As vítimas da mineração no Brasil ao longo da história

Em 1884, o desabamento de uma grande pedra no poço vertical das minas inglesas da Brazilian Company Limited em Itabira do Campo (atual município de Itabirito), Minas Gerais, derrubou parte das paredes e fechou as galerias subterrâneas onde trabalhavam mais de cem pessoas. Sem conseguir salvar os trabalhadores que haviam ficado presos, a companhia decidiu inundar o local “para findar o suplício” dos sobreviventes.

O caso é lembrado pelo professor do Instituto Federal de Educação do Sudeste de Minas Gerais Rafael de Freitas e Souza, em sua tese de doutorado em história social “Trabalho e cotidiano na mineração aurífera inglesa em Minas Gerais: a Mina da Passagem de Mariana (1863-1927)”, defendida em 2009, na USP.

No estudo em que analisa acidentes de trabalho na mineração, Souza mostra que a atividade só se desenvolveu com “sacrifícios humanos”. Ele lembra casos como o de João Nepomuceno dos Santos, que às 10h do dia 14 de outubro de 1922, sofreu um acidente no interior da mina da The Ouro Preto Gold Mines of Brazil Limited. Funcionário mais jovem da empresa, morreu de traumatismo, segundo registros de cartório. Tinha apenas 11 anos.

Atropelamento por pequenos vagões, mortes por explosões de dinamite ou choque elétrico, contaminação por cloro, silicose, desmoronamentos e tuberculose eram rotina. Tão frequentes que minas em Mariana e Nova Lima tinham hospitais próprios.

Para o professor, alguns aspectos dos séculos 18 e 19 se mantiveram no Brasil de hoje, num contexto em que uma barragem se rompe em Minas Gerais a cada dois anos, segundo um estudo publicado em 2016.

Para ele a expressão “auri sacra fames” (a maldita fome do ouro) ainda pode ser empregada para descrever as tragédias como a de Brumadinho (2019) e a de Mariana (2015), precisando apenas ser atualizada para a “maldita fome do lucro”.

O Nexo entrevistou Rafael de Freitas e Souza, autor também do livro “O Ouro Gosta de Sangue”, que trata da história da mineração em Minas Gerais sob a perspectiva da história social do trabalho.

O livro do senhor se chama ‘O Ouro Gosta de Sangue’. De onde vem a expressão?

Rafael de Freitas e Souza: Ela foi dita por um ex-mineiro da Mina da Passagem de Mariana (MG) numa das entrevistas que fiz durante a elaboração da tese de doutorado [“Trabalho e cotidiano na mineração aurífera inglesa em Minas Gerais: a Mina da Passagem de Mariana (1863-1927)”, defendida em 2009, na USP]. Significa que o ouro somente se deixa extrair se houver sacrifícios humanos. Desde o mundo antigo, o ouro era encarado como se fosse uma entidade que habita o mundo subterrâneo. Essa resposta foi dada justamente quando lhe perguntei por que ocorriam tantos acidentes na Mina da Passagem situada em Mariana. Ou seja, trata-se de uma mentalidade que remonta à mineração no período romano quando as condições de trabalho eram muito adversas. Eram tão letais que ser condenado ao trabalho nas minas equivalia a uma pena de morte indireta. Historicamente, é preciso entender que se trata de uma forma pré-científica de explicar as causas dos acidentes e mortes dos mineiros.

O que era o ‘pacto de morte’ entre os mineiros que o senhor cita em sua tese? Em quais condições eles trabalhavam?

Rafael de Freitas e Souza: O “pacto de morte” era feito entre os mineiros com maior grau de afinidade e confiança. Quando um deles estava com silicose em estado avançado (que é uma doença incurável provocada pelo acúmulo de partículas de poeira nos pulmões devido à exposição contínua), o outro abreviava o seu sofrimento.

As condições de trabalho variaram ao longo do tempo e conforme o tipo de mineração executado; ou seja, os problemas encontrados na mineração aluvial são diferentes daqueles da mineração subterrânea ou de talho aberto. As condições de trabalho na mineração do diamante se assemelhavam em alguns pontos à mineração aluvial, embora tivesse também suas especificidades.

Existem muitos documentos históricos que evidenciam as péssimas condições de trabalho enfrentadas pelos escravos (sejam indígenas ou africanos) que trabalhavam nas minas e nos ribeiros nos primeiros anos da extração aurífera. Dentre elas podemos citar as longas jornadas de trabalho, a longa exposição ao sol e à umidade que provocavam doenças na pele, a alimentação insuficiente, a deformação da coluna porque ficavam muitas horas inclinados, as hérnias causadas pelo esforço excessivo, a intoxicação por mercúrio e, evidentemente, os castigos físicos. Nesta mesma fase, na mineração subterrânea os desmoronamentos do teto da mina eram corriqueiros e os trabalhadores contraíam tuberculose, por exemplo.

Sobre as condições de higiene, os mineiros usavam epítetos como “bosteiro” ou “papai-bunda” para se referir ao responsável pelo recolhimento das fezes dos outros mineiros que trabalhavam no subterrâneo. Como não havia instalações sanitárias no local, o “bosteiro” recolhia os excrementos para descartá-los.

No século 19, nas minas adquiridas e administradas pelas companhias inglesas, as condições de trabalho também eram muito precárias. A mecanização do processo extrativo trouxe consigo novos problemas para os mineiros: atropelamento pelos vagonetes, morte provocada pela explosão de dinamite ou por choque elétrico, contaminação por cloro, silicose, desmoronamentos e tuberculose (essa doença tornou-se tão comum entre os mineiros que ficou conhecida como “a doença da mina”); tudo isso associado aos baixos salários, longas jornadas e ausência de direitos trabalhistas até sua regulamentação no século 20. A ocorrência de acidentes limitantes, mortes e doenças eram tão frequentes que a Mina da Passagem e a Mina de Morro Velho [em Nova Lima] tinham hospitais próprios para atender aos enfermos e acidentados.

De que forma o tema da segurança do trabalho preocupava o governo e os trabalhadores? Em algum momento houve pressão por melhorias?

Rafael de Freitas e Souza: Desde o século 17 havia uma legislação preocupada com a prevenção de acidentes. O Regimento de 1603 estabelecia que os escoramentos e respiradouros deveriam ser feitos antes de iniciarem os trabalhos para evitar acidentes; a fiscalização ficava a cargo do Provedor e de um oficial mineiro prático. Mas, não passou de letra morta, pois essa fiscalização não era efetiva pela falta de pessoal e tráfico de influências. E mais, os escoramentos eram feitos à medida que as galerias avançavam.

As medidas adotadas não vislumbravam, em primeiro lugar, a proteção da vida dos escravos e feitores, mas o bom andamento dos trabalhos; ou seja, visa-se a não interrupção dos serviços para não prejudicar os lucros. Escravos, embora caros, eram substituíveis. Além disso, o Estado não interferia na relação senhor/escravo. Ninguém usava equipamentos de segurança (luvas e botas, por exemplo), pois não existia o conceito de EPI [equipamento de proteção individual].

O primeiro documento a regulamentar a mineração em Minas foi o Regimento do Superintendente, guardas-mores e oficiais deputados para as minas de ouro de 1702. Este Regimento vigorou, com pequenas modificações, até o Império e não possui um único artigo que denote preocupação com a prevenção de acidentes de trabalho e cuidados a proteção à saúde dos mineiros. Por outro lado, não faltam artigos voltados para normatizar a distribuição das lavras, a cobrança do quinto do ouro e para evitar o contrabando.

Temos conhecimento de uma revolta de escravos em Diamantina que reivindicou melhoria da qualidade e quantidade da alimentação que lhes era fornecida. A luta por melhores condições de trabalho na mineração passou a ocorrer de maneira mais sistemática e organizada com a chegada dos imigrantes europeus ao Brasil. Muitos deles trabalharam nas minas inglesas e procuraram organizar a categoria.

Quem eram, exatamente, essas vítimas da mineração? Há registros de grandes acidentes nos anos iniciais da atividade?

Rafael de Freitas e Souza: As principais vítimas dos acidentes e enfermidades causadas pelas adversas condições de trabalho na mineração eram os escravos (e trabalhadores livres quando a escravidão foi abolida em 1888) que trabalhavam no subterrâneo. Por outro lado, se considerarmos o poder contagioso da tuberculose, um trabalhador afetado por essa doença acaba transmitindo-a a outros membros da família.

O trabalho infantil de meninos e meninas foi utilizado na mineração em menores proporções. Às crianças eram destinadas tarefas tais como a limpeza do local e a lavagem da areia aurífera nas bateias [recipiente de madeira ou metal, de fundo cônico, onde cascalho, minério ou aluvião são revolvidos, em busca de pedras e metais preciosos].

É muito difícil estabelecer uma expectativa de vida para os mineiros dos séculos 18 e 19. Sabemos, através do testemunho do barão de Eschwege, que foi proprietário de uma mina em Mariana, que os escravos raramente atingiam a idade avançada. Entretanto, outras pesquisas demonstraram que a vida útil de trabalho dos mineiros dificilmente ultrapassava os 35, 40 anos.

Os principais males causados aos mineiros podem ser divididos em duas categorias: acidentes de trabalho e doenças ocupacionais. Podemos citar doenças na pele, os afogamentos, a intoxicação por mercúrio, arsênico ou cloro, a pneumonia, a tuberculose, dentre outros. Quando a mina era de material friável a morte ocorria por asfixia; quando a formação geológica era rochosa, a morte era causada por esmagamento.

Em 1789, a Câmara de Mariana apresentou à rainha de Portugal as causas determinantes da redução dos impostos que lhe eram devidos. Dentre elas, figuram os sucessivos acidentes provocados pela imprudência de mineiros que não observavam as mínimas condutas de segurança.

Alexander Caldcleugh, viajante europeu que visitou Vila Rica em 1821, anotou em seu diário que um morro havia sido tão perfurado pelos mineiros que “há alguns anos uma grande parte de uma das encostas tinha deslizado e causado um número assustador de mortes”.

Temos também o registo de número considerável de desmoronamentos das minas em várias vilas de Minas Gerais ao longo dos séculos 18 e 19. O desastre de maiores proporções ocorrido numa mina já registrado aconteceu em São João del Rei onde, segundo Eschwege, foram soterrados 200 negros e 11 feitores (ele não informou o ano do acidente). A Brazilian Company Limited em Itabira do Campo contabiliza dois grandes acidentes: o primeiro antes de 1830, quando um desabamento enterrou grande número de mineiros; o segundo, em 1884, quando morreram mais de cem operários.

É preciso lembrar ainda dois graves acidentes ocorridos na Mina de Morro Velho em Nova Lima: o primeiro foi um incêndio seguido de desabamento ocorrido em 1867 ceifando a vida de 17 escravos e de um inglês; o segundo, o grande acidente de 1886 —lamentavelmente, as fontes não são precisas quanto ao número de mortos, algumas falam em “numerosas vítimas”. O jornal O Estado de Minas noticiou que “ficam soterrados 34 mineiros”; Paul Ferrand diz que aconteceu “sepultando sob os escombros diversos operários chineses empregados na mina”.

Por essas razões, a Mina de Morro Velho era considerada perigosa devido aos frequentes desmoronamentos. Mas acidentes ocorriam em minas localizadas em outras províncias, como em São Paulo. Na Mina de Carapuchu, no Jaraguá, “não se deu à encosta, contudo, uma rampa suficiente, não se julgou necessário fazer uma escora, e os lados solapados, ruíram. Assim, foram esmagados alguns negros”. Assim foi relatado por Richard Burton, um viajante inglês.

Existia alguma indenização?

Rafael de Freitas e Souza: Enquanto vigorava a escravidão não se falava em indenização por acidente de trabalho. Salvo engano, esse direito somente foi garantido aos trabalhadores no século 20.

Acidentes na mineração têm ocorrido a cada dois anos em Minas. O senhor vê algum resquício daquela época na atividade de hoje?

Rafael de Freitas e Souza: O resquício que vejo entre os problemas do passado e o atual pode ser resumido na expressão “auri sacra fames” —a maldita fome do ouro. Para o casos recentes, podemos traduzir para a “maldita fome do lucro”.

Nos acidentes da Samarco e da Vale ficou evidente que a opção pelo alteamento a montante adotado para fazer as duas barragens foi o principal fator da ruptura. Embora ultrapassado, a empresa o adotou por ser a forma mais barata. Mas isso não basta para elucidar a gravidade do descaso com a vida. Como entender que um refeitório e um centro administrativo possam ser construídos na rota da lama? Aos primeiros sinais de ruptura não havia como acionar um alarme? Havia rotas de fuga sinalizadas semelhantes àquelas que foram adotadas em cidades situadas próximas ao vulcão Vesúvio na Itália?

Podemos comparar os casos de Mariana e Brumadinho com um desabamento ocorrido na companhia inglesa de mineração, a Brazilian Company Limited. No ano de 1844, um desabamento deixou 30 trabalhadores sob seus escombros. Nessa mina, os engenheiros fizeram o escoramento do teto apenas nos pontos mais perigosos. Por isso, num certo momento, uma das paredes desabou. O engenheiro de minas Paul Ferrand disse que esse acidente ocorreu por dois fatores: a economia nos trabalhos e um mau método de trabalho; ou seja, justamente as mesmas razões que provocaram os acidentes da Samarco e da Vale. Ora, “economia nos trabalhos” e “maus métodos” nada mais são eufemismos para a negligência e imprudência ditadas pela ganância.

Em minha tese, demonstrei como as grandes companhias inglesas que atuavam na mineração aurífera em Minas Gerais no século 19 e 20 tinham um poder tentacular que abarcava em sua teia de interesses lucrativos as autoridades municipais, provinciais/estaduais e federais.

Parece-me que esse tráfico de influências também se prolonga no tempo. Uma investigação mais acurada do jogo de interesses entre a comissão que redigiu o novo Código de Mineração Brasileiro e as empresas responsáveis pelos acidentes de Mariana e Brumadinho provavelmente lançaria luz sobre as relações entre essas empresas e os políticos e os consequentes acidentes com danos humanos e ambientais

Fonte: Nexo
Texto: Estêvão Bertoni
Data original da publicação: 01/02/2019

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