Adriane Gischig foi à Suíça há 18 anos, levada pela paixão. No Brasil, ela cursava o quinto semestre da faculdade de Direito e planejava transferir os estudos para a Universidade de Basileia para ficar próxima do namorado. Os créditos já cursados, porém, não foram reconhecidos e a paulista se viu em uma encruzilhada: recomeçar a faculdade do zero ou buscar uma nova carreira. Precisando conquistar sua independência financeira logo, ela optou por fazer a chamada “formação de aprendizagem”, mais curta, com três anos de duração, e entrar no mercado de trabalho.
Entre aulas de alemão, tubos de ensaio e microscópios, ela se reinventou como assistente de laboratório. O treinamento vocacional exigiu que ela trabalhasse e estudasse ao mesmo tempo, sob a tutela do sistema educacional público e do empregador, uma multinacional farmacêutica.
Durante a formação, recebia um salário mensal de cerca de mil francos suíços (o equivalente a R$ 4,3 mil). Ao concluir, foi efetivada com ganhos na faixa de cinco mil francos suíços (R$ 21,5 mil).
“Aqui na Suíça, se você fizer um curso técnico e se empregar, você ganha muito bem em comparação com o Brasil. Não precisa ser pós-graduado ou ter mestrado para viver com conforto”, diz.
A casa com jardim, o carro e a possibilidade de viajar nas férias com os dois filhos são fatores de qualidade de vida que ela conquistou inicialmente com a formação de aprendizagem e depois com aperfeiçoamento.
Após trabalhar como assistente de laboratório por mais de três anos, Adriane decidiu fazer um novo estudo. Com mais quatro anos e meio de dedicação, ela conseguiu se formar na Escola Superior de Administração. Ao longo desse tempo, avançou na empresa, passando a agente de compras até chegar no departamento de finanças, onde já está há seis anos.
“Os suíços não têm preconceito se um profissional não tem faculdade. Isso só existe no Brasil. Não existe discriminação justamente porque aqui todo mundo vive bem, independentemente de como você se formou”, diz, sem lamentar o sonho abdicado de se tornar advogada e reafirmando que não se arrepende de trocar a universidade pelo aprendizado técnico.
“No Brasil, tenho vários amigos e colegas formados em Direito que não trabalham na área ou estão desempregados”, pondera.
Educação contínua e porta para mercado
Na Suíça, o sistema de formação de aprendizagem é amplamente estimulado e cerca de dois terços dos estudantes optam por esse caminho, que se segue aos 11 anos de ensino compulsório, começando no jardim de infância, passando pela escola fundamental até a intermediária.
Mais de 250 profissões estão disponíveis por meio desse sistema de aprendizado, que propicia contato desde cedo com o mercado de trabalho. O tempo de formação depende da carreira escolhida, mas o mínimo é de dois anos, podendo chegar a quatro.
Pelo sistema de formação de aprendizagem são ensinadas ocupações como padeiro, açougueiro, cozinheiro, vendedor, operador de máquina, enfermeira, pintor, cabeleireiro, bombeiro e outros postos práticos.
A formação profissionalizante serve não só como porta de entrada para o mercado de trabalho, como também é base para uma educação contínua que pode se estender pela vida toda.
As aulas são intercaladas com treinamento praticado em construtoras, supermercados, restaurantes, lojas, hospitais, laboratórios e fábricas. As empresas que no futuro contratarão esses profissionais dividem com os governos local e nacional a responsabilidade pela implementação do currículo que foca em habilidades práticas.
Os que concluem com sucesso recebem, normalmente, uma oferta de emprego da companhia onde treinaram e um diploma com validade nacional, o que os permite ter acesso a novos cursos, avançando na especialização da área que escolheram.
Se depois de formados os aprendizes quiserem mudar de profissão e seguir para um instituto superior politécnico ou ir à universidade, é possível, mas é necessário fazer um rigoroso estudo complementar de transição.
Profissões valorizadas e bons salários
Os empregos de base que estão acessíveis por meio de aprendizagem despertam grande interesse porque garantem uma boa renda. Na média, esses profissionais recebem por mês algo entre R$ 21.500 e R$ 25.850 (de 5 mil a 6 mil francos suíços).
Um pedreiro, por exemplo, ganha por mês na Suíça, em média, 5,5 mil francos (R$ 24 mil), um marceneiro, 5,1 mil francos (R$ 22,2 mil) e um mecânico, 5,8 mil (R$ 24,9 mil). Nessas mesmas profissões, a média salarial no Brasil é de R$ 1.640 para pedreiros, R$ 1.550 para marceneiros e R$ 1.530 para mecânicos de automóveis.
O curso básico de aprendizagem de formação para pedreiro, marceneiro e mecânico dura dois anos na Suíça. É possível também estudar por três a quatro anos e receber uma qualificação avançada nessas profissões, o que garante um salário ainda maior.
O fato de os estudantes já estarem inseridos ativamente na economia faz com que a taxa de desemprego entre a população jovem da Suíça seja de apenas 4%. Além disso, a evasão escolar é baixa, pois mais de 90% dos inscritos conseguem concluir com sucesso o programa.
Universidade para poucos?
Stefan Wolter, professor de economia na universidade de Berna dedicado ao tema da Educação, alerta que o excesso de pessoas com formação superior leva não apenas ao desemprego, mas também deprecia o salário dos que estão ativos no mercado.
Wolter desaconselha jovens com perfil acadêmico fraco a buscarem obter um diploma universitário a qualquer custo, recorrendo a universidades pagas e sem credibilidade.
“Nos Estados Unidos há pesquisas que mostraram que essas faculdades que só querem lucrar causam um impacto negativo. Lá, na média para cada ano a mais que você estuda, você ganha entre 8% e 10% a mais de salário. Mas se você for para uma universidade sem prestígio, o impacto será negativo mesmo assim. Você acabará acumulando dívidas do financiamento educacional”, alerta.
O especialista destaca que a realidade da Suíça é bem diferente da do Brasil, em que há muito poucas alternativas à universidade para o jovem que quer continuar a estudar, em busca de aprimoramento e melhores salários.
“No Brasil, a alternativa que se tem a ir à universidade é zero. Você não recebe nenhuma educação decente se não for à universidade”, diz.
O economista argumenta que os brasileiros menos qualificados, que muitas vezes acumulam anos de déficit de aprendizagem ao longo da educação básica, acabam se formando com notas sofríveis em instituições ruins e não conseguem se posicionar na sua profissão em um mercado de trabalho já saturado e muito competitivo. Para esses, teria sido melhor fazer um treinamento vocacional. “É um desperdício de capital humano”, lamenta Wolter.
Adultos qualificados
Na Suíça, cursam uma aprendizagem profissionalizante cerca de 220 mil pessoas, a maior parte delas (205 mil) em currículos de três ou quatro anos. Segundo a OCDE (Organização para o Desenvolvimento e Cooperação Econômica), a Suíça é um dos países com maior número de adultos qualificados por meio de prática profissionalizante na Europa.
A força de trabalho do país (adultos de 25 a 65 anos) está dividida desta maneira: 12,6% só concluíram o ensino fundamental, 46,2% tem formação profissionalizante secundária e 41,2% têm formação avançada terciária, que inclui o ensino superior.
A diretora do departamento de estatística da UNESCO, a agência da ONU que lida com o tema da Educação, explica que o grande desafio no mundo hoje é, antes de mais nada, garantir competências de base para que a educação secundária vocacional seja uma consequência natural. Segundo ela, há uma crise global no ensino primário.
“No mundo todo, 6 de cada 10 alunos não é capaz de demonstrar o mínimo de conhecimentos em leitura e matemática. São 617 milhões de crianças iletradas. Imagine três vezes a população do Brasil sendo incapaz de ler e de demonstrar conhecimentos de matemática”, alerta.
“Esse desperdício de capital humano nos diz que colocar as crianças em sala de aula é apenas metade da luta. Agora o desafio é garantir que toda criança em sala de aula esteja aprendendo as habilidades mínimas necessárias para leitura e matemática”, diz a diretora do departamento de estatística da UNESCO, Silvia Montoya.
Pelos números da UNICEF, no caso do Brasil, há 1,5 milhão de crianças e jovens fora das escolas. São 772 mil na educação primária e 740 mil na educação secundária. É para esse segundo grupo, os adolescentes em formação secundária, que o modelo suíço serviria.
Jovens sem estudo no Brasil
Segundo dados do IBGE em 2017, havia cerca de 25,1 milhões de pessoas de 15 a 29 anos de idade que não alcançaram o ensino superior completo e não estavam nem estudando, nem se qualificando – os chamados “nem-nem”. Desse grupo, a maioria era homens (52,5%) e negros (64,2%).
Os motivos mais frequentemente alegados para estarem longe dos estudos eram porque trabalhavam, procuravam trabalho ou conseguiram trabalho e começariam em breve (39,7%); não tinham interesse em estudar (20,1%); e tinham que cuidar dos afazeres domésticos ou de pessoas (11,9%).
O professor Wolter acredita que esses jovens deveriam melhorar suas capacidades sem abrir mão do trabalho, mas há uma “falta de coordenação” entre o mercado e as instituições de estudo. “É um problema ‘ovo-galinha'”, que impede que o Brasil acumule mão de obra de base com excelência.
Há uma falta de empresas com disponibilidade para investir e que poderiam sustentar um programa de treinamento qualificado ambicioso como o modelo suíço, diagnostica Wolter. Ele recomenda que o governo atraia investidores da iniciativa privada internacional para tentar estimular uma transformação.
No Brasil, o sistema de parceria entre empresas e governo existe dentro do programa Pronatec (Programa Nacional para o Acesso ao Ensino Técnico e Emprego) e dos cursos FIC (Formação Inicial Continuada). Para se formar em um curso de formação continuada, o aluno brasileiro precisa atender apenas 350 horas de aulas, e no curso técnico, 800 horas.
Na Suíça, o mínimo é de dois anos de estudo.
Qualidade e acesso a todos
Se no Brasil existe a preocupação em evitar que o acesso ao ensino superior fique restrito à elite, na Suíça isso não é um problema. Lá, a qualidade da educação básica é boa e rigorosa para ricos e pobres, que estudam nas mesmas escolas públicas, explicam os especialistas.
E é durante os anos do ensino básico, com base em exames na 6ª série, que ocorre a seleção entre os que irão à universidade. O sistema de avaliação premia não só os alunos brillhantes, mas também os muito disciplinados.
Além disso, o ensino técnico não é o fim dos estudos. Quem se forma em educação técnica pode mais tarde fazer um curso que leva de um a dois anos, chamado de “passarela”, para o ensino superior. Muitos optam por não fazer, no entanto, porque já têm um bom retorno financeiro com a profissão técnica.
“Justamente porque o treinamento vocacional na Suíça é tão bom, não há uma grande discrepância salarial frente aos que possuem diplomas universitários. É uma alternativa viável, porque a qualidade do ensino é praticamente quase tão boa quanto de uma faculdade”, diz.
A brasileira Adriane concorda: “é uma formação que me deu muito pra vida toda. Eu aprendi demais”.
Preparando profissionais do futuro?
Por outro lado, se o Brasil estimular excessivamente os cursos de aprendizado, poderia vir a sofrer um “apagão” de universitários? O advogado e político argentino Gustavo Beliz, que estuda o fenômeno da Quarta Revolução Industrial, diz que é indispensável seguir investindo em profissões de nível universitário.
“A inteligência artificial permitirá a criação de muitos empregos que ainda não existem, como especialistas em agricultura vertical, antropologistas do cyberespaço, auditores da economia compartilhada. Temos que preparar as próximas gerações para esse novo mercado de trabalho.”
Mas, segundo ele, as mudanças tecnológicas recentes geraram uma tendência que é justamente a intensificação dos extremos, com ausência de capacitação em nível intermediário.
“As mudanças no mercado de trabalho deram origem aos fenômenos de esvaziamento e polarização, um processo através do qual o número de empregos de alta e baixa qualificação cresce com o tempo, enquanto o emprego de média qualificação diminui devido aos diferentes impactos das mudanças tecnológicas”, explica.
“Isso aponta para duas necessidades: primeiro, o sistema educacional precisa dar aos jovens as ferramentas necessárias para entrar em um mercado de trabalho cada vez mais sofisticado. Segundo, ele precisa funcionar como um nivelador social, para evitar que a desigualdade e a fragmentação social se tornem ainda mais intensas.”
Beliz ressalta que os trabalhadores do futuro terão de focar principalmente nas “habilidades interpessoais” para não perder o emprego para as máquinas, investindo em habilidades como a “inteligência emocional, a empatia e a criatividade”.
Justamente as profissões menos valorizadas no Brasil poderiam ganhar destaque no futuro da Quarta Revolução Industrial. “A América Latina precisa começar a apostar no fator humano, no talento. Paixão, comprometimento, sacrifício, trabalho em equipe e criatividade. Essas são as áreas que superamos as máquinas”, afirma.
“Precisamos preparar as novas gerações para esse novo mercado de trabalho que poderá demandar tanto treinamento vocacional, quanto acadêmico, porque nós precisamos de ambos”, conclui.
Fonte: BBC News Brasil
Texto: Marina Wentzel
Data original da publicação: 24/09/2018