Argentina: demissões em massa reabrem debate sobre vulnerabilidade do funcionalismo público

Enquanto policiais rodeavam o prédio na região leste de Buenos Aires, seguranças tinham em mãos uma lista com nomes de trabalhadores. Estes enfrentavam uma fila de cerca de duas horas para que os homens que impediam o acesso ao lugar de trabalho os informassem se estavam demitidos ou se deveriam entrar para cumprir seu horário.

A cena foi descrita por Mariano Carril, que estava na lista dos que ficaram sem emprego. Ele trabalhou por três anos na Afsca (Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual), ente regulador da LSCA (Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual), a Lei de Meios argentina.

Opera Mundi ouviu relatos similares ao de Mariano em diversos organismos estatais. Desde o início de janeiro, quando grande parte dos contratos de trabalho venceram, funcionários do governo nacional e de governos estaduais e municipais contam que têm sido entrevistados pelas novas autoridades, em alguns casos, como se fossem candidatos ao emprego do qual correm o risco de ser demitidos. Equipes de 15 pessoas são reduzidas a duas, que não sabem bem a quem respondem, áreas inteiras são esvaziadas e alguns empregados são avisados de que seus contratos serão renovados por três meses “para revisão”, enquanto aguardam sem saber qual será o futuro de seu emprego.

O delegado sindical Diego Abu Arab, da ATE (Associação de Trabalhadores do Estado) no Ministério do Trabalho, afirmou, na segunda semana de janeiro, que o sindicato estimava que entre 15 mil e 17 mil pessoas haviam sido removidas de seus postos de trabalho no setor público de todo o país desde o início do ano. No entanto, esses números variam todos os dias, segundo a fonte, e novas demissões são anunciadas diariamente.

Na rede social Twitter, o usuário @Despidometro contabiliza os demitidos do Estado desde o dia 10 de dezembro, data da posse de Mauricio Macri como presidente da Argentina. Na quinta-feira (21/01), informava que mais de 24 mil haviam perdido seus empregos.

Precarização

Segundo um relatório publicado em 2013 pelo CIPPEC (Centro de Implementação de Políticas Públicas para a Igualdade e o Crescimento), o emprego público cresceu 71% na Argentina entre 2003 e 2012.

Mas nem todos os empregados estatais no país trabalham sob o mesmo regime. Há um complexo sistema de acesso à carreira pública e diferentes escalões de estabilidade. O estudo do CIPPEC revela que, no período estudado, o número de empregados públicos com maior grau de estabilidade aumentou 43%. Já o trabalho mais precário no Estado – por meio de contratos renovados, em geral, a cada ano – cresceu 224%.

Mariano era um desses trabalhadores precarizados, cujo contrato se renovava anualmente. Ele estudou Comunicação Social e Comunicação Comunitária e era avaliador de projetos na área de distribuição de recursos públicos para mídia comunitária, o Fomeca (Fundo de Fomento Concursável para Meios de Comunicação Audiovisual).

“Para além da situação pessoal, é preciso entender que [as demissões] têm a ver com o desmantelamento de políticas públicas. Nós fazíamos a avaliação técnica, o acompanhamento e a distribuição de recursos a projetos de setores comunitários. Com as demissões, essa área deixa de existir”, aponta.

Manifestação em frente à Afsca em dezembro contra a intervenção determinada pelo então recém-empossado presidente, Mauricio Macri. Fotografia: Wikimedia Commons.
Manifestação em frente à Afsca em dezembro contra a intervenção determinada pelo então recém-empossado presidente, Mauricio Macri. Fotografia: Wikimedia Commons

Segundo Abu Arab, a precariedade do vínculo empregatício é o primeiro critério para a escolha de quem vai perder o emprego. “Os que estão mais frágeis são os primeiros demitidos, sem nenhum tipo de revisão”, relata. “Muitos contratos de trabalho eram assinados em outubro com data do janeiro anterior. E essa modalidade de contrato servia para esconder a verdadeira relação de trabalho que existia com o empregador, que é o Estado. Isso hoje abre a porta para que nossos direitos sejam vulnerados”.

A ex-presidente Cristina Kirchner pediu, em vídeo feito por seguidores, que as centrais sindicais “defendam seus trabalhadores e representados com a mesma força que o fizeram durante nosso governo”. Em sua residência de El Calafate, na província patagônica de Santa Cruz, a ex-mandatária lembrou que “há um ano brigavam pelo imposto de renda, agora vão ter que brigar por seus postos de trabalho”, provocou, enquanto recordava uma das principais reivindicações de sindicatos opositores a seu governo, que organizaram cinco greves gerais durante seu segundo mandato.

Militantes e ‘nhoques’

Em reiteradas declarações, funcionários do governo Macri enfatizam que os demitidos eram “nhoques”. O termo é utilizado na Argentina para definir funcionários fantasma, em alusão a que só comparecem ao trabalho no fim do mês – dia 29, quando se come o tradicional prato italiano – para receber o salário.

“Quando se fala em ‘nhoques’, as pessoas imaginam alguém sentado em um escritório sem fazer nada. Mas muitos dos demitidos são pessoas que trabalham em bairros de extrema pobreza, que distribuem recursos para beneficiários de políticas sociais”, defende Abu Arab. O delegado sindical alerta para a intenção de desprestigiar o trabalho público com o objetivo de esvaziar políticas “que chegam à população mais vulnerável”.

O governo de Mauricio Macri também acusa o kirchnerismo de nomear “militantes” em grande escala para o setor público. Em entrevista coletiva na segunda semana de janeiro, o ministro de Economia Alfonso Prat-Gay afirmou que o novo governo estava “começando a ordenar gastos” e a lidar com “a questão dos nhoques”. Acusou o governo anterior de deixar como “herança” um Estado “cheio de militantes, mas vazio de conteúdo”. O ministro também disse que ao setor público não deve sobrar “a gordura da militância” e afirmou que o novo governo vai chamar a concurso os cargos para que os postos de trabalho sejam preenchidos “pelas melhores pessoas”.

eldespidometro

Modernização

Com isso, o governo justifica a “revisão” de contratos, uma das funções do Ministério de Modernização, criado pelo novo presidente e comandado por Andrés Ibarra.

Para a historiadora e pesquisadora do Conicet (similar ao CNPq brasileiro) Gabriela Gomes, que estudou grupos de extrema-direita na Argentina e no Chile, a modernização do Estado vinculada à sua redução “é própria da direita liberal”. Ela destaca a ditadura militar que comandou o país entre 1966 e 1973, liderada em seus primeiros anos pelo general Juan Carlos Onganía, como um exemplo desses ideais colocados em prática.

“O golpe de 1966 não foi contra um homem ou um partido, mas contra a democracia representativa, o sistema parlamentar e a ‘inoperância’ dos partidos políticos para solucionar a crise política, social e econômica”, explica. “A ambiciosa pretensão de despolitizar o tratamento de questões econômicas e sociais fez o novo Estado Burocrático Autoritário determinar que a gestão de políticas fosse competência de ‘técnicos’ especializados em cada área, que supostamente garantiriam a ‘imparcialidade’ diante de diferentes interesses. Isso se traduziu em demissões massivas de funcionários públicos”.

Gomes lembra que a década de 1990, quando Carlos Menem governou a Argentina (1989-1999) também se destacou por demissões no setor público. “Os organismos internacionais de crédito, como o FMI, sugeriam que reduzir o Estado era condição necessária para a ‘modernização e o desenvolvimento’”. Segundo a historiadora, o menemismo aprofundou o cenário deixado pela última ditadura (1976-1983), que construiu as bases de políticas neoliberais. “A privatização massiva de empresas estatais desmantelou o Estado e, como consequência, milhares de pessoas ficaram sem trabalho. Em 1995, o desemprego chegou a 18,5%.”

Mariano acusa o governo de perseguição ideológica. “Eu sou militante e não tenho nenhum problema em assumir. Isso não me impede de cumprir minha função pública”, defende. “Ninguém veio avaliar meu trabalho antes de me demitir”.

Ele afirma que seu trabalho na Afsca, “de defender uma política pública, que é a lei” não tem relação direta com sua militância no Nuevo Encuentro, partido de Martín Sabatella, que estava à frente do organismo antes de sua dissolução pelo novo governo. “Mas é claro que realizo meu trabalho com o que aprendi na militância, que é exatamente o contrário de ser ‘nhoque’: assumo tarefas e as realizo porque sei que atrás de mim existe um povo, setores comunitários que têm projetos de comunicação e que eu devo acompanhar”.

Em referência ao nome da aliança que levou Mauricio Macri ao poder, a Cambiemos (Mudemos, em português), Gabriela Gomes alerta para uma “mudança” no interior do próprio governo. Ela afirma que já há sinais de que o presidente “abandona o espaço de centro-direita e passa à extrema-direita, com a desculpa perfeita da ‘herança pesada’ que o governo anterior deixou”. Para a historiadora, “trazer a lógica empresarial e de mercado à administração do Estado, sem se importar com quantos ficam excluídos do sistema, confirma que chegar à ‘pobreza zero’ era apenas um simpático slogan de campanha.”

Fonte: Opera Mundi
Texto: Akine Gatto Boueri
Data original da publicação: 23/01/2016

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