As desigualdades no ritmo da financeirização

A financeirização que hoje invade todas as esferas da economia não é um fenômeno uniforme e monolítico. É distinguindo cuidadosamente os diferentes mecanismos pelos quais ela se desdobra que seremos capazes de entender como produz desigualdades sociais.

Olivier Godechot

Fonte: Carta Maior, com La vie des idées
Tradução: Aluisio Schumacher
Data original da publicação: 10/08/2021

Contra a análise clássica que acima de tudo vê o aumento das desigualdades contemporâneas como resultado de um progresso tecnológico tendencioso (ou seja, um tipo de crescimento em que a demanda por a mão-de-obra qualificada cresce mais rápido do que sua oferta), a obra Disvested. Inequality in the Age of Finance propõe outra via de explicação. O aumento das desigualdades resulta da financeirização da economia entendida não apenas como um rápido crescimento da atividade do setor financeiro, mas também como resultado de uma transformação financeira da renda, do investimento, do endividamento e da poupança dos outros atores da economia, especialmente empresas não financeiras e famílias. Ken-Hou Lin e Megan Tobias Neely oferecem uma síntese coerente e inspiradora dos trabalho dos últimos quinze anos sobre financeirização, acrescentando também novas perspectivas sobre certas dimensões menos estudadas [do fenômeno], como a dívida estudantil ou a crise das aposentadorias por capitalização.

Uma síntese sobre a financeirização dos Estados Unidos

O livro se propõe a demonstrar a relação consubstancial entre a financeirização do capitalismo contemporâneo e a explosão das desigualdades, tomando como exemplo empírico os Estados Unidos [da América]. Começa apresentando nos dois primeiros capítulos essas duas grandes transformações e continua ao longo de quatro capítulos focados nos diferentes espaços onde o relação se estabelece: setor financeiro, empresas não financeiras, dívida das famílias e seu patrimônio. O capítulo final trata das inflexões ligadas à crise financeira de 2008 e à sua regulação. A obra é clara e bem estruturada. Combina habilmente uma análise história das transformações institucionais com rica análise estatística e numerosos gráficos representando cinquenta anos de evolução dos diferentes indicadores de financeirização ou de desigualdade.

O fim do sistema de Bretton Woods, que reativa o mercado financeiro internacional, a crise dos anos 1970, que desacredita a regulação estatal keynesiana e favorece a desregulação, e a inflexão liberal da década de 1980, que colocou a empresa privada e os acionistas no centro [das atenções] permitiram a financeirização da economia. O desmantelamento das regulações decorrentes do New Deal, longe de beneficiar os consumidores, ao contrário, favoreceu uma desinserção do mercado de serviços bancários e uma concentração crescente do setor: a participação dos ativos dos três principais bancos passa de 10% dos ativos bancários em 1990 para 35% em 2007 (p. 62). A financeirização pode ser dividida em quatro tendências principais: a) o aumento [da participação] do setor financeiro no valor agregado da economia (tanto sob a forma de lucros como de salários), b) a reorientação das empresas não financeiras em direção de atividades financeiras, c) a submissão das empresas aos imperativos de valor acionário e d) a expansão do endividamento, principalmente das famílias. Lin e Tobias Neely analisam sistematicamente as consequências em termos de desigualdade na distribuição de renda e patrimônio, tanto entre os diferentes grupos de renda, como também levando em consideração o impacto intersetorial em termos de gênero, situação parental e origem étnico-racial.

O livro enfatiza que o aumento das desigualdades ligadas à financeirização decorre sobretudo do fato das finanças serem um nicho salarial onde salários muito altos são pagos a uma bem pequena minoria de banqueiros de Wall Street, principalmente composta de homens brancos. A estrutura da renda salarial financeira se inverte. No início da década de 1970, os assalariados da base da hierarquia salarial se beneficiavam mais fortemente de um emprego nas finanças (35% a mais de salário nas finanças em comparação com outros setores) do que os do topo ( 20%). Pelo contrário, algumas décadas depois, o emprego nas finanças favorece mais o topo da hierarquia ( 60%) do que a base (10%).

Para além do setor financeiro, as empresas não financeiras se tornam bancárias e aumentam as receitas de fontes financeiras, acoplando, como no setor automotivo, a venda de bens à distribuição de crédito. Elas também se submetem cada vez mais aos imperativos da “revolução dos acionistas”. Em nome da criação de valor para o acionista, eles reestruturam a atividade em seu core business, externalizam as atividades auxiliares, realocam a produção na direção de países com baixos salários, suprimem os benefícios sociais, notadamente planos de aposentadoria com benefícios definidos e procuram quebrar o poder sindical. Mesmo que os gestores assalariados das empresas também possam ter sido enfraquecidos pelo ressurgimento vigoroso do acionista, eles conseguem renovar e fortalecer seu poder ao reivindicarem atuar em seu nome. Assim, na década de 1990, os salários dos 350 CEOs mais bem pagos aumentaram de 3 para 20 milhões de dólares.

O endividamento constitui a principal manifestação da financeirização das famílias.

Por muito tempo, as famílias americanas mais pobres tiveram pouco acesso ao crédito bancário, o que as mantinha em uma armadilha da pobreza. O desenvolvimento do crédito, apoiado pela desregulamentação e pela securitização, poderia ter permitido uma maior inclusão financeira e uma moderação das desigualdades. No entanto, a melhora no acesso ao crédito beneficiou primeiro as classes médias, especialmente as famílias entre o 60º e o 80º percentil. O topo do distribuição usa crédito principalmente para aquisições imobiliárias que entram no patrimônio, enquanto a base da distribuição recorre mais a recursos do crédito ao consumidor, mais caro, e que não permite nenhuma acumulação patrimonial. O 1/5 das famílias mais pobres enfrenta então com frequência (e isso de maneira crescente durante os anos 2000) incidentes de reembolso e superendividamento (p. 132). Sua inclusão no crédito nos EUA parece portanto de custo mais alto, se não, menos benéfica do que para outros grupos de renda.

Além das desigualdades entre os grupos de renda em termos de acesso ao crédito e de constituição de patrimônio, o livro também demonstra o crescimento das desigualdades patrimoniais segundo a origem étnico-racial (p. 144) e sobretudo o diferencial de destino segundo as gerações, vinculado às duas crises profundas para a sociedade [norte-] americana: a crise das aposentadorias e a crise da dívida estudantil. Assim, a proporção de assalariados que se beneficiam de um plano de aposentadoria diminuiu de 55 para 40% entre 1980 e 2014 (p. 105). Além disso, a transformação dos planos de aposentadoria de benefícios definidos em planos com contribuições definidas, tornaram tais planos mais incertos e geralmente menos remuneradores. Da mesma forma, o aumento considerável no custo do ensino superior levou um aumento muito acentuado do endividamento estudantil, prejudicial à constituição de um patrimônio. Na idade de 30-34 anos, o patrimônio da coorte nascida entre 1977 e 1982 é de 20 (para os 10% superiores) a 80% (para o quartil de baixo), inferior aquele dos nascidos entre 1971 e 1976. E por um bom motivo: tem de pagar empréstimos estudantis mais pesados ou por mais tempo.

O livro examina no último capítulo os desdobramentos do pós-crise. As tentativas de regulação da administração Obama, em grande parte desmanteladas pela presidência de Trump, não mudaram em nada o quadro. Ao contrário, as desigualdades cresceram após a crise. Os autores concluem com algumas propostas para transformar a indústria e argumentam notadamente em favor da desconcentração do setor financeiro. A difusão de novos valores resultantes do investimento responsável também poderia, mas em proporções modestas, produzir inflexões.

Unidade e variedade de processos de financeirização

Essa análise detalhada e completa das ligações entre as múltiplas formas de financeirização e as desigualdades nos Estados Unidos nos convida a reexaminar a questão do caráter unitário do processo de financeirização tanto no espaço e no tempo, como no interior dos diferentes setores da economia.

O livro sugere que a financeirização descrita para os Estados Unidos também está em ação nos outros países desenvolvidos. Alguns choques mundiais como o fim do sistema de Bretton Woods (1971), que reativa repentinamente o mercado de câmbio, afeta efetivamente o conjunto das economias de mercado. O lugar central dos Estados Unidos na economia mundo favorece a difusão global de tendências emergentes, como a “revolução dos acionistas”. No entanto, não se deve subestimar a especificidade do sistema bancário dos EUA e de seu modo de concessão de crédito, resultante das rigorosas regulamentações impostas pelo Glass-Steagall Act (1933): fragmentação bancária, separação estrita entre bancos comerciais e bancos de investimento e externalização do credit scoring. Contrariamente, em muitos países da Europa, o setor financeiro dos trinta gloriosos [anos] já estava estruturado por grandes bancos (quase) universais. O fato das finanças terem contribuído na Europa de maneira equivalente para o aumento das desigualdades nos anos 1990-2000 convida-nos, portanto, a qualificar o caminho do desmantelamento do Glass-Steagall Act. Em contrapartida, esta comparação nos conduz a colocar mais a ênfase na transformação radical dos mercados de títulos nos anos 1970-1980, que levou a uma expansão sem precedentes do campo da arbitragem e da especulação[1]. Ela tem como pilar a supressão das regulações corporativas dos antigos corretores, a informatização das transações e desregulação do comércio de derivativos.

Uma comparação precisa dos ritmos das diferentes dimensões da financeirização finalmente, convida-nos a requalificar a unidade do fenômeno, ou mesmo a substituir essa noção por conceitos intermediários.

Assim, os primeiros trabalhos sobre a financeirização, muitas vezes de inspiração marxista, insistiam na financeirização das receitas das empresas não financeiras como reveladora de uma fase financeira do capitalismo, em que as empresas aplicariam na bolsa em vez de investir na atividade real. As receitas financeira cresceram muito nos anos 1970 e 1980. Mas, caíram proporcionalmente nas décadas de 1990 e 2000 (p. 14). Essa dimensão não parece, portanto, tão crucial para pensar sobre a financeirização contemporânea e sua ligação com crescimento das desigualdades.

Também é clássico [o argumento de] inserir a maximização do valor das ações como um componente importante da financeirização. Se esta tendência se manifesta por um aumento constante nos dividendos pagos aos acionistas desde o início dos anos 1970 (p. 13) e por um crescimento da remuneração dos dirigentes, poderíamos discutir acerca de seu caráter intrinsicamente financeiro. Mesmo que não tenha assumido uma forma tão radical quanto àquela teorizada por Jensen e Meckling[2], a maximização dos lucros sempre esteve no cerne do capitalismo e pode ser acentuada independentemente da evolução do setor financeiro. Ao contrário, o desenvolvimento espetacular de algumas empresas de gestão de ativos, como BlackRock sugere possíveis tensões entre o desenvolvimento do setor financeiro e valor para o acionistas. Na verdade, as famílias, escaldadas pela crise do mercado de ações de 2001, têm abandonado amplamente a posse direta de ações em proveito de participações em fundos comuns de aplicação ou de fundos de pensão. O acionista é cada vez menos uma pessoa física. É uma entidade abstrata em nome da qual falam os funcionários do setor financeiro. Além disso, uma vez que essas empresas de gestão de ativos possuem uma grande parte da economia (as três maiores detiam 22% das ações da S&P500 em 2018), eles poderiam no futuro abandonar a lógica de maximização do valor das ações empresa por empresa e, pelo contrário, agir como um “proprietário universal” (universal owner). Essa ideia inovadora foi formulada originalmente por Hawley e Williams[3]. Segundo eles, os fundos de pensão poderiam ser uma peça-chave de um capitalismo democrático. Representam os aposentados atuais ou futuros. Possuindo o conjunto das empresas, podem promover o crescimento a longo prazo da economia como um todo, levando em consideração as externalidades negativas e as complementaridades positivas desta ou daquela atividade. Trabalhos recentes mostram que essas empresas de gestão de ativos formam uma oligarquia capitalista pouco democrática e, até o momento, pouco preocupada com o longo prazo. Tais empresas, no entanto, uma vez asseguradas de seu poder, poderiam afastar-se dos cânones da maximização da criação de valor.

Assim, mesmo que a financeirização tenha sido um conceito conveniente e fecundo para pensar sobre as transformações do capitalismo contemporâneo e o desenvolvimento das desigualdades, ao final de 15 anos de trabalho, pode ser mais útil desenvolver e articular conceitos mais específicos, tais como a priorização do valor das ações nas empresas não financeiras, a generalização do endividamento das famílias e o crescente controle dos mercados financeiros como modo de intermediação financeira. Na verdade, essas três grandes transformações têm cada uma seu ritmo próprio e uma articulação específica com o desenvolvimento das desigualdades.

Notas

[1] A arbitragem em finanças consiste em aproveitar as diferenças de preços de um mesmo produto nos centros financeiros diferentes ou entre dois produtos da mesma família no mesmo centro financeiro.

[2] Em um famoso artigo de 1976, Jensen e Meckling propõem novos fundamentos teóricos da firma baseados na teoria da agência. O principal (os acionistas) estabelece um contrato ideal que incentiva o agente (o CEO) a maximizar a receita dos acionistas.Cf. Jensen, Michael C., et William H. Meckling. « Theory of the firm: Managerial behavior, agency costs and ownership structure. » Journal of financial economics 3.4 (1976): 305-360.

[3] Cf. Hawley, James P., et Andrew T. Williams. The rise of fiduciary capitalism: How institutional investors can make corporate America more democratic. University of Pennsylvania Press, 2000.

Olivier Godechot é um sociólogo francês.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *