Entre o medo da pandemia e o de não conseguir alimentar os filhos, trabalhadoras domésticas e diaristas vêm passando por situações de insegurança desde março, quando começaram a ser implantadas as primeiras medidas restritivas contra a covid-19 no Brasil. Uma das categorias mais vulneráveis no país, essas trabalhadoras sofreram com demissões em massa: segundo dados do IBGE, 21,1% dos postos de trabalho doméstico foram perdidos, o dobro do índice para a população em geral, que foi de 9,6%. A porcentagem representa cerca de 1,2 milhão de trabalhadoras domésticas que perderam o emprego nos últimos meses.
A categoria é principalmente feminina – 92% são mulheres e 68% são mulheres negras – e, mesmo com recentes avanços em termos de legislação, segue tendo altos índices de informalidade. A Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos aponta que 70% trabalham sem carteira assinada, cinco anos após a promulgação da Lei Complementar 150/2015, que regulamentou as alterações previstas pela Emenda Constitucional nº 72, as quais determinam direitos básicos para a categoria.
Ainda assim, muitas trabalhadoras e empregadores desconhecem que, por lei, empregadas domésticas têm direito a, caso excedam as 44 horas semanais previstas, ganhar hora-extra, assim como tirar férias com os benefícios previstos; intervalo de almoço; registro do ofício na carteira de trabalho; acréscimo do salário em caso de trabalho noturno, entre outros.
Durante a pandemia, alguns estados chegaram a considerar o trabalho doméstico como atividade essencial, mas a medida logo foi retirada. Foi a partir daí que a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), em conjunto com a Themis, lançou a campanha “Essenciais são os nossos direitos”, com o objetivo de conscientizar a população sobre os direitos destas trabalhadoras durante o período da pandemia, mas não apenas limitado a ele.
“Essas medidas de considerar como essencial o trabalho doméstico foram debatidas pelas trabalhadoras e sindicatos, e justamente se chegou à pergunta: o que a sociedade brasileira considera essencial quando o assunto é trabalho doméstico? É a saúde das trabalhadoras ou a disponibilidade do serviço a qualquer custo?”, questiona Jéssica Pinheiro, coordenadora de projetos da Themis.
Nos últimos meses, alguns casos que ilustraram essa questão tornaram-se conhecidos no Brasil: na Bahia, o primeiro caso registrado de covid-19 foi de uma empregada doméstica (e, posteriormente, seus pais) cuja patroa havia retornado da Itália. No Rio de Janeiro, Cleonice Gonçalves morreu da doença após não ser dispensada do trabalho quando a empregadora testou positivo. Em Pernambuco, o caso do menino Miguel, que caiu do prédio onde a mãe trabalhava, enquanto estava sob os cuidados da patroa, causou comoção nacional.
Jéssica explica que a partir da campanha, as entidades promoveram diversas atividades, dentre elas um curso intitulado “Domésticas com Direito”, que aconteceu via WhatsApp a partir de vídeo-aulas e áudio-aulas. Com a participação de 400 trabalhadoras de todo o país, a capacitação contou com dez módulos sobre direito trabalhista, previdenciário, direitos humanos, feminismo, sindicalismo, questões de violências institucionais, racismo e como enfrentá-lo.
Antes das restrições impostas pela pandemia, a Themis planejava realizar um curso semelhante de forma presencial no Rio de Janeiro, a partir de parceria com os sindicatos da região. Com o isolamento, as aulas passaram a ser virtuais, mas a partir daí foi possível ter a participação de mulheres de todas as regiões. “Foi bem importante que a gente pudesse atender nessa via que é o WhatsApp, que é onde elas mais se comunicam, e é de mais fácil acesso em termos de entendimento da tecnologia. Disponibilizamos também as recargas em celulares pré-pagos, para elas terem o direito à comunicação”, conta Jéssica.
Neste sábado (31), ocorre a formatura das turmas do curso “Domésticas com Direito”, que contou com a parceira também da UniRitter, da Care, do Ministério Público do Trabalho e da Agência Francesa de Desenvolvimento. As participantes receberão um certificado da universidade do curso, de 60 horas. A formatura ocorrerá online, via Zoom, e cada turma terá uma ou duas oradoras para falar da experiência.
“Eles nunca respeitaram meus direitos”
Dentre as mulheres que irão se formar neste sábado, está a empregada doméstica Claudete Munhoz de Jesus, que aos 50 anos trabalhou a vida inteira em casas de famílias, desde criança. Foi apenas há pouco tempo que ela descobriu que tinha direitos como hora extra e férias remuneradas, após passar por diversas situações de abusos trabalhistas por parte dos empregadores. Mesmo em lugares em que trabalhou com carteira assinada, ainda assim passou por violações de direitos, como uma patroa que, ao demiti-la após 18 anos de serviço, não pagou nenhum benefício e ainda não devolveu a carteira de trabalho a Claudete.
“Vou ser bem sincera, eles nunca respeitaram meus direitos. Era sempre ‘ah eu vou te dar 15 dias de férias quando eu for viajar’, ou então ‘vou te dar férias, é 30 dias, mas vou te dar 10 agora porque vou viajar e aí tal data tu tira mais dez’. Ou então na metade do período de férias me ligavam pra eu voltar a trabalhar antes. Então, férias mesmo só tirei a partir de uns sete anos atrás, quando fui trabalhar para um casal que me informou dos meus direitos”, conta ela.
Atualmente, Claudete trabalha para um casal de idosos e conta que continuou em atividade a maior parte do tempo durante a pandemia, por isso não passou por uma situação complicada financeiramente. Ao longo do ano, ela foi três vezes à Praia do Rosa cuidar da casa e dos idosos, que ficaram lá durante alguns meses. Neste período, o homem chegou a ser internado no hospital, e ela o acompanhou. Quando retornavam a Porto Alegre, algumas vezes Claudete era chamada para trabalhar também aqui.
Ainda mais por trabalhar com idosos, Claudete relata que, mesmo tendo recebido máscaras e álcool em gel, a situação da pandemia a assusta. “Dá um medo, principalmente do ônibus. É muito complicado, a gente entende toda a situação, mas as outras pessoas nem sempre entendem. Não dão bola, não usam a máscara, fecham as janelas, daí o motorista fica cobrando e as pessoas parece que não estão nem aí. Isso é muito complicado.”
Por já ter trabalhado em uma casa com um idoso anteriormente, Claudete aprendeu a lidar com as questões que vêm com a idade, e atualmente realiza o curso de cuidadora de idosos. Ela espera que, com a formação, venha também uma maior valorização do seu trabalho – o que, relata, não conseguiu durante todos os anos como trabalhadora doméstica: “Eu gostaria que nos enxergassem mais como pessoas, como gente, como a pessoa que cuida do filho quando eles estão trabalhando, até lustrar sapato do patrão a gente faz. Não é só tirar o pó, varrer a casa, fazer a comida, tem muita coisa fora disso que a gente faz e que não é visto, não é enxergado”.
Dentre as situações pelas quais já passou, ela elenca ter trabalhado em uma casa em que a patroa deixava os armários da cozinha trancados e, em cima da mesa, já separada, a quantidade de comida que ela podia comer. Em outra ocasião, após preparar a comida dos patrões, eles a serviram uma colher de arroz, uma coxinha de frango e meia concha de feijão. “E isso aí te magoa, te fere. São coisas que às vezes tu não tem na tua casa. O que tu tem, tu deixa pros teus filhos, um almoço ou uma janta. Então, prefere comer no serviço, mas sabe que ali também não tem uma refeição digna pra ti”, relata.
“Foi que nem um barco, cada um por si”
Já Roselaine Santos de Souza trabalha há pouco tempo como diarista. Foi no ano passado que ela, que tem segundo grau completo e chegou a começar a estudar Administração, passou a fazer faxinas para sustentar a si e aos três filhos. Por ser diarista, ela não tem carteira assinada e, quando a pandemia exigiu o isolamento social, ficou praticamente sem renda. Quando o companheiro, que ajuda no sustento das crianças, ficou desempregado, a família passou a viver quase inteiramente do auxílio emergencial fornecido pelo governo e da ajuda de parentes de Roselaine.
“Foi muito difícil pra gente. No começo da pandemia estávamos com muito medo, a gente pega muito cliente que viaja bastante e a gente não conhece a casa que estaria trabalhando. Ficamos meio receosas, depois que a gente viu que só com o auxílio não teria como sobreviver, tivemos que enfrentar o medo. No começo, tivemos depressão, pânico, ansiedade, mas tivemos que enfrentar, com fé em Deus e na luta”, conta Roselaine.
Ela fala no plural porque, no ano passado, ela e uma amiga se uniram para criar as Amigas da Faxina, tornando-se sócias do negócio, que chegou a contar com seis diaristas. “A gente tinha montado as Amigas da Faxina e divulgava no Facebook. Estávamos com uma dinâmica super boa antes da pandemia, tínhamos contratado antes da pandemia até duas meninas a mais”, relata. Atualmente, ela e a sócia permanecem juntas, mas, com a baixa na demanda, as outras trabalhadoras não estão mais associadas.
Roselaine relata que alguns clientes fixos não continuaram pagando as diárias delas quando a pandemia teve início, enquanto outros contribuíram de forma esporádica. “No começo da pandemia, muitos realmente nem a hora nos deram, mesmo que fossem fixos. Foi que nem um barco, cada um por si. Mas tinha uns que ligavam pra saber como a gente tava, uma senhora me deu o valor de uma diária”, conta.
A opção por ser diarista veio pela dificuldade de conseguir emprego, e Roselaine conta que conseguiu, no ano passado, uma boa renda para sua família, sempre pagando as contas e inclusive comprando bons presentes para as crianças – seus filhos têm 7, 9 e 14 anos – de Natal. O lado negativo, porém, é a instabilidade. “O ruim é não ter meus direitos. A grana no ano passado estava sendo muito boa, mas se acontecesse qualquer coisa com a gente, não tinha direito. O portão da minha casa acabou caindo e passou por cima do meu dedinho, fiquei uns 20 dias em casa me recuperando. Daí eu não ganhei nada, pensava ‘tenho que me curar logo, porque eu ganho por dia’”, lembra.
A capacitação
Ambas as trabalhadoras participaram do curso pelo WhatsApp. Foi uma das três filhas de Claudete que descobriu a ação da Themis, a partir da UniRitter, onde estuda. “Ela chegou e comentou comigo, entrou no site tudo, olhou e me mostrou. Disse que ia ser bem fácil pra mim, por ser pelo WhatsApp. Eu não entendo muito de computador, daí ela já fez a minha ficha. E acho que foi uma das melhores coisas que aconteceu pra mim”, afirma Claudete.
Já Roselaine soube a partir de uma amiga e fez o cadastro assim que descobriu o curso. “Como a gente estava com essa equipe da Amigas da Faxina, para nós é super interessante o estudo da Themis, para a gente passar pras meninas. Tem coisas que realmente a gente tem direitos, as pessoas acham que não temos direitos por sermos domésticas e diaristas”, afirma. Ela ainda aponta que muitas vezes, para não pagar todos os direitos trabalhistas previstos para trabalhadores domésticos, as pessoas contratam diaristas e acham que não precisam respeitar nenhuma regra.
“Tem gente que acha ‘a pessoa vai vir limpar a minha casa pelo dia todo por aquele valor’. E não é assim, tem faxina de 4, 6, 8 horas e daí, se fecha esse horário, nós vamos embora. Esse é o horário para o qual fomos contratadas. Tem gente que diz ‘a fulana vinha aqui e saía só quando acabava, saía meia-noite’. A gente tem que mostrar que também tem direitos”, acrescenta Roselaine.
Ao longo do curso, ela conta que em diversos momentos lembrou de situações pelas quais ela ou suas colegas passavam, e o mesmo ocorreu com Claudete. Ambas pretendem, a partir de agora, repassar o que aprenderam e indicar futuras formações para amigas e conhecidas. Para Claudete, o que chamou mais atenção foram as questões relacionadas a direitos humanos e aos direitos das mulheres. Por já ter passado por uma situação de violência doméstica, ela ressalta a importância de mais mulheres se informarem sobre o assunto.
“Eu me apaixonei pelos direitos humanos, porque eu tinha essa visão de ‘direitos humanos só funciona pro presídio’, e com esse curso eu parei pra pensar ‘opa, meu pensamento tá errado, não é isso’. E aí tu vai lendo, procurando respostas. Muitas domésticas estudaram pouco, eu estudei até a oitava série. Então isso te abre um leque de informações que é maravilhoso”, afirma. Para ela, as informações a respeito destes direitos deveriam ser transmitidas para todos os públicos, pela televisão, ou com campanhas pelas cidades: “A gente tem que saber quais são os nossos direitos. Se fosse mais divulgado ainda, isso ia ajudar o povo todo, principalmente da periferia, a ter uma visão das coisas”.
Veja o vídeo de formatura:
Fonte: Sul21
Texto: Débora Fogliatto
Data original da publicação: 31/10/2020