefícios pro guri na faculdade. Teve algumas conversas acaloradas por telefone com algum funcionário de lá. Pelo que eu entendi, o problema passava por comprovação de baixa renda. Não sei o que ela tava tentando garantir pro filhote dela, mas, para conseguir o que ela queria, precisava comprovar, de algum jeito, que a família era pobre. E não deve ser fácil fazer isso morando num apartamento de um milhão.

Numa dessas, a mulher desligou o telefone e foi conversar com o marido, indignada.

– Que raiva dessa gente! Esses assalariados! Amanhã eu vou lá! Vou lá conversar bem de pertinho com eles, e aí eu quero ver! Ora, onde já se viu? Esses assalariados!

O marido concordava.

– É. É um absurdo mesmo.

Gostaria que houvesse algum recurso gráfico que me permitisse expressar aqui, neste texto, toda a repugnância que aquela mulher colocava na voz quando dizia “assalariados”.

– Esses assalariados!

Ela dizia “assalariados” com a mesma careta de nojo que a gente faz pra explicar que pisou na merda.

Até hoje a gente brinca com isso, eu e os guri. Quando um de nós faz algo reprovável, a gente diz: “Tinha que ser esse assalariado!”. Mas, apesar do nosso bom humor no trato com esse tipo de coisa, a gente tem, sim, consciência do que aquele episódio representou, e também da tragédia de o mundo ser como por enquanto é. A gente sabe. A quebrada sabe.

Vivemos tempos sombrios, e o povo parece que perdeu a capacidade de se enxergar no espelho no meio de tanta escuridão. Parece que perdemos a capacidade de perceber as coisas mais óbvias: nossos interesses nunca serão defendidos por aqueles que não experimentaram nossas dores. Mas eu boto fé. No momento certo, na hora que o bicho pegar, todos vão lembrar direitinho quem é que tem as mãos calejadas e quem é que peidou dormindo a vida inteira.

“Hei, pé de breque!/Vai pensando que tá bom…/Todo mundo vai ouvir, todo mundo vai saber.”

Em tempo: quando contei essa história a Dalva, perguntei:

– Será que a mulher não ficou com vergonha de dizer “assalariados” daquele jeito, com aquele nojo, sendo que tinha três assalariados ali, trabalhando no apartamento dela e ouvindo tudo? Ou será que ela falou de propósito, pra nos humilhar?

A resposta da Dalva, como sempre, não podia ser mais lúcida:

– Não. Vocês não importavam pra ela. Eram invisíveis. Foi como se vocês não estivessem ali.

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